Nave de Âmbar


[Chiado Editores, 2016]


ouves eu dentro a consertar raízes

ampliando a vegetação

colhendo frutos sonoros numa nave de âmbar


silêncio ― cristal de respirar

à espera dum desaire

na plataforma transbordante


, às vezes não sei que luz


o nada é o nome envolto de nomes

[turbilhão nocturno]

se o espero também o perco


o meu nome

entre osso e carne no tórax

funciona uma boca no peito ―


viver pela dor [agulha no vinil] confessá-la

a uma lâmpada prestes a desaparecer

: o coração, casulo de teias cansadas

também câmara invasora de leitura


o céu, a estrada, a noite, a casa ―


procura premissas de linhas obscuras

rigor de substâncias que diversificam

a batida, o ritmo, o antro


fruto pesado se poesia no mundo?







a pele, uma fronteira movediça

engole qualquer capacidade de narração

ou ilustração


, move-se sempre doendo


[mapa sanguíneo]


por minas, neurotransmissores ― a pele-alfabeto

sem a vontade da electricidade d’espírito


termina o idioma nos lábios, ficam vidas presas

bandeja para o envelhecimento humilhante

game over ou brincadeira de cera

enigma apaixonante: o suor, os cheiros

há na mesa uma carta e uma chave

sanguíneas ou não, um mapa







vem da resina

do lugar-pedra este sono transformado em poema

a delirar pensamento profano

físico ― brisa perfumada de cansaço

crepúsculo baldio recente a ajudar os olhos


vasto e vão o brilho

conflituoso nas episódicas vinhetas


. de destruir o tempo


erraticamente a mão-em-coração empresta

biologia às pedras

mancha-as com suor


, uma passagem ―

trabalham os grilos à noite

ambiência e persistência, trabalham

a minha paciência


o pormenor dita a estrutura

que o diga a escala desconcertante

da perfídia repetida por asas pequeninas


: a estridulação estrumando o puzzle do universo


redimensionar a geografia, que geografia?

recalcular distâncias e sentidos, que futuro?


desculpas ― pouco pó, pouca paciência

e trabalham-na os grilos







foi, a falha entre bocas

desconhecidas poldras do isolamento preciso


[badaladas ocas da intermitência]


a falha que cresce diminuindo o mundano

áspera farpa medicinal


que o caminho é de continuar

o coração entre os dedos e a cera quente


a alastrar dentro da noite o perfume da canção ―







a bruma não percebe o brilho metálico do século

mas o nervo estala ―


de que serve o braço ao poeta

se na imagem desmembrado se espelha?


e ele voa, o braço

apartado da anatomia castradora

voa no papel a decantar depressa

o vinho das lágrimas

o sémen estragado das plantas e dos animais

para deixar de ser braço


um ramo, vinho e alguma água ―


nenhum altar







incomoda-me a sombra invisível do vidro

dividendos do fantasma da geografia


talvez, uma soma estranha

números alquímicos numa voz que se entranha

nas vísceras ― o almoço trouxe clarões

próprios da angústia feliz das pequenas coisas

incessante, acrílica, sem olor e

por vezes aflitiva : é-me dado a entrever

combates entre polímeros, selvajaria orgânica


a invisibilidade da sombra ligada ao vidro

estremece qualquer probabilidade de recomeço

no assinado vazio deste momento

uma espécie de mancha biológica rude, patológica

prejudicial na leitura de mapas consanguíneos

diadema de febre propenso ao desequilíbrio

uma voz a descer, a visitar os órgãos um a um

toque de cerâmica, os olhos

segunda pessoa ―


vagão rápido para o eremitério

livros e terra, confissão e bafo

esperamos como se houvesse

um entrecruzamento de essências

passeando o cristalino dos olhos

na cumplicidade do café


mas a espera, mero luto da ignorância entediante

na tarde traz papel e caneta ao pretexto

já não há lugar físico nem tão-pouco café

apenas quem escreve e quem lê

agora







perdi a ampulheta com que media os sonhos

penso que ficou nas costuras de um deles

provavelmente no do mel bravio das areias

diário do poeta de perna amputada

(talvez voe como o braço)


a escrita magoa o sangue

o dia magoa a noite


, até que não fazia mais sentido a ampulheta

esse punhal de freud desentendido

nas vírgulas do tempo







virtude de dormir ― guardei o caderno

junto ao coração, o tórax como gaveta


pode a cama ser um grande continente

planície de perfumes contraditórios


, uma película fílmica a divorciar-se da pele


[cubos de açúcar, fotogramas na boca]


denúncia de ervas aromáticas na saliva

emprestada ao pudor do raciocínio







funcionando como um vitral a noite

com luz e contraste folheia a brisa da manhã

como amêndoa suave das horas em que se ama

sem entidade, identidade ou rosto ―


um agosto primaveril, foz de tumulto onírico

foz respirante dos seres mais frágeis

que pela lua azul tornar-se-ão habitantes

do coral branco, prisão humana


[água vazia no escuro, peixes tremeluzentes]


sob o prisma do vitral nocturno

a linguagem lenta das estrelas

a pétala nox

tangência do sangue liberto

porque selo fictício e moeda dos sonhos

envereda pela estrada de sal

acima de qualquer amplitude das mãos


força de género inclassificável

terreno fértil à bizarria de loucos desidratados

e ao passeio da frase-faca pelos corredores


«amar o falso pólen»


pólen ― mais tóxico que o ouro

sabe-o o exagerado pé caminhante

na noite que se avizinha







segredos no feno acendem rostos na escuridão ―


fazem temer incêndios nas parábolas úteis

ao amor


, raramente se consegue visualizar o tabuleiro

um jogo de nudez


difícil de perscrutar limpidez às vozes

mescladas que estão pelo desespero à comparação


da fluidez dos naipes a adrenalina a ensandecer

o coração


. um crematório de segredos







doem-me sílabas algures na espinha

indago se não foi dito em círculo impróprio

sílabas a não remurmurar, azedo de almofada

pelo menos até a noite me engolir

só quando sentir crescer as ervas em redor

ver livre o cavalo branco

e baralhar os limites à terra, ao mar e ao céu


as palavras inteiras perderam todo o sentido

somente as sílabas internas magoam e cintilam







no centro da laje fria a árvore dos corvos

gere sabiamente o gelo dos defuntos


ignoro que fruto dá esta árvore

«espécie de damasco» ecoa um boato


[lágrimas pretas]


o mistério reside na raiz ―


se tivermos a laje fria como um corpo

veremos a caverna onde entrelaçar algas e música


, o frio passado directo de ouvido em ouvido


. resolver a árvore ― cumprimentar o granito

aos fantasmas


«senta-te aí»


os corvos afastam-se

arame de anjo, domínio-alvo de glória religiosa

tremendamente nocivo pensar

com ovas estragadas no céu da boca


descendência peculiar ― quem estava de saída

reentrou


a biologia é de chorar na despensa, agora se sabe

sobre o remorso linguístico altamente casuístico


[castiçais, muros argilosos refinados]


ó alma ― o anjo, apesar da fama, anda perdido

perdido







pouco fiável entender a bênção alheia

revoada amarela ―


e surge de repente essa luz literária doente

enquanto obra-sepultura quente, medonha


fedor humano genuíno enfiado em roupas velhas

gemidos e tremores decalcados nas muitas páginas


até que ponto verdade, abnegação?


doente mas macia e fértil a luz

do que se apagou no corpo amante


[extinção abençoada]


, escabrosas espinhas inoculadoras de erotismo


assim ler, dançar com agulhas o tempo todo







, e com o sol curvo


deitado uma montanha, vejo-te ―

memória suada de música, de nós

parcelas da noite acordada


não-sentido precioso ser-se incondicionalmente

para ser separação fraseológica

isolamento forte amor, não comiseração


de me soçobrar no sol, trago-te


[água | areia | flores | sangue | beijo]







escrita ― ar frágil mimetizante

hoje um coágulo-planta

conflito aflito, tenso e omisso


. a folhagem-de-ser


, tudo poderia resumir-se a isso

seiva amarga e glóbulos vermelhos


duro dia, mímico

|

animal e planta

talheres e livros


hoje comi um livro malpassado







: da velocidade organizada. que

substância-gema justifica a fluidez pragmática

no quotidiano?


entenda-se cinética microorgânica

no acto ― flashes excêntricos da carnalidade

mas concêntricos porque gema-energia imediata

entenda-se, não pedra nem proteína

substância ágil nos nervos digamos, para uma

paisagem reflexológica do indecifrável

arbítrio







álcool | paixão | visão

líquidas arestas do socorro

nenhum dos elementos

funciona destituidamente no escuro


[marés nos olhos aleijados]


como confessar ou denunciar

a dimensão da crueldade?


. vermelho na planta, choro-de-rua

isento passeio de vísceras sozinhas


pode mal-amada pessoa vincar o copo

gritar-vertendo o nome de quem ama?

poetizar a queixa mundanamente roubada

à circunferência do mundo?


poetizar sim, acrilicamente, essa lava-coração

do que se sente poema impossível de dizer


, de resto vómito ocre no papel


a força do brincar pesa indefinidamente

no bêbado, no amante, no poeta ―







o céu quebrou ―


chuva a ferros de desenterrar fotografias

a terra contente, a família fendida


verificam-se outros anos de poda genealógica

lê-se o espelho-de-sonhos ao sofá amordaçado

temo a urgência de escutar no lúmen do vazio

a casa respira pelo mofo tecidular

expande-se de sobressalto e subtrai-se pelo medo

que a humidade fala, incendeia vida nos quartos

e corredores


alguns livros espreitam, os mais musculosos

com sonâmbulos dentro ―


a zona : ruídos empalidecem paredes

ficam translúcidas e vulneráveis


ninguém está preparado para receber o estertor

duma casa, paralelepípedo exaltado

ideia-origami na incerteza da geografia

continuamente adulterada pelo fantasma







, a pele da barriga escapa à unha rasante


. outra vez caído na fundura do gelo

perdido na inépcia do colchão micelial

embora o labirinto disléxico da alma revele

a máscara de magma


[animal de lume à saída do raciocínio]


! entoo repetidamente o gutural eco

do que ainda se reserva de humano


(nunca percebi o que há de radial nos espinhos)


ir sob unhas na noite ―







de volta ao lugar que acerta o relógio

um funil do tempo [centro do tapete]

perigoso relógio cardíaco perto do barro seco

com a sombra de vento antigo


pudesse explicá-lo por escatologia

referindo a dobragem argilosa de casas timbradas

no varão pobre







ninguém adverte o palco móvel às personagens

nunca


[caroço-de-fruto]


cenas aos supetões

risos guilhotinantes

ás de trunfo e punhais


o gesto técnico na armadilha floreada


, personagens articuladas. tudo tão mecânico

como a morte







saúdo o íntimo esqueleto da aurora

reverberando erradas cartilagens por selos


nada a confessar ou a sujar neste lugar

antes infinita espera de consoantes e vogais cruas


de cor e silêncio este refúgio ―







mal-vindo grito convoca estragado o âmnio

! a campânula d'ouvido


[síndrome de plath]


quando no banho recebo a água vulcânica

para uma amnésia benemérita

e me queixo baixinho do desamor-detergente

vibra-me a água no interior dos ossos

com sobras de suor alheio amado ingenuamente


esfrego-me auscultando cioso a mesoderme

e provo a babugem de barro vermelho que aflora

nos dedos ― sangue das estátuas sobressaltadas

feridas na noite dos medos

como começar quando o começo é uma recusa

estigma dum cálice que não evolui nem se adapta


: o duplo é irmão ou arqui-inimigo?


e a flor vê a probóscide

simples como uma linha

um verso | uma canção

então um pântano onde

o espectro se esquece


mentir à orquídea sobre a mudança

enquanto indígenas confessam o ópio cerimonial


, tal é a compaixão por cabelo e tristeza







e se um livro morresse? se por doença

dos textos apenas restasse uma sombra?


preocupa-me pois a fisiologia dos livros

como a saúde de uma verdadeira amizade


apercebo-me disto ao ver as teias sanguíneas

nos objectos contíguos à personalidade


porque ler é dar força à árvore, veias

como páginas vivas rentes ao fazer







esquecida a caveira defronte a consciência

capturando o traço humano à imagem

[umbigo de gelo por paisagem] procurando

um útero no verde ― que a identidade

nada deve à moralidade


[passagens a mundos, gavetas de escritório]


enerva tanto saber, a criação matará o criador

e ele entenderá ―







o duende vê uma ponte de madeira a afastar

o silêncio da gárgula ― estórias universais

adormecidas nos intestinos, noz-de-cabeceira


suponhamos essa noz como o universo

afastado da gárgula, guardiã das civilizações

: vil tubo de ensaio a virar órgão musculado

[língua] na agressividade dita linguagem


, e a terra um baú fundo com relíquias de jornais

cera perfumada para o inverno e anéis pobres

coração de lenho madrugador bêbado de poesia


as aurículas temem a luz, obedecem ao ouvido

selados os ventrículos ― a gárgula nele sentada

ignora triste isto tudo com um falso silêncio pois

há muito que perdeu o seu cristal de respirar







pinta sabendo-se lobo da máscara aglutinadora

cose-se ao irreal e subverte-se


[réplica de rio]


contacto ― esfrega o estranho no chão vertical


, tinge-se sanguíneo ao rumor da tela

que de movimento o gesto

ganha carne linha a linha

dentro do desenho o caroço

sublinha ardores de corpo

pela pele onde poderá a virgem

plantar giestas da infância

verdume ocre de joelhos

em festa na pradaria


que de movimento o lápis

intimida o vento impróprio

na estação da escrita arroxeada

linha a linha magoando o arroz

no papel adiando vestidos

da cor inevitável e final

eremitério de contrastes

em ardores sublinhados







a arma reapareceu ―


cluedo : ingresso nos contornos obscuros da física

confundindo ouro nos caminhos da numismática


a viagem esconde electrões na performance

um fecho éclair psicológico quasi medicinal


mina ainda mais previsível

livrar as mãos ― a hipótese do crepúsculo

folheando tecidos à lógica


[intelectualidade electroestática]


santa bárbara padroeira intenta feminismos

o cavalo branco reitera a exploração do minério







conheci um homem perturbado com a régua

«não semeio papéis na terra» dizia-me enquanto

preparava de raiz um envelope para viajar

com árvore-de-mãos descomprometida


alguns dos seus afazeres mais comuns:

roubar 16 centímetros ao planeta

bater nos dedos com um martelo ao buraco 33

rezar ao tabaco, asma azul da leitura


7 horas, 7 dias, 7 pautas ou

a liberdade em candelabro

timbrado ver em partitura


[maratona da arte, hors-catalogue]


o correio de outono atento ao nada ―







de ouvir e esperar, antes sentado na hora-cereal

porque fome ou vigília infinita então ―


infeliz o sorriso nas sobras, pouco

mesmo se contente

em ampla sala que o vermelho destoa

segundo a segundo magras cores


[dedos de pedra molar na malha arterial]


, que se quer palavra a sombra


de sobreaviso um perfume tumular

decompondo sonos à linguagem







açúcar e cimento, vestígios da civilização

agora tanto

ouro líquido nas mãos

um choro sem olhos

e fogo ― declarar ter visto na página

o clarão da ignorância


dor diária

revolvidos os tendões que

acendem os livros da fome


, será isto a supervivência literária dos gestos?

signos impregnados, impenetráveis

de diálogos, monólogos ou enunciados abstrusos


. signos ossificados no lazer da permanência







branda e impassível a higienizada compunção

na varanda

ainda esperando o roxo em flor

verdadeiro, lágrimas e sol, pó ―


ressoar diálogos na casa apagada

[exosqueleto simpático] vagabundear

paredes de corredores, cómodas

facas em fotografias que cortam tanto


a presença : colcha-pietà [redemoinho]

a branquitude exasperante ― a vida morrendo

lá fora, mesa de jardim coberta pela neve

dum pássaro morto







outra carta ― a primeira não a reli

apenas a escrevi untado de medo súbito

interiormente


«o bucolismo eléctrico : se alguém soubesse que

no salão enganámos os trovões na sua natureza

que no tapete negro jogámos perigosamente

a vida no sexo ― quem sabe a nudez do escuro?


saboreei a pele no instante seco

à curva vital do que é legado

não condeno ressabiamentos, não devemos

condená-los meu amor

têm a tessitura de um vinho de palmela


ofereço-te por esta noite a minha embriaguez

vela-a como um enamoramento seguro

uma rosa-coração frontal ao peito, o teu

meu ancoradouro de confessas fragilidades»







poesia ― uma pinha de sangue esquecida

à espera

[núcleo | músculo | casulo]

tudo se prende ao vazio até que a face raspe

na parede

até olhar, verdadeiramente

ou então o nada doente

com verdade ulcerada

(dissidente?)

ulcerada pelo tempo pesado, pesado

chaga ou sol passado em gume

desafiando a faca cega da lua

e aí a diferença entre jornada e dispersão


porque fazer poesia, deixá-la no chão a apodrecer

pinha negra de sangue

e que fazer quando fazer poesia não é fazê-la

bastando dizê-la

ou calá-la no pássaro em tudo o que se olha


que fazer poesia é apenas lê-la, sim

havendo poetas serão os leitores

acendedores de pinhas de sangue calado

os que dizem e trabalham silêncios ao alfabeto

transcrito o sonho far-se-á unidade ―


manchas textuais, escritos espalhados na cama

para um lençol que entre na virtude humana


: lençol interno, divisível

com o pão das imagens


se unidade

a migalha atravessará o plasma

expondo o seu códice de luz







a oliveira milenária retorce-se no promontório


, onde a lisura da curvatura perdura resiliente

recolhe aragem necessária às tenras navalhas

folhas dum sempiterno verde escuro virginal


: quem ter por elo entre mundos desconhecidos?


a azeitona ― agente materializante da sombra

como urgente lagar ancestral de texto e gravura


mas mais importante ainda, talvez compreender

hiatos à árvore, anéis concêntricos subtraídos

reputando ausência como presença legítima

súbita reunião de todas as mãos mediterrânicas

uma rede de dedos retorcendo-se expansivamente

filhos e filhas de ísis num bailado de continentes

na invisibilidade arbórea de deus e da história







alguém longe grita

escrevendo barbaramente

um poema que do outro lado vítreo da gota

traz frases sucintas a legitimar os clássicos

no quotidiano ―


mesa posta, os convidados de proust

febris como as horas no verão

com uma branquitude exasperante nos rostos

assomam nervos à leitura

culpa da linearidade branca das obras alinhadas

no cânone pachorrento dos catalogadores


alguém longe magoa

o léxico próprio de quem está doente

explicando aflito a ilusão da distância

advertindo que está bem próximo

perto dos esfíncteres que medeiam a leitura







tem uma língua o olho das labaredas

conversa comigo numa solidão mundial

crepitante, vejamos

onde cabe a televisão na combustão do tempo?

o cabelo cresce, cai

corta sílabas aos versos precipitados

e ainda à frente

um copo de lume

assim ter uma lareira, teatro de fogo vivo

onde rir sublinha a efemeridade das estações

adejando o carvão sentimental ― penso,

porque enjaularam esta língua? mas depois

lembro-me da boca

sonhar sob a chuva o meu pobre coração

fruto de casca grossa

irresoluto, radial

embarcação que enganará caronte tantas vezes

baptizar sob a chuva este sábado de aleluia

como se arcasse com as consequências da água

da absoluta vida

desdobrada em galáxias e microgaláxias

esta noite a cama tentou

absorver-me a perna esquerda

e eu lembrei-me de todas as árvores do quintal

pedindo-lhes auxílio

que a carne humana aspirante a árvore

possui no seu âmago demasiadas fraquezas

embora tudo se consiga pela coragem da música

de todas as coisas

infindável bolbo de tecido multicolor

mil lençóis de tessitura musical

a trabalharem espíritos neste mundo e nos outros


consegui salvar mais um dia a perna esquerda

não estou preparado ainda para o reino vegetal

vou esta manhã analisar de perto a filigrana

da chuva,

talvez saiba hoje mais alguma coisa

sobre o meu coração







um pé fora da ópera, eleva-se cru o fio de cristal

na garganta ― o druida encena atrapalhadamente

as tulipas na sua carta, rende-se

à incomunicabilidade da monotonia terrena


inútil esferovite turístico onde olhar dolorido

ambiência industrial com o bruxo da tecnologia

cordão vertebral, coluna dos ditongos


. voz


[frequência, amplitude e timbre]


, para que compreenda o músculo entre o ruído

abre-se a fala que do nojo se liberta, mostra-se

como estar quente na conversação

sem ferir tigres alheios







o fumo genético da desolação intoxica


[cancro de cozinha]


credo ― o vapor ósseo da renúncia aos objectos

passeio crítico pelos electrodomésticos


saibamos retroceder nas espigas imagéticas

da retina

isto é, talvez arriscar uma

leitura da dor mecânica passada a limpo

cópia orgânica de pai e mãe


, o filho escrevente escuro no fio das horas







não sendo lágrima

escorrega um fiozinho de gelo, noite estrelada

no peito dela ― ele sonhou ― e

caminham sozinhos

virtude do desaparecimento leal, triste, dançante


há pouco morreu um compositor

exímio fazedor de poemas sinfónicos cardíacos

morreu numa gota de orvalho

junto ao piano


estrelas retrilham sorrisos dos amantes sozinhos

ela decifra-os na sonata e murmura ― e ele

esculpiu no frio da notícia

um busto-de-respeito ao pianista


o som-de-luz na escuridão trará um luto a dois ―







encruando o painel com justificações-de-cheiro

há assinalado suor esculpido no íntimo do atelier

que um esquisso é espigo madrugador

flor-de-beijo iridescente

e trará desmemoriada obsecração

sequiosamente dissecada

treslida de malcriada e tresloucada


ronda paciente dos transeuntes, não mais do que

isso ―


volta solta revoltada enquanto vigília de aferição

muitas vezes segredada ao ouvido

como «tesão da arte»


aonde no painel o vento que assustou a tinta

e o pincel? rugas de verniz no rosto

ligadas à estrela longínqua, acometidas

num impasse inflectido no tempo

inseguro à figura como pano imerecido







milady, distraíste-me o gato marinho

alteraste os alicerces do amor na cabeceira

agora livro a livro hei-de respirar-te

em cada verso, despojadamente


[estilete limpo | razão suja]


milady do luxo em flor

guardiã da humildade do meu tesouro

sobrados soluços soçobrados

sob a aromática morte feminina das cartas

e recados ― menos ermo coração

muito menos fatal dama

como se lenço a lenço

noite por dia crescesse o antro coronário


milady, realmente é perigoso contemplá-la

porque me encontro suspenso perigosamente

sobre todas as coisas

a envolvência não olha, desampara-nos a

escuridão feita buraco

distanciada da tingida na tela

preceito do pintor enquanto foge

que deita negrume pelos olhos

tentando compor vermelhos espirrados

outras cores que não o preto

e lhe são o alfabeto







e porque o aroma lento da pele me marca

falível nos lábios

forço-me na memória, na

reconstrução da pele que amei

e ainda amo

consecutivos retábulos imaginários modernos

não servem a real vivência vital do corpo

e por isso persisto e dedilho

o olfacto fustigado da primeira noite ―


[impossível fata morgana]


livre da circunferência civilizacional

entro na praça com um

perfume irascível, inquebrável e assassino


trago vestido o fato vicentino azul







amanhã uma árvore ― o exagero de carbono

enquanto não houver pronome consolidado

que faça brilhar a estrela guardada na infância


a carne pesa ao ar no diálogo a contraluz, não

significa culpa mas o enjoo do enxofre aquece

segmentos às frases subjugadas por leis cegas


amanhã uma árvore espero, com o verdadeiro

compromisso vegetal na leveza e simplicidade

uma árvore carregada de pássaros nos ramos


a carne dependurada no verde tolera-se bem

desde que esvoace de amiúde dentro e fora do

poema ― árvore mágica crescente do sonho