O Bailado das Facas

[Palimage, 2004]



CARTA À OUTRA FACE



para que saibas qual o sabor das pedras que rolam entre as sílabas do sofrimento dividido nas horas aguçadas. para que saibas qual o azulejo para onde deverás saltar e adivinhar o início vocal da canção que espremeste, anteontem, num momento de rumo perdido festejado a gemer. quero-te falar do afamado ouro, escondido na pronúncia vital do vil erro que à noite me visita:



derrière sa mère le jour s’étonne

l’or de ma nuit ne rayonne à personne


même si le feu royal embrasse l’étrange

j'attends sa douce mort mon trésor change


derrière mon esprit tout est jaune et écœurant

l’or de ma nuit c’est mon seul petit chant



eu olhei; conheci escura a reflexão e por ter olhado reconheci o pecado que habitou puro todas as bocas. eu olhei e logo fui engolido nesse instante por aquilo que ignorava desde então. eu olhei... assisti à marcha do esqueleto por dentro da imagem até à sua desintegração total. olhei e ceguei de mentira...



je rentre pour redessiner la carte d’âme la montagne a

disparu


j’ouvrirai ma langue enflammée pour enterrer

le cœur vinaigrant de cette saison


le venin des affects circule dans les veines du corps

abattu



dos escaparates do cérebro, vezes sem conta pisado, a maldição cobre os iluminados soldados que decifraram os virtuosos braços do cataclismo. sob a pirotecnia chauvinista pressuposto ciclone festivo os escritos encharcam-se de assombro humano... daí o planeamento estratégico de ressalva: providenciar peões de recarga; anotar possíveis pontos de fuga e esconderijos em suma, o sonambulismo artificial para que se aloje o abençoado quisto social. «não ouves? parece-me uma flauta... olha!» PARADA MILITAR: osmótica multidão na praça.


branca e curvilínea a estação na qual floresce a palma dos mortais que, ansiosos por cortejarem os arbustos carregados de bagos químicos letais, ignoram a húmida palha da sangria fátuo manjar dos justos remetida a um canto já fria, foco de poder e ameaça. as flores perdem cor no jardim da pioneira amargura e olhando com dor uma carcaça, a mãe retalha o vestido quebrando a jura. dos longos braços que a poesia ao homem confiou, estranhos cansaços e os olhos ainda baços do pouco que se incendiou.


escrevo-te para que conheças em diagonal o percurso da jornada:



compromisso ir ao encontro do irrequieto rosto da

água


emboscada ataque surpresa dos loucos karatecas do

gelo


repreensão a monstruosa onda gulosa do sono de

papel


prémio visita ao claustro dos profetas e um naco de

pão



... e a nova visão do espelho:



ce qu’on mord avant de plonger dans le miroir ne se raconte jamais sans qu’une vraie faim déflagre sur la peau. l’eau de ce miroir est flegmatique si on le regarde avec les yeux ouverts; il faut les fermer, il faut les sacrifier pour que l’épicentre éclate et qu’ainsi, l’eau des disparus puisse exprimer son mouvement tyrannique et vivre protégée grâce au verre renforcé par la magie des reflets.



dormem seis crianças junto à árvore que conta as fábulas dum mundo perdido beijam sonhando as raízes. pelo carreiro do bosque um homem sem cabeça traz nas mãos uma caixa negra selada a lacre. o cometa a terra ameaçada; alvoroço: a cor grita, o som cora, a caixa negra abre e desfaz-se de seguida um cubo axadrezado nas mãos, perdido o resto do corpo. uma manada furiosa de cabeças selvagens estremece o solo as crianças acordam. gemendo, a loba de úbere cheio atrai, piedosa, os cordeiros catecúmenos.



ô gorge où le rouge deviendra mortel

[un couteau]

ô vent malade goûteur de pauvres cueillettes

[un poireau]

ô cascade poissonneuse de la nymphette cruelle

[un ruisseau]

ô chevalier gitan du pays sans moulins

[un drapeau]

ô fantômes des femmes coquettes

[un tombeau]



«trago a chave da montanha escondida numa ruga» assim se apresenta o velho de voz rouca, voz arrastada pela tosse seca. o traste que insinuando-se triste exibe a branca cabeleira como isco, cerca a presa na dança compassado e, por ser fosco desenha fusco, escorchando a pele dura da terra com sua bengala de ponta afiada. aproximando-se toca com o indicador na nervura saliente do peito do escolhido, intumescendo-a com movimentos circulares e é ao te aperceberes do sentido, que vês a seda ejectada de cada um dos dedos, alvejando-te desprevenido e envolvendo-te em sucessivas camadas de teia, onde amoleces com clichés digestivos «vomitarás um músculo negro cheio de sementes».



le mot sera le fruit de l’ombre

en écoutant la voix profonde


«si la pomme pleure en tes mains

un nom s’agite chez tes plumons»

c’est la voix de cet an

et des prochains


quel désert j’ai soif et je ne veux plus des citrons

ô cheval du temps

viens me sauver promptement



espero que, entre os folhos das sete danças, possas recolher pétalas de carne para os teus mais recatados ritos, e, por encantamento, comungues o oráculo dos malditos.



O BAILADO DAS FACAS



auréolas de fumo coroam os pulsos: a questão



a estrela moveu-se

enquadra-se na cruz que divide o olho:

o brilho do Sete-Estrelo

¿boa-nova ou receio de enfrentar

o exército de plátanos?


deveras surpreendente

a assombrosa região

onde se respira com os pulmões

aos sobressaltos


deslizando

a sumptuosa forma regressa

ao grotesco bailado das facas

as mesmas que assistiram

o parto

¿partir?


subo um degrau

e um degrau é subtraído na escada homóloga

a esta que subo a mesma ou outra?


reflexo desta mesma escada

só que vazia:

espelho glutão


a escada afigura-se móvel

forma o A ou o triângulo incompleto


a escada que subo e a inversa

sua irmã nas antípodas

a matéria e a anti-matéria

a escada e a outra escada

duas escadas ou nenhuma:

uma apaga a outra

¿a ressonância do reverso torna letal a ideia?


o vórtice encoberto

planalto da meditação


o cérebro invade libertino

com os seus tentáculos contrácteis

o polvo axiomático:

suga factos

defeca sofismas

e arranca obsessivo

com hipocrisia inata

os tentáculos dos seus semelhantes


resumo:

borrões de tinta a vaguearem expressivos

no espaço e no tempo

¿porque não arde, agora, o papel?


adulto: adúltero enquanto esmaga vidrado

a essência; ler o manual

entrar na caixa e dançar organizado

percalço: trazer sempre na algibeira

um pequeno frasco de bílis

para eventuais situações indigestas

¿ninguém cala essa criança frágil

que berrando ordena?


ondas vulcânicas

cortinas de ar quente

na sala do mímico interrogatório

sozinho entre bocas torcidas

fui julgado ao estalarem dedos

coro

o sangue vacila como ordinário líquido

sujeito a fervura

diagnóstico: paralisia existencial

averiguar urgentemente qual a causa

¿ensaio de matança ou anómala herança?


apercebo-me que não estou só

jamais ver-me-ei só

o Grão-Olho-Ubíquo espreita

e persegue os filhos do caldo primitivo


ninguém está livre enquanto respirar

a sombra do rosto ensanguentado

prevalecerá sobre a escrita

do húmus

a culpa é a virtude dos que vivem


apresento-me de mãos desamparadas

num ímpeto agarro-me à parede lisa

as mãos sujas escorregam

e num rasgo

mancham de dor o branco glacial

a ferida negra

novo ciclo em cada noite


mote da flagelação:

«o tempo passou

o bicho amou

o cérebro decantou

a morte assobiou

quem sou?»


a carne é a única morada

seus folhos escondem a razão

dos espasmos

há que extrair energia cheirando a terra móbil

escutar o mundo

tocá-lo

agarrá-lo

e engoli-lo

vê-lo já dentro do estômago

[expansão apaixonada dos sentidos]


o corpo dança como ressurgimento

da génese planetária

¿como descrever a demanda doentia

de auscultar em todas as coisas

o solitário coração?


a flor nua empalidece

[arcaboiço suspenso]

um calafrio apaziguador ao visionar

o terno esqueleto da palavra


vértebras soltas organizam-se:

a mágica centopeia silábica desperta a carcaça

da ignorância

¿como elaborar um cartograma legível

para que alguém possa romper-me

a membrana invisível?


rebentaram as águas

dessa luz

que o objecto rejeita

o mensageiro chega abrindo as asas


tu não reconheces o teu refúgio

sem que ouças o poema lamuriado que agudiza

o desgosto tristemente o silêncio propaga-se

quando um punhal é apontado ao peito

¿roubas essa luz?


descalço-me à entrada do pinhal

os pés alertados para o sofrimento pontual

mãos à procura

as unhas ferem o dorso

dos pinheiros

com movimentos certeiros

corro:

o sangue a pingar dos dedos


ao sangrarem os pés tornam vermelha a caruma

à minha passagem


à saída

uma bacia de água limpa e uma toalha branca

esperam-me

mas lavo as feridas cuspindo

e esfrego o sangue por todo o corpo

até tornar rubra a minha condição

¿se denunciam o orgulho

qual a razão de defenderem

com certo zelo

o entulho?


para ir cabendo neste casulo de fibra

pronuncio alto a senha de guerra

preso ao zumbido sério

do zangão que ameaça

com seu ferrão venenoso


rendido ao licor pastoso que o relógio derrama

brinco com a criatura de barro

moldando-a ininterruptamente

até que o ser imponente se insurja

¿em que significado foram embebidas

as caricaturas?


amanheceu:

a cifra diferente

e hoje é maldito

o sol


o lápis de luz rabisca a escuridão

¿onde colhi o lídimo cereal da solidão?

aquele que me ataca é meu aliado

estou contra mim

como ser eu se acordei com a pele vestida

às avessas?


ninguém conhecerá jamais

o turbilhão das sensações por que passa

quem escreve apaixonado

no peito duma rocha

com o sumo da romã esventrada

¿mas quem é digno da morte

dum fruto?


ali é o canteiro dos monstros que ainda

assombram o presente

o pedaço de terra que reanima

a saliva agressiva do que se vê brutal

enquanto sincero animal


ali é o canteiro das flores silvestres que verei

crescer e talvez morrer

mas que nunca desaparecerão

enquanto eu não libertar esta água

imprópria para beber

¿quem ousa disseminar as sementes do mal

sem se ver por um instante

como desorientado animal?



O ECLIPSE DO CÉREBRO



para cada eco há um ouvido sempre pronto



escutando o tambor apressado e tenaz

manipulo as sombras estuais do passado

faz muito frio nas passagens vocabulares

e a certa altura

todas as vozes se contradizem

o que é mais construído é a destruição



MIRADOURO α

o gato preto

em »===» fuga

o cão amarelo

: cal + cu * la –

o momento exacto

para detonar a bomba

presa à coleira vermelha

do gato preto

sobre os destroços de carne

o cão amarelo e o gato branco

fornicam noite adentro


sempre serei um ser desesperado

nesta terra de cima

[o barco nevrótico partiu em busca do sonho]

relance compulsivo

a estrada passeia-se-me nas veias

sobram apenas os mortos que detonam

a noite já túmulo do sono


início à peste

ou o início da peste antedita

com jorros de ferrugem

aparecem coisas mortas aferroadas

na camisola do filho protegido

pela imagem efémera mas cortante


desfiladeiro dos imprevistos

[a rígida mão morta

em queda

assaltou-me os bolsos]

a água outrora limpa é agora lama

e o choro sobrevive

através da vida que lá nasce:

algas rãs alguma flor brava

início à peste

ou o início da era da peste

na câmara de carne mais profunda


os vermes ressurgem com a boca suja

realçam a escuridão dos objectos

o amarelo extremo dos ornatos

geme no aroma reduzido a acenos cínicos


a fonte sugere leveza no viver pesado

devido à forja diligente

onde arde quem é novato

aquele que ociosamente tudo declara

para dentro de si

[linha irregular com múltiplas necroses]

aquele que esconde religiosamente o umbigo

em ferida


mágoa de sabor atrabiliário

gosto arrastado para a súplica dolorosa


beijo a cara mordaz e táctil

de polpa assustadora

e no corpo a glândula fatal busca

a palavra executada

suicido-me tantas vezes na mesmíssima tarde

e o que resta é doença

MIRADOURO β

um muro

e s p o n j o s o

ergue-se ameaçador


a caligrafia do medo

[roseiral a vindimar]


«os cavaleiros da noite triangular

empunham suas espadas


não escrevas no escuro»

grandes horas comerei iguais às que comi

assistindo a pequenos derrames de pó

saboreio o pão amassado pela alma anémica

reanimada por mãos de folha outonal

do lenho amarelo ou ar de mofo suspirado

MIRADOURO π

alguém espreita-se dono de si

gerando ventania poeirenta


o ciclo irredutível

que a mão empena


o halo imundo do mundo reduzido a

paisagens hormonais amenas


ouço o grito do jarro

atirado contra a parede


alguém está na garagem

¿o ladrão de sonhos?


«sim

vi-lhe o capacete luminoso»

gota aliada ao destino

em cetim aliviado

o corvo tornado assassino

voltaram os assombros

gota amordaçada à beira dos lábios

tepidamente ridentes


o fantasma assalta a casa e masturba-se

defronte do busto de Freud


garganta seca

minúsculo demónio de saias

longo ditongo do pombo como assombro


alijo redes aleivosas

do polígono mental bifronte

e mensageiros da inverdade

indagam acerca da punhalada

MIRADOURO δ

gadanhas de osso

bailam perigosas

uma força inexorável

fustiga a pele

escapa-se à guilhotina

mas cai-se no poço

sem fundo


...............pausa...............


encostar o ouvido ao crânio

e escutar a cascata trovejante

entre a vida e a morte um passo

que ainda ninguém soletrou

entre a fragilidade amedrontada das palavras

e a sombra plantada no deserto

o hipotético equilíbrio das probabilidades


palavras tantas

tantas línguas e feridas

ouvem-se os sinos brincalhões no átrio coronário

esta é a música

a única música

tantas palavras como tantos homens

MIRADOURO λ

telescópio animal

ali mal

o fantasma encurralado

pela :. teia .: de :. artérias .: metálicas


renuncio ao bife malfadado

negro e fedorento

temperado com o veneno

da víbora presunçosa

tareia em tremátodes

lupa incisiva entre seres

depressa nessa controversa revessa anexa

da luz convexa

doente

o invento de ser partícula

[não pensar]

um estalo

a nuca desfeita

e um beijo espúrio

ou abraço peçonhento entre inimigos

falsas lágrimas forçadas nos âmagos sulfúreos

amálgamas pusilânimes dançando contrariadas


só depois muito depois

o arrepio aquando o assobio do trio frio


o corpo curvo principia a dança

do cisne embusteado

a fraude célebre inculcada

no olho vidrado que com pedras se arranha

[tardio fermento]

pudera aceitar a tralhoada emocional

com a frívola ablação dos ícones entranhados


amenas holotúrias

drástico amar

sai demo do gesto

não do corpo-poema

MIRADOURO μ

pinheiros masturbam-se ao vento

esperma seco que salga

|

a língua

|

tempo de escoar a linfa

depois do tiro falso

bago de uva equilibrado na língua

crepita sangrando substância

franzino cruzar de pernas

fugidios espantos de maré silenciosa

gulosa caravela comandada por juizes

do inculpável manto imaterial

parto difícil

a cebola doa suas vestes

o luar cristalino acolhe o lago

cujo nome é desenhado por peixes

que sangram pelo ânus


o solo da infância remexido

recordações da gruta

do bocal

da aclamada boa hora

[o novilho sobre a palha

iluminada pela tocha pagã]

células esféricas amam espectros ocres


o quarto perpassado pelo olor a sangue frio

o corpo encolhido

e eis que surge o anelídeo de amianto

um galopar de sons hereges

ritmo convulso dogma incestuoso

no entanto

o animal dorme edificando vocábulos levianos

visitando o fogo intoxicado das usinas

deliciando-se com o ranger das máquinas

que molestadas afincam o sentido

da volúpia metálica


o gesto brando sobre a secura da arena

acaricio o deserto aceso

retábulo idiossincrático

derradeira manjedoura

e são robustos os ombros do muro

quando a mão apalpa o mundo

tipo solha atordoada

MIRADOURO Ω

tarefa:

riscar a parede

do cubo gelatinoso

frágil e transparente

e enfrentar a tempestade

com os pulsos garroteados

por tripas secas


¿o que é um relâmpago?

«é o arroto dos céus»

ávido movimento de cardumes febris

a triagem segue o padrão

de desintegração obsessiva

e o desacerto não demora

a favor duma oferenda

toalha nas mãos

sorriso indelével

cume das discrepâncias emergindo

da gula ciente do irmão

falácia da honra lancetada na hora frígida

estreita falésia entre confrades deturpadores

sonâmbulos atraiçoam a película visível

a mão vigilante sobre a adaga agasalhada

ao acaso

partir a telha outrora orquídea

despojada da organização de suas peças


flores e flores comi murchas

dentes rebeldes

energúmenos assassinos

a cintilante visão alimentada de cal


uma voz lancinante perdura

nas vísceras do coração


azeda o vinho no lagar da culpa

degredo ensaiado

minúsculo segredo

¿para quê explicar couraçadas evidências?

decantar as aberrações objectais

é o ofício da coruja que ao lusco-fusco oculta

o culminar dum trajecto indefinido

cumprido por finitos pés de acrimónia infinita


atrás da porta o túmulo

os dedos desagregam-se

olho fixamente para o vazio

detrás da porta

os olhos secam

[a onda engole-me]

a realidade é-me mortal





A REVOLUÇÃO ESPERMATONUCLEAR



o engenho locomove-se libertando vapor de esperma


as batidas de caudas no pavimento

e o sol esventra a criatura

de rompante

tremendo-lhe as faces de terra hedionda

[terra de petróleo embriagada]

tórrido castigo

as mãos magras à procura

do trigo longínquo


chovem flechas atómicas

e a mulher grávida foge

com uma criança ao colo

deixando cair o biberão

de plutónio morno


ó rochas brancas que chorais ferrugem

ó rochas de polpa dura mas terna

na infância dividida em brincadeira

a multiplicação honesta da areia

áspera aveia

para mastigar em peregrinação


as árvores de betão espezinham

os distraídos

são monstros na era do desperdício

feitiço dos bruxos

agora presos num frasco

por terem quebrado ensandecidos a cúpula da estufa

e enxotado os cavalos selvagens da ciência

apontando-lhes o céu

o cérebro disforme expande-se

como húmus

para o ventre da terra


fórmula: absolvição por extermínio

o ar é água neste precipício

então

os pulmões afogam-se

ocorrem explosões rítmicas no tórax

e

surgem pústulas de adrenalina na cara do coração


dos sulcos risonhos florescem os espigos

de cloretos

os genes excêntricos cabalmente atordoados

pelo suor de nuvens electrónicas em confronto


convite para um mergulho no painel fluído

esse mar de químicos

possível dimensão sideral da libertinagem assassina

[artificial espelho colorido]

em que cada átomo entra em coma

perante o festival de estímulos eversivos


em fúria se assina o folclore inorgânico

entretenimento dos mutantes

e um ardor metálico caracteriza

a nova respiração


a estranha ave de rapina sobrevoa aturdida a praça

esfomeada esvoaça procurando um cume

onde possa construir o seu ninho com arame farpado


o eco distorcido do vírus

desdobra-se na sequência de imagens cítricas

[poliedro radioactivo]

corre líquido reatando postos de passagem

nódulos de afinidade selectiva


voo mental sobre a praça

acompanhado pelos ruídos do ADN contorcionista

o mercado da praça:

apregoam-se saldos de órgãos para transplante

as barracas cheias escorrendo ranho

enfeitadas com flores pulmonadas que cospem

para o chão


pontes de osso entre cadáveres a pilhas

esgotam-se de sedução no centro da penumbra

os olhos choram químicos

formando-se uma sombra em cada um dos sepulcros

das pálpebras

onde ferve a espuma da contrição revelada

o fluxo de electrões corre

para o apaziguamento astral


o ser tracejado a força escutando

recriando trajectos soletrados

tão friamente

fiel à fome transumante

coleccionando rasgos de plantas

que a luz artificial propicia

através do incêndio em que o fogo se apresenta

como retornado

recusando-se a deflagrar a milagrosa deiscência

da cinza


as bolsas de pó mágico estão vazias

o pé de feijão abocanhando o céu apodrece de novo

aos quarenta pés de altitude

os rins desfazem-se

e o grito de urina estremunhece

com pedaços da mancha retocada pelos outros

qual dor qual sono

gratos sucumbimos à benção orgânica da natureza


a escrita muscular descreve a guerra oxidativa

lémures organizados tecem

jornada a jornada

os esteios das trevas

e assobiam à noite evocando

antigos demónios


o prato giratório conserva os corpos em movimento

e a mímica provém da confusão dos vapores

emanados pela compota nuclear

do cântaro boquiaberto enraizado na terra deserta


cadeiras volantes ocupam o espaço

rompem a membrana do tempo coagulado


os homens lêem entre si os grunhidos

palavras toscas a formarem frases:

apenas uma quebrará o feitiço


os filhos gatinham nus brincando entretidos

junto ao lago das algas radioluminescentes

onde barbos de branca fluorescência

procuram agitados sedimentos de urânio


privilégio do sacrifício ou até

obrigação concêntrica

a insólita travessia do sonho químico

[hipnose experimental]

mirando o chapéu às cambalhotas no céu

cuspido pelo engenho avassalador

da (pro)criação humana


uma lança nasce do vale

entre os seios da excelsa mãe dos homens

senhores da guerra ¿que tóxico esconde

o tão precioso leite?


os ovários escondidos limpos

cada qual no seu átrio de luz

espermatozóides rondam a armação

até entrarem pelo canal metálico

externo artifício distante do coração luminoso

da mátria

[sem título, Mifa 2003]

o cubo da amargura guardado fundo

sob a influência da supra-violência

de medusa encarcerada

o ódio alimenta-lhe a insónia


o engenho encontra-se permanentemente refrigerado

dois arcanjos ventilam com suas asas negras

sem nunca imaginarem a cabeça que equilibra

toda a estrutura a cegueira é a nascente

mais óbvia


a glande à espreita

e arrumada na prateleira

rente ao chão

uma barriga de aluguer

espera a sua vez


o murmurinho de vacas leiteiras em ruminação

contrabalança o negro peso da ambição

os filhos montaram a tenda

e bebem regalados o sarcasmo iónico

no fontanário fumegante


saudades da erva verde

do seu sumo amargo mas estimulante

saudades do grandioso jardim

[mar de orvalho]

navega agora em pleno nevoeiro o espectro

da caravela debruçada na proa a feiticeira raquítica

decifra diligentemente o futuro na sua bola de cristal

que o gás violeta escurece a partir do cerne


um rebento de avião brota

do pavimento quebradiço

balouçando o pelicano indígena

de estranha inteligência

estudado por uma bióloga

com um balofo coração

a substituir-lhe a cabeça


os filhos montam o papagaio com cartilagens secas

das aves ancestrais que morreram à fome e à sede

no ar

sempre voando amedrontadas

pelo tédio peganhento da superfície


atam juntos o fio

[comprida trança de veias

enrijecidas pelo desespero]

e lançam-no ao ar

à espera que o caldeirão dos espíritos ferva

dissolvendo as nuvens amareladas

adiando assim a tenebrosa chuva de enxofre


o céu ferido pelo gume luminoso

pássaros mergulham cegos

unem os bicos de néon

[boca do sábio tempo decorrido]

para contarem a história do escultor

que numa tarde sangrou a sua obra

dando-lhe vida assassinando-a




AURORA


e agora saber de ti é trair a lembrança do que perdi


recordas agora roendo a maçã

acariciando o oportuno sorriso amargo que te iliba

as noites em que suportámos o peso da paixão

com os ácidos tendões da adolescência

¿recordas? vês passar em frente o desfile carnavalesco

das identidades pueris

[máscaras do zoo romântico]

os animais que fomos em euforia sísmica?

diz-me o que ainda lês

nas constelações florais dos teus sonhos

sufragados com o chá de ervas queimadas

no inverno nevoso cada vez mais presente


corríamos na rua liquefazendo

as montras e nelas a nossa imagem distorcida


o orvalho apressado mancha

de ciúme

a luminosa fruteira

estremecendo o combalido vagão cárneo

que tímido desfila à volta


é doloroso falar das nascentes do teu corpo:

a água quente correndo lentamente

formando um rendilhado de seda doce

ó água que te quero mágoa no meu corpo


sei que ainda usas as tuas armas

pões à espreita os pequenos seres vegetais

dum sonho de qualquer noite

baldio onde a varejeira não suporta o cheiro

a carne morta

e põe os seus ovos no coração dum malmequer


¿onde estavas tu quando enraivecido

quebrei os braços a uma árvore?


anoitece

subo taciturno a nossa rua

e admiro um gato bêbado de amor

com os olhos fixos na luz dum candeeiro público

lambe os dedos das patas

coça o peito comichoso

e procura a lua escondida por detrás das casas


relembro deitado todo o esplendor da prima imagem

saías do banho e uma floresta se abria

os teus pés realçados por pingos de chuva brilhantes

suavemente balançavas de encontro à noite


não brincas mais com o meu dolorido peito

nem ouvimos juntos

o estridor dos corações em dueto


ressoa agora o beijo afunilado da angústia

o amor às fatias ressalva a paixão limpa

dos fungos serôdios do prazer


o anel de vapor não nos circunda eternamente

sempre soube embora me deixasse seduzir

pelo emaranhado de pétalas perfumadas

pela dança das ninfas cuspidas dos tufos

de erva fresca

por debaixo da ponte

onde confessámos dúvidas e embaraços


arremesso ao chão todas as moedas de basalto

que arrecadei

já não preciso de comprar o mundo

e com as mãos livres faço música

entrelaçando as cortinas de aço


fujo dos momentos banhados a ouro e prata

pérfida condição de olhar a ausência

talvez banhe tudo a cobre e bronze


enregelaram os diálogos na estação do frio

os lábios azuis murmuram ainda como facas

que insisto acariciar com os dedos negros

dum ódio cúmplice a morrer no açúcar

das recordações a desembrulhar no último suspiro


terror de te entrever na espuma do antedito fim

vergonha de sussurrar o que no sonho é confessado

aos gritos


arranquei os olhos ao peixe dourado que atento

nos sobrevoava

cego morrerá de tédio

e usarei sua espinha como amuleto


as fotografias ardem junto com as cartilagens

do malfadado peixe

mas não há exorcismo completo

antes que eu arda também


pensava que formado o casulo

a poeira branca toldasse as tentativas de fuga

o brilho das novas visões que vivem

com o sangue novo da ilusão

pensava que fechando as persianas

estávamos isolados do circo móvel

das criaturas ridiculamente vestidas

para o desmembramento de algo belo

que subsistia da sede do desejo

pensava que o casulo iria ganhar paredes carnudas

e cintilaria ao tom dos orgasmos em simultâneo


sobram as ruínas dum império construído

por falsos operários

com matéria frágil e transparente

como o vidro


resta olhar a neve: tudo é falso

a beleza dos cristais sugere a mentira salgada

e o sal cruel

esboroa o casulo gargalhando baixinho


danço com a armadura corroída

[a valsa do engate]

feliz de quem é engolido pelo amor

ou morto

quem conhece a colher do afecto


é tarde

nem chegámos a despir a carne dos nossos corpos

e jamais conheceremos juntos

o jardim das aves coloridas que se fundem

biblicamente

no protoplasma da aurora




O LABIRINTO DO FOGO


da velocidade do que arde resta a melancolia das cinzas


um rosto azulado espreita

«a vida vazia»

círculos de fumo pálido

marcam a presença do ser líquido


esqueletos dançam lampejantes

à volta da fogueira

[a música dos ossos]

dão braçadas a ritmo asfixiante

como se fossem lâminas afiadas

seccionando a labareda com precisão cirúrgica


imagens em movimento

[senhas de vida mordida]

«é preciso aprender a ler as vinhetas de fogo

para condenar o trago comum»


a boca cospe fome

enquanto essoutra

queima sempiterna

[a boca de lume]


corpos sanguíneos enegrecem enternecidos

a cada batida do tambor mole

que desmaia nas pregas do tempo

o chão estremece

surgem pequenas fissuras na pele de lodo

gigantescos pés vibráteis

lavram a planície do último sonho terrento

sacudindo como que desobrigados

a fúria do tímido basalto


martelos espinhosos fustigam a folha de ouro

arrancada à argamassa fibrosa

[células celulósicas semimortas

ou películas fotográficas enrijecidas pelo calor?]


ninguém chora preso às rochas da superfície do fogo

embora lágrimas de hélio celebrem a origem

de todos os corpos movidos pelo calor


envoltas pela fumaça

duas caveiras orbitam inebriadas

experimentam o beijo ósseo

como dissolução do casulo

como abertura para novo abismo


«finta as omoplatas da jornada

esfaqueia o céu vertical

alonga o golpe

rasga todo o azul:

verás o inferno»


a larva dorme em sua casa

o acaso intercepta o ciclo

«lenha para a fogueira»

e de súbito o arrepio

anéis contrácteis dactilografam o corolário

ondulam o brasão real tatuado

que luminoso engole sumptuosamente o medo

à boca da chama em forma de ovo


estes dedos estes ramos cansados

ardem em sentido inverso

na fogueira sobre o mármore azul


pequenas bolsas luminosas

cheias de brasas

[folhos caramelizados

pressupostos corações lancetados]

irredutíveis fogachos do indizível

«é preciso aprender a linguagem do fogo

usando seus ditongos

para renunciar ao gelo estéril»


o vidro derrete

instaurando o silêncio

¿como ouvir o fogo

nesta câmara escura?

os tímpanos embarcam no furacão de cinza

«fecha os olhos

não ouças os soluços da criança assustadiça

e enquanto ardes encurralado no infinito

permite que o fogo povoe o teu sangue»


a parede marcada pela teia de nicotina

ecrã:

músculos dum vermelho brilhante

entumecem ao olhar

o corpo sem a pele

«eis o animal verdadeiramente desnudado»

tudo o que o todo revigora

diluído no copo que o olho transforma

a serosa frágil toca o ar e ferve

[a imagem real sintetiza a mental subsistência]

o muco movimenta-se em direcção ao foco

rede:

minúsculos raios de soro incolor

aprisionam o observador


onde está a terra? porquê esta pólvora seca?

a fome ordena neste labirinto

não adianta compreender a ameaça

dos archotes acesos que alumiam ilusões

[pupilas artilhadas

pestanas queimadas

pálpebras flageladas]

«põe o dedo na minha chaga

recolhe o coágulo da afinidade

apaga esse borrão na labareda

verás que o sangue ressuscitado

se refugiará dentro da tua pele queimada

e esse teu dedo será o marco

do nosso novo estatuto:

seremos irmãos de sangue pelo fogo

e irmãos de fogo pelo sangue»


contemplar de novo

as folhas de outono em brasa

espalmadas entre as folhas do velho diário

que tem como marcador

uma fita de sangue corrente

[a escrita do degredo]

a língua podre

as nervuras dos olhos incham

[condensado mapa dum outro sentir]

são benzidas palavras paridas

e afastadas as que não seguram as letras


seguindo o rasto de gelo da lua

redemoinhos de espadas a quente

confluem de empatia

aparente sorvedouro complacente

é o trato cénico da voz umbrátil

a sós com as centelhas do sol

[coágulo de esperma inflamável]


a fogueira arde ainda sobre o mármore azul


«conta os seios das flores

junto à janela de fogo

é chegada a hora de amamentar

as almas penadas que se escondem

sob a epiderme dos objectos


reparte o leite perfumado

por aqueles que esgotaram as reservas

dos seus cofres de pólen»


o incêndio digere a árvore das árvores

[os pulmões secam]

«escuta o que o fogo tem para dizer»

ardem florestas inteiras cá dentro

é este o verdadeiro incêndio

que vive preso na caixa torácica

¿como cultivar de modo ordeiro

o elemento ígneo dentro do peito?


o tecto da casa assume-se líquido

desfocado aos olhos

debaixo enxerga-se

a face do lago que não espelha

[o portal]

um anjo desce com suas asas de alumínio

perpassa o tecido esponjoso

dum carmim submisso

mantendo hirta a postura

os olhos inflexíveis

e suas mãos firmes

exibem o esplendor do cálice de fogo


«não fujas

aproxima-te

bebe pela ferida do lado direito

[boca da redenção]

queima-te

não tocando


em nome do coração que alumia quando morto

cinjo-te com a vara angulosa da aurora»


os esqueletos caminham taciturnos

rumo ao cemitério

[a procissão das almas]

cada um com sua vela acesa

«eis a noite com linhas de giz entrecortadas

e gritos de luz no estômago»


a dança aconchegante de corpos

um estilete maduro ao rubro

e há fumo azedo

[azia do desejo]

«espreme as laranjas ácidas

da última paixão

e massaja o corpo teu

que em teu corpo se encaixa»


mãos esquecidas afagam

o rosto perdido da memória

«esquece a doce perfídia do desencanto

vê o sol nascer de novo

e visita teus irmãos de fogo

para nova reunião

na véspera das núpcias do gelo»


choros

uivos sincronizados

e depois o mórbido silêncio

[a lua trespassada pelo gume do icebergue]

jaulas de náusea com pálida luz

a esbofetear os rostos de lume

«entoemos cânticos de absolvição e de degelo»


partir à procura da flama

que o círio híbrido celebra

num barco com sua quilha

apontada à ferida do norte

[flecha de lava que oscilando desenha

no espelho d’água

o rosto queimado duma virgem em lágrimas]

partir à procura do pavio machucado da vida

num tapete chamuscado que sobrevoa

a praia de cinzas

cuja insígnia de ignição

foi bordada com linhas de neve coloridas


o ancião apresenta a marcha lunar

em torno da fogueira bravia

esconde o rosto com as mãos

como que por vergonha

e profere em surdina as sábias frases

do mestre que comungou

a volúpia do mármore enregelado


a labareda respira suspirando

e cada suspiro ecoa

nas cabeças dos atónitos discípulos

[a lição do fogo]

espera-se o lampejo do oráculo

o desabrochar da gema excêntrica

a noite como ouro negro

[genuína vigília em honra do miraculado feto]

«eis o solene baptismo na pia de fogo

onde se forja o coração»


a noiva palmilha a passadeira de centelhas

traz as mão cheias de cera

seu véu ondula

[vem suando sereníssima]

o vento assobia e aviva as rendas de fogo

arde o vestido assim como o corpo

ardem sem o nome imposto

«eis a tua esposa

celebra esta aliança com a erupção do beijo»


a insónia cavalga pela noite dentro

um arcanjo negro quebra a cápsula de néon

carrega nos braços uma criança morta

aspergindo luz doentia

sobre o luar circuncidado

que delineia buracos luzidios

[câmaras de cinza centrípeta]

onde óvulos e abortos foram incinerados

«acaricia os abrolhos desamparados

aqueles que secam ao primeiro contacto

com o mundo enxofrado

descarna-os depois e exibe as peças florais

que farão parte dum templo noutro sonho»


o calvário move-se enquadrado na dança

os esqueletos benzem-se com histeria

e depois um silêncio de fumo negro

«pinta as faces do rosto

com o negrume crepuscular do incêndio

e arranca as estalactites do queixo

pois essas lágrimas não te pertencem»


as giestas vestiram-se de luto

povoam o ermo

que lembra a pele dum braço suspenso


entra-se na gruta dos excomungados

protegida pelas cascatas de fogo


as mãos molhadas pelo medo

[oportuna miragem selvática no beco]

apalpam o rosto da rocha saliente

«lê os mapas do inferno

encontra o capcioso altar de anfiboloxisto

e ao ajoelhares-te

perante o magno olho de rubi

que refulge no peito

dum querubim em mármore azul

há muito adormecido

marca a palma da mão esquerda

com o carimbo oficial do purgatório»


o mal desenhado pelo bem desorientado

¿quantos são os sais culpados?

colisões de iões no corpo

o dedo apontado à estrela

[pirilampo do universo]

inflamada de choro


são falsas todas as sombras

que caminham à luz do dia

só à noite é que a sombra genuína

vagueia pelas ruas fugindo das outras


a verdade ensinada é mentira apregoada

pois na espada que se herda da lua

raia o sangue maldito que anima o ser

ameaçado pelo gume de gelo

cujo reflexo desloca o pensamento

atravessando fronteiras inimagináveis

¿de que cor serão os cactos da lua?


hexágonos a carvão definem o pedestal

[supedâneo concêntrico que se bebe do espelho]

quando só

uma pirueta explosiva

[o mergulho na noite]

esbracejando engolindo mágoas esperneando

e quando se dá o beijo

em profundidade

na testa febril do imo

a tertúlia de alucinações obtusas:

o duelo entre iguanas assassinas

o vinho arreganhando os dentes

a cançoneta amarelecendo os dedos da amante

um duende orquestrando estrelas-do-mar

com um fémur

o carrossel gigante lentamente movido

por escaravelhos mutantes


cheira-se o óleo da engrenagem mecânica

o coração perfura o colchão e aninha-se


uma geada miudinha

reata o monólogo de subsistência


reconstituir a casa

colando farrapos de húmus

com o gelatinoso muco de ossos quebrados

pelo ranger tenebroso

da carruagem dos mortos

reconstituir o espaço de cartilagens oscilantes

humidamente amadas

pelas mãos sujas dos outros

reconstituir a escrita da carne

escrevendo sangrando

sem saber como estancar o sangue

[o regresso ao jardim das estátuas de bronze]

resta lamber a tinta amarga

rasgar as páginas do martírio

e lançá-las à fogueira


o sémen luminoso escorre na ampulheta

[ferros em brasa como prelúdio

a mutilação mental dos sexos]

arde o tempo na fogueira doente

a branca alma navega nas chamas


um ente de fogo paira

acima da cabeça

respira ofegante na sua ampola intocável

morre e ressuscita em cada espasmo

de renúncia


«prepara-te para o derrame

não te esqueças nunca

do teu fantasma de gesso e arame»


errando no salto o símio é engolido

pelos pulmões de fogo

os pêlos queimados

segue-se a formação da crisálida

e passados os quarenta dias

uma mariposa de cristal voa

com suas asas pintalgadas de crateras

rumo à ilha dos regressos


o templo afigura-se cabalístico

porém o perigoso limiar aflora nítido

e a pele eriça

«bem-vindo ao museu das espécies extintas»

o espaço do passado reanima-se

e rompe as carapaças

de cada sufrágio metamórfico


uma bomba alojada no tórax

ameaça explodir em cada quadrícula de tempo

e os nervos são os cabos de aço

da máquina semimorta

[autómato arquitectónico assombrado

pela biomecânica emocional]

a multidão cala-se e cada um está só

o tempo pára

«escuta o choro sentido dos crisântemos

no adro das lamentações

e quando entreouvires a tua voz

abrigada no xaile que as outras ainda tecem

estremecer-te-ão os intestinos

como desmaiam as flores no inverno»


o olho fragilíssimo gira cristalino

e frágil

[ferramenta da irmandade]

planeta dos múltiplos espectros

que se interceptam ininterruptamente

gira até imobilizar-se de abrupto modo

e cair certeiro no ralo da fogueira


entra-se na casa do fogo

as entranhas do corpo assemelham-se agora

a cândidas flores de nenúfares em festa

«se olhares em profundidade o horizonte

acima dos ombros da criança

que aquece suas mãos de leite

junto à verdadeira face do fogo

verás que as sombras dos teus irmãos

são montanhas que se elevam irregulares

mas com a mesma pulsação»


a casa vazia

de tudo quanto enche

as paredes de lava fluida

[ondas assassinas beijam

fragmentos de icebergues]

e pelos corredores circulam

ventanias flamejantes que acalentam

o coração amordaçado

cativo no quarto escuro da casa

«entra de pés descalços neste templo

e empunhando a sarça ardente

purifica todo o teu corpo passando-a por ele»


o antiquíssimo fantasma das labaredas

[nobilíssimo gladiador vencido

na perpétua guerra das trevas]

surge pouquíssimas vezes

após um brevíssimo clarão laranja

de semblante fugaz e ilegível

com seu corpo coberto de pêlos em brasa


uma cobra amarela rasteja na planície lunar

seu olhar cego fere o mundo

reinventado pelo ser em novo dia

aos outros alheio

[a fogueira boceja]

arde o tempo

e tudo recomeça


para quando a visita aos bastidores?


horas de marasmo descomedido

minutos de sujar os dedos

com a tinta de paisagens instantâneas

segundos de equilíbrio na corda bamba

[apetrecho da grande farsa]

ensopada de adrenalina


recebe-se a frígida notícia

[um irmão de fogo

apagou-se na última noite]

um calvário ganha contornos

sete punhais trespassam o crânio

e o cérebro sangra azedando aforismos


o velório diurno

[última visita]

morrem por dentro os irmãos vivos

mordem as veias arranham o peito

vestem o luto

[túnica negra e cíngulo vermelho]

forma-se o círculo das pupilas de fogo

para última homenagem


aninhado sobre os pés do defunto

um mocho moribundo

as penas carcomidas

empestadas de suor frio

os olhos pardacentos

voltados para o nada absoluto


o mestre fecha a urna

com estampido ensurdecedor

e os irmãos iniciam a procissão fúnebre

até ao cemitério


«à terra tudo é devolvido

o que é jurado é esquecido

coração de carne é coração de lama

perdido está todo o tempo sofrido

aparta-te do teu fiel ouvido

pois viverás d’olvido na tua última cama»




PERTO DO CORAÇÃO


apesar da ambição sempre se vive perto do coração



a página incha

soro

palavras densas confessam o litígio

seiva num minuto lugar

masmorra familiar ou o pátio das injúrias

garganta da árvore = casulo carbónico


«nasceu a espécie de morfologia rotativa»


agora réptil, rastejar em honra do graal

aliás cobra

[cobrar o ouro dos dias]

e depois olhar a lua

perder as escamas

húmus


quero a culpa em botão

para aprender o gentil modo

de espicaçar o cacto

¿quem começou a linha?

que faço no meio?


«está aberta a caça aos animais do amor»


farol erecto

perdigueiros morrem afogados

beco

execução da separação

coração procura-se


lição:

se pára o coração

separa-se a cor

do que é são


procura-se o eremita que dá

pontapés nos astros


Eros morreu


o sopro devolvido

aqui

na angra do mal-estar

onde a dispersão é honesto fruto

do indizível senti(do)mento

com prurido doloroso

sob a pele


encantamento macambúzio

ou nova sessão do ritual lunar

já viciado

pirilampos esvaem-se em fogo

[presságio-pão]


«chegou a carruagem do pandemónio»


o fugitivo apresenta-se

entra na carruagem sofrendo espasmos de toda

a ordem

e ao deparar-se com o rosto do rapaz de cristal

é engolido pela titânica onda

do nojo


a fome desdobra-se

em cada esquina morre o alimento

à imagem do corpo docemente débil

a norte

brilha a esfera que o som sustenta

e desflora com azedume


a boca rasgada

os dedos cingem o território árido da sedução

a romã feminina sangra desleixada


canto integral todo o mal

a facécia do estômago em explosão

um bramido canção

a mão como real sonido

perdão


canto integral todo o mal

o riso do andrófobo funicular

revolta do lobo forçado a uivar

e na lua o arcanjo

receia pisar o arranjo por acabar


fixo ponto

dor aguda no peito

coração enlouquecido = semáforo intermitente

espreita-se à janela da flor triste

¿valerá a pena subir até ao cimo

pela corda de estames secos entrelaçados?

a teia do contrabaixo sustém a flauta que hipnotiza

o ovo oco

dúvida, dádiva da vida

dado da diva adormecida

flor selvagem

ou

onanismo subversivo


lavagem ao cérebro com detergente vulgar

reinventar o ser numa semana:


SEGUNDA-FEIRA

caio no útero da terra queimada

e envolvido pelos folhos duma placenta

renasço da prosa tubular ensanguentada


TERÇA-FEIRA

mergulho perdendo o ruído

na noite plácida irrigada

seduzindo a trompa d’água gemido


QUARTA-FEIRA

distingo o solilóquio dissonante

da bravura imitada a partir do rochedo

escamoteando o diálogo agravante


QUINTA-FEIRA

inscrevo a noite no meu peito

sombra derradeira ou espelho

como prelúdio dum sonho desfeito


SEXTA-FEIRA

desafio a barganha miscigenada

e inalando a aragem retalhada pela abelha

ostento a centelha da palavra nomeada


SÁBADO

vejo a fome sobre a mesa

e desenho o estranho fruto latejante

que repousa no balaio da camponesa


DOMINGO

vivo no colo das algas negras a hora vã;

nutro-me da celeuma do verso entoado

pelo poeta surdo que crê na lua órfã


regresso assistido

os ombros limpos após a viagem

cinema de sucção película projectada

na parede do quarto

forrada pela pele extrasensorial expandida:

cromossomas abraçam-se comovidos

duas alforrecas apaixonadas brindam ao amor

valsando com as campânulas a arfarem

em simultâneo


coração marinho = coração solto do feto


a ventania orgânica nos corredores do corpo

[sístole]

a sombra devolvida renovada

com seu vestido de oxigénio

que se desintegra à sua passagem

por todas as igrejas do corpo

e quando nua esconde-se

repetindo a pequena escala

o Jardim do Éden

[diástole]

regresso de tudo quanto vive nos subúrbios

arrancam-se pecados celulares

sílabas do cancro e o mal gasoso


o grito subsiste o azul

do vulcão enfurecido


sobreviver com os estigmas acesos

sobrepondo dolorosamente as paisagens

assegurando víveres para a dança

das vísceras

para que a bandeira negra da casa clandestina

seja hasteada na décima terceira lua cheia

em que os fantasmas descem navegando

[filamentos de leite translúcido]

terríficas ondas de enjoo

que delineiam os pulmões com as lâminas

doutro sentir vigiado pelo ouvido murcho

da câmara morrente


colónia de fantasmas = aorta pejada


as mãos imersas no mapa movediço

balouçam em sintonia

com o alarido da manhã em que colho

rebentos de topázio desabrocham

virados para o tufão


a rosa tal como a pele rosada mancha

ao contacto frívolo

e o edema traz a morte roxa dos excessos

enquanto que a flor da dor vive

do sangue pisado

e purifica-se no silêncio dado entre os estilhaços


perímetro da flor = periferia do coração confuso


desmaiam as pétalas da agrura passional

a voz última suspende o cortejo


«olhai a flor engasgada»





O POMAR DOS MORTOS



último acto sobe o pano mortos todos os actores



a rocha magnânima deveras intocável

no entanto apunhalada à nascença

¿morta?

não

eternamente viva por nascer morta

a vida é o outro que nos mata


¿como colher o cogumelo hemofílico

que se prende à rocha como a rocha

se prende à morte?


reconheço-me agora estranhamente

repetindo na retina dos olhos

o caos das coisas que se derretem

depois de olhadas


¿magia ou poder?

ver para ser?

ou então «nada»

mera ilusão?


à saída da feira dos fantoches

um visco grumoso arranha-me

a garganta


ao ser descoberto

liquefaço-me

e entro num sulco desconhecido


o arvoredo equilibrado na ponta do nariz

ouço passos

a sombra regressa

o trilho desaparece


pedaços de fadas espalhados pelo bosque

abantesmas aflitos entrelaçam-se confusos


o anão verde surge

protegido por uma

esfera transparente

brada:

«fujam depressa

refugiai-vos

na bola de cristal»


persigo a borboleta que rouba

a cor ao carvalho

até ao horto dos corvos vigários


pontos transversais

substituem ímpetos que somados

equivalem a zero


guio-me pelo eco poético

[bruma em sangue por chorar]

até ao cais do roxo acre

e despeço-me do que não vejo partir


volto para trás deambulando louco

e sem dar por isso

adormeço junto à fonte dos pecados


acordo ouvindo a cantata estéril

[a esfinge do medo]


canta o parvo sábio:

«cremado na circunferência

em jeito de absolvição

sorvo a exigência

o ácido ilegítimo do tendão

canto desafinado

o hino da criação

rodeado pelas arestas

do pesadelo

canto a orgânica da indefinição

o ritmo cardíaco

do enigmático flagelo»


e de seguida o sábio parvo:

«o arguto gesticular insípido

encrespa o tacto

em busca do segredo

não há paixão nem cupido

e a última palavra

o último degredo

da cinza ou corpo ressentido

é a resposta à esfinge do medo»


en-tarde-Ser

eis a hélice ensanguentada

do devir


a noite gulosa aproxima-se

rebuçados entopem os intestinos


o automóvel morreu de congestão

auto da pasmaceira

móbil arabesco

[o recreio]


tentilhões etílicos

debicam o cenário


[risos]


«sou um sobrevivente ferido

no matagal das sombras


apresento-vos a maldita terra dos espelhos»


trabalho incolor da alegria cósmica:

esculpir o gelo

sob a queda eminente

das estalactites que contornam a noite


procuro o buraco negro do silêncio

nuvens alinhadas

brancas vértebras móveis

doce calcário a pender no azul

benção ou

desejo de morder os cavalos do sol

que relincham cansados


dedos sequiosos remexem as pedras

libertam leite ósseo de suave aroma

mergulham no âmnio

e acariciam o feto que não nascerá


uma musa de luto bebe o chá

dum corpo a atingir o orgasmo

que solitário se despega de tudo

e se retrai culpado


o sangue juvenil é agridoce

[combinação de giesta e pólen]

resina espessa reservada

para a ressaca junto ao tampo


as notas musicais desconhecidas

aconchegam o sexo

bêbados perseguem à noite

borboletas narcotizadas que deambulam ansiosas por

beber a luz

que sobra da janela do quarto onde dança

a filha do semeador d’almas

dona e senhora dos homúnculos


é ela que guarda a máquina das sementes

o cerco criado a partir dos versos de jasmim

cânticos enegrecidos pela agonia

da minúscula criatura de cinza


¿onde perdi a pérola da imunidade

ao forjar alvéolos factuais?


não escapo à sogra da verdade

tragam-me a saltitante refeição ancestral

e o vinho sangrento


mórula de tecido a boiar no lago fumegante

¿nevoeiro como fim?

propósito de início ou halo perturbador

que arrebanha os corpos num só fôlego?

o fim?

quem sepultaram nas rochas?


raízes gigantes cercam-me

perdido no tempo

[jaula carbónica]

os lábios secos cheiram a maçã


«ó mãe do cataclismo subversivo

lava a culpa dos homens com o teu choro

e gera em teu ventre frutos já podres

imunes ao sofrimento»


¿quem ainda

por entrar?


às vezes

olhando uma cabeça em profundidade

quase perpassando-a

concentrado embora impaciente

consigo observar o bico mágico do andorinhão

sobressaído do ouvido

que rodopia incansável

namorando os insectos até comungá-los

num acto célere e subtil


alguém gemendo oferece talhadas de oxigénio

carrega nos dedos a preguiça de atender

o telefone que toca incessantemente

junto à cabeceira

segregando o muco da indiferença


d’ontem a pausa comestível

relançada no vagão da desonra entrecortada

[espasmos irregulares

pulsação esquizofrénica

vómitos doentios]

hoje

arrancadas as fibras coronárias

da estátua anoitecida no pensamento

beber-se-á a infusão de líquenes amargos

linfa do distúrbio suicida


eis a ascensão dos aracnídeos assassinos

que silenciosos bebem álcool

e segregam

o veneno vocabular


«ó tu que morres lentamente

ao longo das décadas

agarra-te ao alguidar

e concentra-te na cobra de sal

que lucidamente nada

pois ela irá te expurgar a azia

que mancha os pulmões


atravessa a moldura de água

que ondula na bacia»


lábios de cinza

beijando as paredes

do aquário de seda


peixes hipocondríacos

alimentam-se de algas nauseabundas


um feixe luminoso torna-se corda dorsal

da água


luz suja nas escarpas

gotas de chuva lodosa

[o sangue dos fantasmas]

a cidade corre para a loucura dos últimos dias


torna-se inútil desculpar

a agitação frenética da ignorância

turbilhão insalubre

ínfimo crepúsculo deglutido na escuridão

do lúmen da arquitectura cilíndrica


a muralha aflita cerca o boato

vendaval de serão

caras rendidas ao abismo personalizado

sucumbem infestadas de caroços

de betão


pés de talco deslizam nas lajes luzidias

que transpiram clorofórmio


estacas humanas dissecam órgãos frágeis

rasgam inadvertidamente serosas

bebem metodicamente fluidos corporais


a mulher feia abre os braços

plana sobre a noite

a lua escava-lhe o rosto

aterra na esplanada

resta-lhe ler a triste sina nas constelações

de grãos de café


o outono choroso amarelece os folhos de carne

breve instante de hesitação

à entrada do pomar dos mortos

[os frutos caídos]

e pesa tanto este capote bordado no silêncio

com fragmentos de vidro aguçados


se os mortos tivessem asas

o penoso olor desapareceria

e poderia saborear o genuíno perfume

dos limoeiros


cara negra enquadrada nos latidos

do violino branco

[identidade surda mergulhada

na caixa de sons]

ofício da indagação

viver a trincar o betão

diário de bordo escondido

entre o tórax e o abdómen

entre os pulmões o coração

e o fígado o estômago os intestinos

a multicolor solidão

resume-se à acumulação de calcário


impressões que se arrancam da dor

passos no pátio gélido

[uma pegada plangente

gravada na laje do impasse]

rajadas de dissonância

murmúrios

ouvi-los torna-se mutilação somática

a pele transparente mostrando o carácter

da carne

o silêncio rasgando a postura


a dor da criação é serva da imaginação


a lâmpada do remorso rouba luz

um veio de água fúnebre absorve energia

[estaleiro dos poetas sem cabeça]

sortilégio infindo amortizado

pelo solene artifício do desprazer crónico


batidas inebriantes cegam

o insofismável ensaio

¿será legítimo seduzir o conteúdo dos hiatos

para arrancá-lo com veemência desnecessária

omitindo o presságio nebuloso do equilíbrio?


sonolento embraveço esguio

oriento as mãos no interstício

entre a superfície do corpo

e o vácuo


o complexo ser de números

cria a infusão que conquista

o sono


se sorrio minto

como semente atrevida

esfrego os pulsos nos lençóis

pouso lentamente a cabeça

e extasiado pela vertigem

adormeço