Nave de Âmbar
[Chiado Editores, 2016]
ouves eu dentro a consertar raízes
ampliando a vegetação
colhendo frutos sonoros numa nave de âmbar
silêncio ― cristal de respirar
à espera dum desaire
na plataforma transbordante
, às vezes não sei que luz
o nada é o nome envolto de nomes
[turbilhão nocturno]
se o espero também o perco
o meu nome
entre osso e carne no tórax
funciona uma boca no peito ―
viver pela dor [agulha no vinil] confessá-la
a uma lâmpada prestes a desaparecer
: o coração, casulo de teias cansadas
também câmara invasora de leitura
― o céu, a estrada, a noite, a casa ―
procura premissas de linhas obscuras
rigor de substâncias que diversificam
a batida, o ritmo, o antro
fruto pesado se poesia no mundo?
✫
a pele, uma fronteira movediça
engole qualquer capacidade de narração
ou ilustração
, move-se sempre doendo
[mapa sanguíneo]
por minas, neurotransmissores ― a pele-alfabeto
sem a vontade da electricidade d’espírito
termina o idioma nos lábios, ficam vidas presas
bandeja para o envelhecimento humilhante
game over ou brincadeira de cera
enigma apaixonante: o suor, os cheiros
― há na mesa uma carta e uma chave
sanguíneas ou não, um mapa
✫
vem da resina
do lugar-pedra este sono transformado em poema
a delirar pensamento profano
físico ― brisa perfumada de cansaço
crepúsculo baldio recente a ajudar os olhos
vasto e vão o brilho
conflituoso nas episódicas vinhetas
. de destruir o tempo
erraticamente a mão-em-coração empresta
biologia às pedras
mancha-as com suor
, uma passagem ―
trabalham os grilos à noite
ambiência e persistência, trabalham
a minha paciência
o pormenor dita a estrutura
que o diga a escala desconcertante
da perfídia repetida por asas pequeninas
: a estridulação estrumando o puzzle do universo
redimensionar a geografia, que geografia?
recalcular distâncias e sentidos, que futuro?
desculpas ― pouco pó, pouca paciência
e trabalham-na os grilos
✫
foi, a falha entre bocas
desconhecidas poldras do isolamento preciso
[badaladas ocas da intermitência]
a falha que cresce diminuindo o mundano
áspera farpa medicinal
que o caminho é de continuar
o coração entre os dedos e a cera quente
a alastrar dentro da noite o perfume da canção ―
✫
a bruma não percebe o brilho metálico do século
mas o nervo estala ―
de que serve o braço ao poeta
se na imagem desmembrado se espelha?
e ele voa, o braço
apartado da anatomia castradora
voa no papel a decantar depressa
o vinho das lágrimas
o sémen estragado das plantas e dos animais
para deixar de ser braço
― um ramo, vinho e alguma água ―
nenhum altar
✫
incomoda-me a sombra invisível do vidro
dividendos do fantasma da geografia
talvez, uma soma estranha
números alquímicos numa voz que se entranha
nas vísceras ― o almoço trouxe clarões
próprios da angústia feliz das pequenas coisas
incessante, acrílica, sem olor e
por vezes aflitiva : é-me dado a entrever
combates entre polímeros, selvajaria orgânica
a invisibilidade da sombra ligada ao vidro
estremece qualquer probabilidade de recomeço
no assinado vazio deste momento
uma espécie de mancha biológica rude, patológica
prejudicial na leitura de mapas consanguíneos
diadema de febre propenso ao desequilíbrio
― uma voz a descer, a visitar os órgãos um a um
toque de cerâmica, os olhos
segunda pessoa ―
vagão rápido para o eremitério
livros e terra, confissão e bafo
esperamos como se houvesse
um entrecruzamento de essências
passeando o cristalino dos olhos
na cumplicidade do café
mas a espera, mero luto da ignorância entediante
na tarde traz papel e caneta ao pretexto
― já não há lugar físico nem tão-pouco café
apenas quem escreve e quem lê
agora
✫
perdi a ampulheta com que media os sonhos
penso que ficou nas costuras de um deles
provavelmente no do mel bravio das areias
― diário do poeta de perna amputada
(talvez voe como o braço)
a escrita magoa o sangue
o dia magoa a noite
, até que não fazia mais sentido a ampulheta
esse punhal de freud desentendido
nas vírgulas do tempo
✫
virtude de dormir ― guardei o caderno
junto ao coração, o tórax como gaveta
pode a cama ser um grande continente
planície de perfumes contraditórios
, uma película fílmica a divorciar-se da pele
[cubos de açúcar, fotogramas na boca]
denúncia de ervas aromáticas na saliva
emprestada ao pudor do raciocínio
✫
funcionando como um vitral a noite
com luz e contraste folheia a brisa da manhã
como amêndoa suave das horas em que se ama
sem entidade, identidade ou rosto ―
um agosto primaveril, foz de tumulto onírico
foz respirante dos seres mais frágeis
que pela lua azul tornar-se-ão habitantes
do coral branco, prisão humana
[água vazia no escuro, peixes tremeluzentes]
sob o prisma do vitral nocturno
a linguagem lenta das estrelas
a pétala nox
tangência do sangue liberto
porque selo fictício e moeda dos sonhos
envereda pela estrada de sal
acima de qualquer amplitude das mãos
força de género inclassificável
terreno fértil à bizarria de loucos desidratados
e ao passeio da frase-faca pelos corredores
«amar o falso pólen»
pólen ― mais tóxico que o ouro
sabe-o o exagerado pé caminhante
na noite que se avizinha
✫
segredos no feno acendem rostos na escuridão ―
fazem temer incêndios nas parábolas úteis
ao amor
, raramente se consegue visualizar o tabuleiro
um jogo de nudez
difícil de perscrutar limpidez às vozes
mescladas que estão pelo desespero à comparação
da fluidez dos naipes a adrenalina a ensandecer
o coração
. um crematório de segredos
✫
doem-me sílabas algures na espinha
indago se não foi dito em círculo impróprio
sílabas a não remurmurar, azedo de almofada
pelo menos até a noite me engolir
― só quando sentir crescer as ervas em redor
ver livre o cavalo branco
e baralhar os limites à terra, ao mar e ao céu
as palavras inteiras perderam todo o sentido
somente as sílabas internas magoam e cintilam
✫
no centro da laje fria a árvore dos corvos
gere sabiamente o gelo dos defuntos
ignoro que fruto dá esta árvore
«espécie de damasco» ecoa um boato
[lágrimas pretas]
o mistério reside na raiz ―
se tivermos a laje fria como um corpo
veremos a caverna onde entrelaçar algas e música
, o frio passado directo de ouvido em ouvido
. resolver a árvore ― cumprimentar o granito
aos fantasmas
«senta-te aí»
os corvos afastam-se
arame de anjo, domínio-alvo de glória religiosa
tremendamente nocivo pensar
com ovas estragadas no céu da boca
descendência peculiar ― quem estava de saída
reentrou
a biologia é de chorar na despensa, agora se sabe
sobre o remorso linguístico altamente casuístico
[castiçais, muros argilosos refinados]
ó alma ― o anjo, apesar da fama, anda perdido
perdido
✫
pouco fiável entender a bênção alheia
revoada amarela ―
e surge de repente essa luz literária doente
enquanto obra-sepultura quente, medonha
fedor humano genuíno enfiado em roupas velhas
gemidos e tremores decalcados nas muitas páginas
até que ponto verdade, abnegação?
doente mas macia e fértil a luz
do que se apagou no corpo amante
[extinção abençoada]
, escabrosas espinhas inoculadoras de erotismo
assim ler, dançar com agulhas o tempo todo
✫
, e com o sol curvo
deitado uma montanha, vejo-te ―
memória suada de música, de nós
parcelas da noite acordada
não-sentido precioso ser-se incondicionalmente
para ser separação fraseológica
isolamento forte amor, não comiseração
― de me soçobrar no sol, trago-te
[água | areia | flores | sangue | beijo]
✫
escrita ― ar frágil mimetizante
hoje um coágulo-planta
conflito aflito, tenso e omisso
. a folhagem-de-ser
, tudo poderia resumir-se a isso
seiva amarga e glóbulos vermelhos
duro dia, mímico
|
animal e planta
talheres e livros
― hoje comi um livro malpassado
✫
: da velocidade organizada. que
substância-gema justifica a fluidez pragmática
no quotidiano?
entenda-se cinética microorgânica
no acto ― flashes excêntricos da carnalidade
mas concêntricos porque gema-energia imediata
entenda-se, não pedra nem proteína
substância ágil nos nervos digamos, para uma
paisagem reflexológica do indecifrável
arbítrio
✫
álcool | paixão | visão
líquidas arestas do socorro
nenhum dos elementos
funciona destituidamente no escuro
[marés nos olhos aleijados]
como confessar ou denunciar
a dimensão da crueldade?
. vermelho na planta, choro-de-rua
isento passeio de vísceras sozinhas
pode mal-amada pessoa vincar o copo
gritar-vertendo o nome de quem ama?
poetizar a queixa mundanamente roubada
à circunferência do mundo?
poetizar sim, acrilicamente, essa lava-coração
do que se sente poema impossível de dizer
, de resto vómito ocre no papel
a força do brincar pesa indefinidamente
no bêbado, no amante, no poeta ―
✫
o céu quebrou ―
chuva a ferros de desenterrar fotografias
a terra contente, a família fendida
verificam-se outros anos de poda genealógica
lê-se o espelho-de-sonhos ao sofá amordaçado
temo a urgência de escutar no lúmen do vazio
― a casa respira pelo mofo tecidular
expande-se de sobressalto e subtrai-se pelo medo
que a humidade fala, incendeia vida nos quartos
e corredores
alguns livros espreitam, os mais musculosos
com sonâmbulos dentro ―
a zona : ruídos empalidecem paredes
ficam translúcidas e vulneráveis
ninguém está preparado para receber o estertor
duma casa, paralelepípedo exaltado
ideia-origami na incerteza da geografia
continuamente adulterada pelo fantasma
✫
, a pele da barriga escapa à unha rasante
. outra vez caído na fundura do gelo
perdido na inépcia do colchão micelial
embora o labirinto disléxico da alma revele
a máscara de magma
[animal de lume à saída do raciocínio]
! entoo repetidamente o gutural eco
do que ainda se reserva de humano
(nunca percebi o que há de radial nos espinhos)
ir sob unhas na noite ―
✫
de volta ao lugar que acerta o relógio
um funil do tempo [centro do tapete]
perigoso relógio cardíaco perto do barro seco
com a sombra de vento antigo
pudesse explicá-lo por escatologia
referindo a dobragem argilosa de casas timbradas
no varão pobre
✫
ninguém adverte o palco móvel às personagens
nunca
[caroço-de-fruto]
cenas aos supetões
risos guilhotinantes
ás de trunfo e punhais
― o gesto técnico na armadilha floreada
, personagens articuladas. tudo tão mecânico
como a morte
✫
saúdo o íntimo esqueleto da aurora
reverberando erradas cartilagens por selos
nada a confessar ou a sujar neste lugar
antes infinita espera de consoantes e vogais cruas
de cor e silêncio este refúgio ―
✫
mal-vindo grito convoca estragado o âmnio
! a campânula d'ouvido
[síndrome de plath]
quando no banho recebo a água vulcânica
para uma amnésia benemérita
e me queixo baixinho do desamor-detergente
vibra-me a água no interior dos ossos
com sobras de suor alheio amado ingenuamente
esfrego-me auscultando cioso a mesoderme
e provo a babugem de barro vermelho que aflora
nos dedos ― sangue das estátuas sobressaltadas
feridas na noite dos medos
como começar quando o começo é uma recusa
estigma dum cálice que não evolui nem se adapta
: o duplo é irmão ou arqui-inimigo?
e a flor vê a probóscide
simples como uma linha
um verso | uma canção
então um pântano onde
o espectro se esquece
― mentir à orquídea sobre a mudança
enquanto indígenas confessam o ópio cerimonial
, tal é a compaixão por cabelo e tristeza
✫
e se um livro morresse? se por doença
dos textos apenas restasse uma sombra?
preocupa-me pois a fisiologia dos livros
como a saúde de uma verdadeira amizade
apercebo-me disto ao ver as teias sanguíneas
nos objectos contíguos à personalidade
porque ler é dar força à árvore, veias
como páginas vivas rentes ao fazer
✫
esquecida a caveira defronte a consciência
capturando o traço humano à imagem
[umbigo de gelo por paisagem] procurando
um útero no verde ― que a identidade
nada deve à moralidade
[passagens a mundos, gavetas de escritório]
enerva tanto saber, a criação matará o criador
e ele entenderá ―
✫
o duende vê uma ponte de madeira a afastar
o silêncio da gárgula ― estórias universais
adormecidas nos intestinos, noz-de-cabeceira
suponhamos essa noz como o universo
afastado da gárgula, guardiã das civilizações
: vil tubo de ensaio a virar órgão musculado
[língua] na agressividade dita linguagem
, e a terra um baú fundo com relíquias de jornais
cera perfumada para o inverno e anéis pobres
coração de lenho madrugador bêbado de poesia
as aurículas temem a luz, obedecem ao ouvido
selados os ventrículos ― a gárgula nele sentada
ignora triste isto tudo com um falso silêncio pois
há muito que perdeu o seu cristal de respirar
✫
pinta sabendo-se lobo da máscara aglutinadora
cose-se ao irreal e subverte-se
[réplica de rio]
contacto ― esfrega o estranho no chão vertical
, tinge-se sanguíneo ao rumor da tela
que de movimento o gesto
ganha carne linha a linha
dentro do desenho o caroço
sublinha ardores de corpo
pela pele onde poderá a virgem
plantar giestas da infância
verdume ocre de joelhos
em festa na pradaria
que de movimento o lápis
intimida o vento impróprio
na estação da escrita arroxeada
linha a linha magoando o arroz
no papel adiando vestidos
da cor inevitável e final
eremitério de contrastes
em ardores sublinhados
✫
a arma reapareceu ―
cluedo : ingresso nos contornos obscuros da física
confundindo ouro nos caminhos da numismática
a viagem esconde electrões na performance
um fecho éclair psicológico quasi medicinal
mina ainda mais previsível
livrar as mãos ― a hipótese do crepúsculo
folheando tecidos à lógica
[intelectualidade electroestática]
santa bárbara padroeira intenta feminismos
o cavalo branco reitera a exploração do minério
✫
conheci um homem perturbado com a régua
«não semeio papéis na terra» dizia-me enquanto
preparava de raiz um envelope para viajar
com árvore-de-mãos descomprometida
alguns dos seus afazeres mais comuns:
roubar 16 centímetros ao planeta
bater nos dedos com um martelo ao buraco 33
rezar ao tabaco, asma azul da leitura
7 horas, 7 dias, 7 pautas ou
a liberdade em candelabro
timbrado ver em partitura
[maratona da arte, hors-catalogue]
o correio de outono atento ao nada ―
✫
de ouvir e esperar, antes sentado na hora-cereal
porque fome ou vigília infinita então ―
infeliz o sorriso nas sobras, pouco
mesmo se contente
em ampla sala que o vermelho destoa
segundo a segundo magras cores
[dedos de pedra molar na malha arterial]
, que se quer palavra a sombra
― de sobreaviso um perfume tumular
decompondo sonos à linguagem
✫
açúcar e cimento, vestígios da civilização
agora tanto
ouro líquido nas mãos
um choro sem olhos
e fogo ― declarar ter visto na página
o clarão da ignorância
dor diária
revolvidos os tendões que
acendem os livros da fome
, será isto a supervivência literária dos gestos?
signos impregnados, impenetráveis
de diálogos, monólogos ou enunciados abstrusos
. signos ossificados no lazer da permanência
✫
branda e impassível a higienizada compunção
na varanda
ainda esperando o roxo em flor
verdadeiro, lágrimas e sol, pó ―
ressoar diálogos na casa apagada
[exosqueleto simpático] vagabundear
paredes de corredores, cómodas
facas em fotografias que cortam tanto
a presença : colcha-pietà [redemoinho]
a branquitude exasperante ― a vida morrendo
lá fora, mesa de jardim coberta pela neve
dum pássaro morto
✫
outra carta ― a primeira não a reli
apenas a escrevi untado de medo súbito
interiormente
«o bucolismo eléctrico : se alguém soubesse que
no salão enganámos os trovões na sua natureza
que no tapete negro jogámos perigosamente
a vida no sexo ― quem sabe a nudez do escuro?
saboreei a pele no instante seco
à curva vital do que é legado
não condeno ressabiamentos, não devemos
condená-los meu amor
têm a tessitura de um vinho de palmela
ofereço-te por esta noite a minha embriaguez
vela-a como um enamoramento seguro
uma rosa-coração frontal ao peito, o teu
meu ancoradouro de confessas fragilidades»
✫
poesia ― uma pinha de sangue esquecida
à espera
[núcleo | músculo | casulo]
tudo se prende ao vazio até que a face raspe
na parede
até olhar, verdadeiramente
ou então o nada doente
com verdade ulcerada
(dissidente?)
ulcerada pelo tempo pesado, pesado
chaga ou sol passado em gume
desafiando a faca cega da lua
e aí a diferença entre jornada e dispersão
porque fazer poesia, deixá-la no chão a apodrecer
pinha negra de sangue
e que fazer quando fazer poesia não é fazê-la
bastando dizê-la
ou calá-la no pássaro em tudo o que se olha
que fazer poesia é apenas lê-la, sim
havendo poetas serão os leitores
acendedores de pinhas de sangue calado
os que dizem e trabalham silêncios ao alfabeto
transcrito o sonho far-se-á unidade ―
manchas textuais, escritos espalhados na cama
para um lençol que entre na virtude humana
: lençol interno, divisível
com o pão das imagens
se unidade
a migalha atravessará o plasma
expondo o seu códice de luz
✫
a oliveira milenária retorce-se no promontório
, onde a lisura da curvatura perdura resiliente
recolhe aragem necessária às tenras navalhas
folhas dum sempiterno verde escuro virginal
: quem ter por elo entre mundos desconhecidos?
a azeitona ― agente materializante da sombra
como urgente lagar ancestral de texto e gravura
mas mais importante ainda, talvez compreender
hiatos à árvore, anéis concêntricos subtraídos
reputando ausência como presença legítima
súbita reunião de todas as mãos mediterrânicas
uma rede de dedos retorcendo-se expansivamente
filhos e filhas de ísis num bailado de continentes
na invisibilidade arbórea de deus e da história
✫
alguém longe grita
escrevendo barbaramente
um poema que do outro lado vítreo da gota
traz frases sucintas a legitimar os clássicos
no quotidiano ―
mesa posta, os convidados de proust
febris como as horas no verão
com uma branquitude exasperante nos rostos
― assomam nervos à leitura
culpa da linearidade branca das obras alinhadas
no cânone pachorrento dos catalogadores
alguém longe magoa
o léxico próprio de quem está doente
explicando aflito a ilusão da distância
advertindo que está bem próximo
perto dos esfíncteres que medeiam a leitura
✫
tem uma língua o olho das labaredas
conversa comigo numa solidão mundial
crepitante, vejamos
onde cabe a televisão na combustão do tempo?
o cabelo cresce, cai
corta sílabas aos versos precipitados
e ainda à frente
um copo de lume
assim ter uma lareira, teatro de fogo vivo
onde rir sublinha a efemeridade das estações
adejando o carvão sentimental ― penso,
porque enjaularam esta língua? mas depois
lembro-me da boca
sonhar sob a chuva o meu pobre coração
fruto de casca grossa
irresoluto, radial
embarcação que enganará caronte tantas vezes
baptizar sob a chuva este sábado de aleluia
como se arcasse com as consequências da água
da absoluta vida
desdobrada em galáxias e microgaláxias
― esta noite a cama tentou
absorver-me a perna esquerda
e eu lembrei-me de todas as árvores do quintal
pedindo-lhes auxílio
que a carne humana aspirante a árvore
possui no seu âmago demasiadas fraquezas
embora tudo se consiga pela coragem da música
de todas as coisas
infindável bolbo de tecido multicolor
mil lençóis de tessitura musical
a trabalharem espíritos neste mundo e nos outros
consegui salvar mais um dia a perna esquerda
não estou preparado ainda para o reino vegetal
vou esta manhã analisar de perto a filigrana
da chuva,
talvez saiba hoje mais alguma coisa
sobre o meu coração
✫
um pé fora da ópera, eleva-se cru o fio de cristal
na garganta ― o druida encena atrapalhadamente
as tulipas na sua carta, rende-se
à incomunicabilidade da monotonia terrena
inútil esferovite turístico onde olhar dolorido
ambiência industrial com o bruxo da tecnologia
cordão vertebral, coluna dos ditongos
. voz
[frequência, amplitude e timbre]
, para que compreenda o músculo entre o ruído
abre-se a fala que do nojo se liberta, mostra-se
como estar quente na conversação
sem ferir tigres alheios
✫
o fumo genético da desolação intoxica
[cancro de cozinha]
credo ― o vapor ósseo da renúncia aos objectos
passeio crítico pelos electrodomésticos
saibamos retroceder nas espigas imagéticas
da retina
isto é, talvez arriscar uma
leitura da dor mecânica passada a limpo
cópia orgânica de pai e mãe
, o filho escrevente escuro no fio das horas
✫
não sendo lágrima
escorrega um fiozinho de gelo, noite estrelada
no peito dela ― ele sonhou ― e
caminham sozinhos
virtude do desaparecimento leal, triste, dançante
há pouco morreu um compositor
exímio fazedor de poemas sinfónicos cardíacos
morreu numa gota de orvalho
junto ao piano
estrelas retrilham sorrisos dos amantes sozinhos
― ela decifra-os na sonata e murmura ― e ele
esculpiu no frio da notícia
um busto-de-respeito ao pianista
o som-de-luz na escuridão trará um luto a dois ―
✫
encruando o painel com justificações-de-cheiro
há assinalado suor esculpido no íntimo do atelier
que um esquisso é espigo madrugador
flor-de-beijo iridescente
e trará desmemoriada obsecração
sequiosamente dissecada
treslida de malcriada e tresloucada
ronda paciente dos transeuntes, não mais do que
isso ―
volta solta revoltada enquanto vigília de aferição
muitas vezes segredada ao ouvido
como «tesão da arte»
aonde no painel o vento que assustou a tinta
e o pincel? rugas de verniz no rosto
ligadas à estrela longínqua, acometidas
num impasse inflectido no tempo
inseguro à figura como pano imerecido
✫
milady, distraíste-me o gato marinho
alteraste os alicerces do amor na cabeceira
agora livro a livro hei-de respirar-te
em cada verso, despojadamente
[estilete limpo | razão suja]
milady do luxo em flor
guardiã da humildade do meu tesouro
sobrados soluços soçobrados
sob a aromática morte feminina das cartas
e recados ― menos ermo coração
muito menos fatal dama
como se lenço a lenço
noite por dia crescesse o antro coronário
milady, realmente é perigoso contemplá-la
porque me encontro suspenso perigosamente
sobre todas as coisas
a envolvência não olha, desampara-nos a
escuridão feita buraco
distanciada da tingida na tela
preceito do pintor enquanto foge
que deita negrume pelos olhos
tentando compor vermelhos espirrados
outras cores que não o preto
e lhe são o alfabeto
✫
e porque o aroma lento da pele me marca
falível nos lábios
forço-me na memória, na
reconstrução da pele que amei
e ainda amo
consecutivos retábulos imaginários modernos
não servem a real vivência vital do corpo
e por isso persisto e dedilho
o olfacto fustigado da primeira noite ―
[impossível fata morgana]
livre da circunferência civilizacional
entro na praça com um
perfume irascível, inquebrável e assassino
― trago vestido o fato vicentino azul
✫
amanhã uma árvore ― o exagero de carbono
enquanto não houver pronome consolidado
que faça brilhar a estrela guardada na infância
a carne pesa ao ar no diálogo a contraluz, não
significa culpa mas o enjoo do enxofre aquece
segmentos às frases subjugadas por leis cegas
amanhã uma árvore espero, com o verdadeiro
compromisso vegetal na leveza e simplicidade
uma árvore carregada de pássaros nos ramos
a carne dependurada no verde tolera-se bem
desde que esvoace de amiúde dentro e fora do
poema ― árvore mágica crescente do sonho