Carta do Nómada Ferido a Tempo

[Palimage, 2018]




bom dia montanha

soube cedo o ar em que nasci ―


o vento escreve, também o vejo

se ideia de cegueira o nevoeiro


, árvores : os nomes apagados


sigo o rumor de borboletas

na grande caveira ― acendem-se

ciclos, minúsculas estrelas

formam constelação rente ao planeta

finíssimo lençol de clarões na noite


[púbere sangue do poeta]


e danço, danço entre as árvores

mundo adentro junto ao núcleo

junto à voz-luz do silêncio






DEPOIS VÃO DESCOBRIR-ME



depois vão descobrir-me

entre os veios do colchão

desaparecido de mim

junto a um coração

de alvéolos esquecidos

linhas, romances

subcortados na medula

o que, querendo dizer-se

calou-se na pele dos livros

nos lábios de quem

me espera


assim apartados

aturdidos no mundo

sem saber o que esperar

de relações, fios mortos

de marionetas

a encenar a noite

no cerco

de bibliotecas armadilhadas

um poço e uma boca

por onde desaparecer







ir à natureza

como quem voltar

― onde o poema ―

sair como encontrar

a casa | um caminho

corte de fotões, são

rio esplendecente

rastro de pétalas

até ao pulmão







caibo no risco enquanto vivo decalque

cardiograma crítico e voraz


[farpa falhada]


cabendo ainda na língua atropelada

chegasse antes a viúva das letras

como tristeza fecunda do grito


, da voz escrita







vesti a camisa de sol

no inverno duro

como adormeci

na página do diário


― não tenho sangue

na luz perturbada ―


venho do mar velho

da escrita muda

tudo resta e

o vento não cai

persiste oblíquo

no pão


― as brasas coronárias

dum esforço de fogo ―


adormeci como ardi

do negro ao vermelho

à boca da hora madura







cada vez que o nada me atravessa o sangue

assino o rasto de hera no exterior da casa

e trago para o quarto perfumes da menta

ensaiados desamores recolocados no fundo


dever humano de união enxertar no corpo

a bonomia das plantas, direito humano de

pela primeira vez respirar como árvore e

florescer tranquilamente no jardim do mundo







transfiguramos vontade

de olhar em transe

a ronda das raposas


acontece num copo de vinho

com a língua das marés

junto ao nó cárneo

para uma dor frontal


demovemos geografia

tremida face do grão remorso

nosso até ao osso







caí diminuindo

cru rodopio na gema

de ver uma cúpula má

cidadela-astro, gelo

de rasgar frio

quando o há

não quis mas vou

com o selo, trago-o

a voar nos bolsos


e diminuindo cresci

mas à míngua

gordo livro que diz

porque caí

o contrário da língua


de mirrar misérias

aos exemplos o fiz

encolhendo de lhes falar

seguindo o ovo tenro

planta verde a tardar

cicatriz nos ossos, caí

no que ainda não vi







caras escancaradas na cara ― nenhum rosto

antes um amontoado de esquissos maus

desenvoltas palavras esborratadas ou mosto


bocas muitas : oblíquas, horizontais, verticais

casas | hotéis | esplanadas | centros de dia | hospitais


riscadas arestas sobre as caras escancaradas na cara

surgindo ferrugem como cor adiantada que não sara


uma espécie de sangue mudo ou lume errante

único plano arquitectural crendo-se semblante







bom, adeus animal

largo-te às flores

ao nevoeiro denso

ao negro florestal







a fuga ― um coro sozinho

na cabeça

noz de sabão de encontro

ao cristal das coisas

dos vícios | das perdas

uma particular vozearia de objectos

ventríloquos da consciência

sobre a aragem de trabalho

sobre a fome espiritual

sobretudo poesia sobre tudo

sabor todo no grão de café

sombra primitiva desleal

à terra desirmanada da canção


outra hipótese de corpo ― a fuga

à primeira nota desconjurada jurando

estar sendo voz familiar desmentida

como se sozinho corpo já não seria

música, vento, esquecimento

estado germinativo de regressão

caldo invertido, embebido em sonho

sopro azul de esqueletos

ruído de ruína a pagar cada lágrima

vergonha de solidão, nascimento

esquecer o que contar às mãos

perder o arco-íris desmaiado porque

paredes de fogo sujam-se nos dias


[caminhada de vozes, cordão grosso]


inimaginavelmente o génio

sozinho morto no coro da cabeça







indo pela noite

o eu difuso

se dedo luzisse

em parafuso

boca a jusante


a linha lida

do canto ido

difuso rosto

de ter sido

tábua pensante







encurvado na concha

sei a ninfa que de medo

toca irrigadas coisas

dum sistema antigo


adormeço quando acordam

folias sobressaltadas

das minhas aventuras


de regresso em regresso

as coisas tornam-se diário

que sou sem sair da frágil

diáspora ― o corpo







preservo as mãos ― luzindo violáceos

esperam-me versos aéreos

de tocar com a boca, ao de leve

a liberdade como casulo de desfolhar

sombra de dúvida assombrada

capricho de gostos domesticados

programa de língua, de passado

e gira a tômbola de folhetins amestrados


fecharam na sala a consciência e a fome

huis clos ― preservo as mãos

esfera não é aglomerado

veja-se o reflexo na mancha

acesa curva como cisão, veja-se

o vale sulcado defronte o horizonte

onde raia um ângulo

que é ferida, morte, estrela


. de fracturar o espaço







embora trocasse toda a literatura

por um livro, um poema

por um verso, uma palavra

ou pelo silêncio que a parisse






CORAÇÃO CAMALEÃO



infância ― girassol parado nas escadas

menina-estrela e menina-árvore cumprimentam-se

linho venéreo, um toque

som de madeira antiga na palavra mãe


lastro de gota pendente no estilete colossal

placenta talvez, mesmo génese

esse engano de pano em pano


traços e suor

se armadilha tecida em corredor vermelho

por um espaço aberto


[pulmão desertor]


que na quarta porta entreaberta confunde o câmbio

de carne cerzido em escrita pelo trânsito nocturno

dos laços e embaraços







soluço contrário

palavra é pouco


― arestas internas corroeriam a lente

se intento houvesse de espiar ―

soluço outro o beijo

ou meio soluço de dois distintos

amor inacabado mas impoluto

e assim inteiro







descentrando o centro

me iludi

me diluí


árvore ou casa?

― carbono ―

a mão que desenha

― vulcão transluzente ―

casa ou árvore?


. lar







sob o signo da união no breu

da vontade feito o lado norte

um abraço de ar, água e céu






vem comigo fazer o poema do sol


empresta-me a tua pinta de sangue

― como a do pintainho ―

vem comigo

que a água é espelho caleidoscópico

límpida reflectirá no dia

véus coruscantes d'almas e seres

sem magoar o teatro biológico


arrisquemos então

o síndrome dual da intempérie interior


[feixe de luz]


o sol fará a sua parte, faz sempre, tem feito


vem comigo agora fazer o poema alado

antes que da noite chegue o avejão desajeitado







e no outro lado

és-me dia

dia qualquer que não vivi

moves-te alterando moradas

às minhas coisas já não minhas

― diferentes ―

movimento síncrono

outro lado

nem dentro, nem fora

vida paralela que faz

subir dias

descer noites

alimentando amor

estranho em mim







repartindo o chão contigo numa viagem

construindo do cristal frio o nosso delírio

ressoa a pergunta cardíaca da cumplicidade

quanto tempo nos dias e noites prendidos

ficámos a planear outonos e promessas

minha primavera tornou-se um naufrágio

jardim florido de paris perdido nos lençóis

dizer do regresso seria faltar ao romance

terçar num lance o pranto de folhas mortas

contranatura pulmonar do beijo em apneia

amar com os dedos entrelaçados na areia

contas nas ondulações de praias cingidas

e a pergunta perde voz e tempo e sentido

que já sol se incendeia o coração revivido







uma vela

chama laranja oblíqua na noite

na memória

estranha dor | estranha ausência


dentro do peito

já temia

[a chama]


da chuva cortá-la

se fria







enlaçou os braços porque o poema não pára

sarou o deserto no mistério acordando o cisne

sorriu ― porque arqueando cumpriu-se mulher

floresceu fisionomia na planície cega do homem

livre de mar e de rio, livre no centro como boca

ininterrupta harpa | fonte musical, pura água viva







a pedra falará com o olhar

quando por cera for

amordaçada o tempo todo






chegaste ¶ pássaro de inverno

pousaste naquela janela, exangue

uma aurora bem sonhada

sol de olho em sangue

― olhei ―

uma mão aberta

ferindo a outra, fechada







tão disfuncional será amar florescendo hemorragia

― repentino e indistinto pó metralhado em faísca ―

abrindo a janela do quarto tão fútil como íntimo interior

depois de morta a roupa no chão

, a verdade sonoramente vazia

¿ sino de bronze toante na montanha?

tão disfuncional será amar quando

por um sorriso da pele suavemente emplumado

se revela a cor primogénita dos olhos

traindo o prado honesto ao peito rasgado







ainda no som da cor d'inverno

abertura por onde encher o quarto

com estórias de voo dos pássaros







loucura não é lesão de silêncio rei lear

quando danço a apanhar poemas no ar

estendo o lençol do hiato e da confusão

rouxinol ou cotovia, decide-te shakespeare

estou cansado coração camaleão da canção







e porque te vi

traí o sal das estátuas

não sei se amor

mas digo-o nos olhos

por vida | por desenho

por suor arco e labor

coração guardado

em preces em fontes

livros paisagens folhas

terra branca de olhar

de esquecer as pontes

de lançar rasgos ao mapa

onde assinalada montanha

me dará falésias para cair


embora seja no teu corpo

[harpa acordada de erros bons]

que eu quero cair dentro

dentro dentro na água forte

de me perder nesse sabor cego

entre corpos que se perdem

entre margens indefinidas

longe longe longe da morte

um amor camuflado de sexo

no alto lençol dos cabelos

voar voar na confusão louca

de desertos experimentados

terrenos da angústia solar

água forte consolidada

terma brasa fogo-de-ver

gentil arco-íris ou sorriso

enorme salão onde dançar


ouvi dizer que apenas

mãos desiguais unidas

bombeiam esperança

no mundo, são coração

porque te vi não tenho medo

de dançar a sós com o segredo






CADERNO



ANTEMANHÃ



incidindo baptismal na pintura a aurora

timbra-a com dourado fio de luz líquida


sinal de dedo

― deus oculto na complexa linguagem ―

escadas gritam dimensão à parede

fenómeno encíclico enredado de amnésia


: uma silhueta breve e anónima


maravilhamento do estrangeiro imaterial ou

memorando ilegível de vultos coincidentes


dedo-de-luz áureo sobre o plano

marca ante marca a foz do signo


o girassol explicado a duas raparigas de costas

apagadas de assombramento ao espelho






VISITAÇÃO



começa com uma explosão branca

― desfile sintomático de rostos ―

explosão aérea e fugaz

com que o olhar faz ilha

a ser habitada por descolorações tremeluzentes

espasmos de luz, sangue


que comer frutos brilhando no escuro

― amoras quase anémonas, maçãs vermelhas ―

restitui a dança em estado puro, movimento

fluxo energético por braço grande de tremer


. residirá a pessoa nesse limbo?


que permeio ilícito

angústia, pulso vital de consciência

nascente das coisas ― objectos, situações

crepitando existência paralelamente

a adaptação reflui na poesia

algo com que contar como jardim


, nunca caberá o estranho na pele que visita?






H2O



ouço a água daquele animal

reverbera feroz na hesitação

entendimento químico, enigmático ―


possivelmente desenharei em sonhos

estátuas de som codificado

memória mineral do comportamento


animal tão eu como este bicho gato

fantástico uso da água, feral

escutá-la será falar mesmo sem entender


a haver futuro espera-nos um trabalho

de moléculas, átomos e nomenclatura outra

de entretenimento científico


e porque ausculto a hipnose da água

num transe micelial de gosto e ignorância

sigo o rastro lunar do gato no telhado






VIAGEM



«e se um tudo te viesse buscar?»


não esqueço o alambique ósseo

condição minha replicada em espelhos

confusos outra vez à minha imagem

talvez, nos espelhos o cansaço

não tem músculos

estranho e admirável isto

falo da emergência branda

― vida ― e dança o coração

com a morte


«e se um tudo azul te viesse buscar?»


a viagem : uva de névoa no horizonte

[aldeia]

árvore-coração onde cresce um nó

segunda aorta

sonho rápido, fuga






LOVE WILL TEAR US APART



escalar a lágrima-gota-redonda abrir

abril e novembro plasticizados

grito surdo embebido em papel

brancura calada sempre exasperante


hiatos de lençol e varandas [o sopro]

que sentimento cavalga entre frases

o cavalo morre no sono das nuvens

por diferença tecidual de búzios


o grito surdo reabre em música

cinco meses engolidos pela lágrima

por tão longe de tão perto os sinais


o duende vê o trevo e não o colhe

percebe a imprecisão de arritmias

vai dormir cedo na arca de inverno






FÉNIX



uiva o vidro no que de corpo minto

folha-néon flutuando breve ou

pontilhado dúbio em voz marinha


fui pôr meu sol junto ao farol

casa arborescente da solidão


fui de novo nascer no som baixinho

levíssima pena à mercê do vento


génese da fénix envolta de mar

mistério líquido atento ao embrião

se cruz-de-sal tem néon amniótico

de beber vida da boca da mãe






LIVRE VERDADE VIVA



adentro a ferida, acentos nus na podridão

caveira luminescente às vezes

epistolografia de estômagos escritores

escrita abissal arredada do abismo real

sombreado de interesse amarelecido nas vergonhas

do quotidiano ― enigma de cisne a metamorfose

não importa a autópsia mas a arte em movimento

vital o quanto possível no exercício da liberdade


adentro o comboio cerebral do medo desmistificando

poemas-vómitos em jarros literários nas universidades

o não-quotidiano imaginário

esquecendo aresta a aresta todas as paredes basilares

honrando a poça suja da biodiversidade vivendo-a

[galochas galochas galochas]

canetas e dedos, dedos e canetas, cabeça-uivo

adentro a ferida por onde a carne fala verdade






TESTAMENTO



lego a vontade e uma árvore-de-osso perfumada

minúsculas fibras de céu cárneo continuarão meu juízo

musicalmente actina e miosina acompanharão o que

houver a dizer [ametista dançante] dizendo interminavelmente


e por dizer entenda-se coração, magma tardio do universo

mover-me-ei coronário com os continentes

imitarei a expressividade da florestação, os gestos fluviais


porque bebo sons e aragens que me entram no sangue

dormem comigo vozes quentes e frias, são-me amálgama

concha do sono a transportar-me a um novo dia


o campo ― olhos fechados ― um elevador e dois sacos de lixo

enfim a realidade urbana, apertos-de-mão não significam nada

acenos sociais de educação duvidável [água contaminada]


sempre que se respire esperar unicamente a música

de actina e miosina trabalhando a permanência

o volume dos tecidos, a construção da miragem humana

que os poemas são regidos por efemeridade orgânica


― cinza ― continuo inacabado e nunca colectável espero






FLOCO



desliza a harpa no vício branco

tremura estilhaçante da aurora

reconhecível no reflexo amante


bendita ressonância da água


― óleo feliz de estar aqui ―


, manchei os dedos no murmúrio






O SONO DAS ÁGUAS


sobre escultura de João Cutileiro


olhos fechados [o lago] porque ver

vem do deserto limpo do silêncio

quente mundo marmóreo evidente

gesto, cor ― vagem deslumbrante


, o cio retardado na espera imaculado


deitada a mulher aprofunda o sono das águas

antro movediço de ouvidos e duendes

deitada a mulher encontra razões no lençol verde

limo virgem de outrora | sombras por desnudar


na hora de acender moléculas ao cheiro

curvada no lado de dentro a mulher

coagula de uma só vez todo o lago

transforma-o num quartzo iridescente


. estragar luz aos coágulos porque pecado?






OPALA



incomum este pão-pétala

que mancha e acorda o céu

opala de pensamento vivo

: subsistir errante na poesia


pés sobre as páginas sombrias

fome-de-ler meu desassossego

mãos entre pregos e espinhos

livro-pão descuidado, exemplo


câmbio incomum os poemas

ficam lâmpadas [vaga-lumes]

selos pairam, vertiginosamente

ouço ― a luz é para a viagem






LIVRO



não sei para onde vão os espasmos líricos

enxertos cantantes nalguma figueira doentia


por isso morro todos os anos em novembro

consciência humana para uma área branca






CASA



se o tempo não é o nosso mas o da pedra

intemporal como a alma abstracta da voz

prolongando o rio do entendimento viúvo


se as mãos se perdem ao procurarem outras

dedadas de erosão num coração já oco ―


se a voz entre nós petrificada nos sorrir

como acontecimento fóssil a gerar carne

como movimento geológico tão grande


dentro de nós uma pedra cárnea já roxa

se lírio no beijo gordo de aromas e luz


lento o ruído nu de véus e membranas

pedra a pedra o pulmão da nossa casa






O ENIGMA



voo ou ovo, o ego traz o enigma ―


uma festa de faunos e princesas

a ficção da escrita dói na carne


caindo de flor-e-pele talvez o voo

indo ao encontro de pólen e vinho

confusão de rituais e estigmas

até à configuração do enigma, o ovo


pano fundo arrastando no chão

floresta de medos acesa pela rainha


um novo eu renascerá da desconfiança

o mundo não nos dá nada senão morte






AÇUCENA



finjamos verdade com a açucena

― regozijo de abóbada floral ―

descendo os rosados delírios do toque


que a açucena gesticula vontade

abre voz natural a um pouso claro

antecede febrilmente

a pleura angelical do colapso


. antes mágica do que trágica

mesmo musical a açucena

brusquidão de pensar sob lençóis

a flor e a pele, o beijo


porque a açucena desdobra

o tempo em visão dos linhos

suando metamorfoses, guarida


finjamos verdade com a açucena

sangrando cor nos sonhos

magia na vida





CÉLULA



no cerne da fábula a estrela-tarântula

indica-me os âmagos em ramificação

eu estaco na grossura dos seus braços

mas um caminho umbilical se declara


numa explicação de aves e vegetação

vejo a folha-asa roçar a manta morta

elos, sementes fulguram na estrutura

num jogo de sedução braços são asas


vê-se o aguilhão contra a tela de neve

enquanto o padre tentilhão descodifica

os quatros estádios do pássaro-árvore


o primeiro é a ausência em amputação

a penugem de gêmula o segundo, gesto

no fim do terceiro vê-se o bolbo-casulo

e no quarto o esqueleto da folha diáfana


hemácia da fénix este glóbulo de arte

que se desloca da fábula ao real e vive

reinventando-se em formas e em sonhos

trabalhos de célula em ávida adaptação






FRONTEIRA



é quando escuto a chuva presa nos olhos

como espectro branco do que é belo

onde cumprir a dispersão, escultura fria


pétalas de carvão sobre um ai amarelo

― canto fúnebre de moldura, a cotovia ―

doença mole a ler e esconder nenhum mal


bem sei continuar a não saber o que perder das

palavras riscadas de fotografia em fotografia


anjos de vime e lodo em agruras de cristal


um espelho líquido | uma partitura dolorosa

masculino responder ao desnorte, feminino sul


vá entender-se nos ossos a maré de cabelos

de sondar a fronteira se moda a roda-de-rosa

de reler cego a carta-de-estrelas no chão azul






CANAL



seguindo o feixe aguado no livre trânsito mineral

reconstitui-se a garganta de deus mumificada


máscara de pôr nos dias cinzentos ou noites brancas

canal de autoconhecimento modulador de voz


feixe como artéria fremente [avanço parabólico]

diga-se o peixe subindo aromático até uma

brancura maldita de indefinição ― efeito de inversão

relacionada com a fisiologia temática de espelhos

drama côncavo-convexo agarrado a emoções intrínsecas

e a retrocessos de cantilena vária ― isto é, brancura como

entorpecimento complanando amnésias de lamentar o canto

íntimo e sensível fole de rio soprador de pedras d'alba


preocupante a dualidade do avatar espelho-dentro, diga-se

canal : máscara paratextual irrigada por vénulas do medo






ABRIGO



ressurgirás vinda do lume

como algum poema interno

das fúcsias o perfume

um sol guardado dentro

para te dar ―


o oxigénio da arca de inverno

está a acabar; usei-o

em todas as estações

e agora não sei onde

dormir


mas creio que chegarás dentro

surpreendentemente saberei

que na verdade não chegaste

a partir


[sono-sonho que adiei]


aprendi contigo, com as flores

e com o lume ― faço agora

caixas de música, presença-luz tua

em todas as dores

no que de lua há em perfume






ANJO AMNÉSICO



sua cabeça um relâmpago

vindo do barro vermelho

inegável sortilégio de crentes

em imaculado clarão

braço de ferrugem que é

parte humana num coração

apetrechos, alvíssaras

da permanência [queijo velho]


semi-escura curva | asa degradada

nas areias do esquecimento

guardada pelo escaravelho

curva roubada a um momento

― totem de mãos sofridas

o anjo sabe por estigma o sacrifício

circunferência estridente do lago

complicada flor-de-suicídio


o anjo: sou a tua morte, doce memória

o menino: não morri, nem estou morto

nem para morrer vontade apresento

que quereis?

o anjo: nada, não quero nada

sou a tua antífona, postal íntimo do passado

algo cessa cristalizando-se

o menino: quem te deu tal fé e poder

em tão limpa arrogância?

o anjo: não te digo, porque não quero

vim apenas congelar-te no âmbar dourado

alvéolo mínimo da minha vida preenchida

o menino: morte, silêncio, o que me pedes?

o anjo: não te digo

o menino: então é uma execução?

o anjo: não, guardo-te apenas

ficarás cristalizado para sempre

na minha intimidade






OVO ESTRANHO



floresce o lápis, oblíquo aponta

toada a toada | círculo a círculo

de elipse em elipse o problema

o ovo como coisa de pedra no

fundo, entre o poço e a cascata

no quarto argila branca e astro

porque estrela-cantante o poema

se ovo estranho ou algum seixo

composto de água dura e brilho

reflexo perdurando toada a toada

incidindo flagrante no problema

mergulhando e ascendendo inteiro

o lápis o seixo o ovo o poema






MÃO D'ÁGUA



suave equilíbrio na cascata

dentro da caverna

entre pele e limo, ar e luz

apresento carnal a mão

à água cadente

e logo visito

uma dormência tacteante

da água em queda

suavemente a mão

pedindo em concha

liquefaz-se em flor

[espelho poliédrico]

ouriço estilhaçante

salpicos a abrirem

a mão em livro

páginas os dedos

na caverna raiante

o arco-íris à espreita

e todo o corpo exalta-se

numa intermitência

de desaparecimento feliz






MULHER



mas que enigma-fruto o arredondado útero

ou simples arbitrariedade do que será ser


se realçarmos a vastidão da clausura

encapsulamento explosivo no cérebro

ou mente no jardim romântico do recreio

se preferirem


, porque isto é de ir em caminhos

muitas vezes cheios de nós

como as árvores [bifurcações orgânicas]

e elas deambulam no pensamento

todo o caminho de abraçar é arvoredo


acredito no que de fêmea tem a árvore

uma mulher dentro, também árvore-coração

a viagem interior


: enigma-fruto belo

mas irredutível a conceitos estéticos

porque selvagem no frio fio-de-sangue

conjugando humores como cores

no pano mental da grande deserção


a confluência do sangue mesclado de género

da qual me vou ensimesmando ao perscrutar

alvoradas nas árvores despidas no inverno

leituras sobejadas da solidão entre os galhos

esperando atento uma mulher vestida de luz


mas que enigma-fruto o arredondado útero ―






SOM



continuo no som enquanto corpo escutando

murmúrios de autoclismo envergonhado

sobras de barulho televisivo a chegarem ao quarto

continuo no som dentro da noz-de-cabeceira redentora

na vírgula dalgum livro para melhor estrada


a noção de nau grande no vazio da teatralidade

que a vida transparece fisicamente muda e surda

baque inglório de cores deslavadas nos bastidores


todavia vagueiam sons, transeuntes sempiternos

reúnem-se em volta da flor cabeça-uivo

pessoas ecoadas na pessoa que em si não soa


bem sei que não devo estragar sonhos ao som

não devo dissecá-lo para evidenciar sombreado

sei que não devo porque já o fiz julgando-me

deus destruidor de canções ― continuo nu

na casca a passear no azul escuro do universo

as estrelas acendem-se por entre os poros do som

sinto a simbiose, estou pronto para dormir






DOMINGO À TARDE



ao volante ―


medo tectónico d'amarelo doente

extremo-eu alheio

a um tu ausente


arriscar a montanha

a ponte sob o espelho-dentro

crua e irrigada força estranha


mão e jogo de tendões a velocidade

com rasgões de céu e alcatrão


. uma película de nãos a identidade


ou introspecção

o desígnio torto

de ver só um ângulo

morto






POEMA PARA

SALVAR UMA

VIDA



esquece o que

te dizem

ouve dentro o que

tu dizes

sem dizê-lo, ouvir

que é respirar

suspenso na dor

que é resistir

lembra-te da

sombra do pomar

do murmúrio de

aves sobre o mar






CADERNO



ainda anoto o que de medo

coagula nos minutos

substância própria

de casulo e presença


fogueira mental

o que resta ― a canção

se vermelha a ponte das passagens


como se cantasse um novelo de fumo

uma pedra negra na mão


e o linho queima a noite

de violetas e roxos de borboleta

porque alguém chora

como assombro incontido no pulmão


fios muitos fios na distância mental

fogueira irresoluta da incompatibilidade

fios muitos fios, distância

entre dois pensamentos


, esta noite durmo com o caderno






DE PROFUNDIS VISSAIUM



CAVA


flor negra de xisto

que a bravura

começa no coágulo humano

conglomerado de rochas a ladear o coração


se culpa que mistério tudo isto

fraqueza ou traição?


fossilizada a flor negra inspira ―


o acampamento octogonal ressurge inteiro

e de lenda se vão enchendo os véus

do cheiro


nem mouro, nem romano

muito menos cristão enquanto aço

suplantam a grossura fresca

do espaço






PORTA DOS CAVALEIROS



chegados

entre vento e sopro

entremos no escuro líquido da cidade

pelo miocárdio baixo do segredo de cantos

de epopeias quadrangulares e fatais da história

de rostos esculpidos no oco

da lenda, da memória


porta imensa na cabeça

de correntes frias genuínas

[relicário dedicado]

de agulhas de gelo a precipitarem sangue na foz

de artérias graníticas

sôfregas de voz


. da pedra fria


, que o frio honesto da pedra

deveria replicar-se

nas searas ― levantai hoje conterrâneos

esse ínfimo esplendor rendilhado

vosso sangue

transparente estertor habitante

de pele e substância






LARGO SÃO TEOTÓNIO



não direi da torre do meu desentendimento com o mundo

nenhum testemunho vinga sobre a fraga de sublinhados

tensos emaranhados de acenos, de acordos acabrunhados

nem virtude ou alinhavar de nervos no que de profundo

fere o submundo do isolamento rotundo que a calúnia raia

não direi da sombra que amanhece sulfúrica numa praia

bruma confundida mas surpreendentemente praia de ondas

plena de céu água sal e areia roubada a sonhos timbrados

para idílico lamento de achados sonoros reencaminhados

seixos para constelações de aleijar muito em noites redondas

não direi da torre da gárgula embora nela me ampare agora

aguardo por acendedores de poemas andarilhos por aí afora






JANELA MANUELINA


procura a janela

vácuo e vidro

desaparecidos

janela ladeada

de lados vivos

desapercebidos


procura-a no sangue

as sombras aos bocados

estiletes corpetes

floretes alados de rompante

os casos as glórias

procura a janela das estórias


uma janela de pedra amante

do corte mais claro e limpo

à azia estruturante

do ar, do semblante


dizem manuelina

essa janela de matar

mas que interessam

efeitos, cobras ao olhar

ou reflexos de baptismo?


procura a janela

procura-a como sismo

mais fundo

com mãos e vida crua

procura

outra página de rua






FONTE DAS TRÊS BICAS


e porque sol antes de falar

a da direita é de pólen

grã fonte onírica do luar

magia adiada ao ouvido

turbilhão de sementes no ar


conversar é só caminho

e porque viemos não-ser

a da esquerda é de vinho

fonte musculada do delírio

flor de cor em torvelinho


trocar silêncios por gente

a bica do centro é de água

humildade real e emergente

de matar a sede como mágoa

de tão vivo o sentido ardente






PORTA DO SOAR



homo bulla

vivo cada hora

como porta d'aurora

homo bulla

respiro sob o arco

cingindo meu marco


homo bulla

sou bolha de sabão

das mãos ao coração






ROSSIO


a cidade observa-nos

tenho a certeza


apercebo-me no rossio

[olho sensível]

onde perdido-de-chão e hesitante

pressinto-o a operar

com uma paleta de cores e de sons

. e há um piano cardíaco

em cada habitante






MEDITAÇÃO NO

PARQUE DA CIDADE



digo folha folhagem

― folha que olha ―

a respirar na aragem

eu folha-osso

a fugir do fosso

por passagem


do que me lembro

me desmembro

no que posso

ruir em cartilagem


sou uma figura

tosca e insegura

confrontada

com a ramagem


enfim digo folha

folhagem

dentro de mim

outono sem dono

sem sono

tão só uma paragem


― ou o fim?






PRANTO DE MARIA DE ARAGÃO

NA FONTE DE SANTA CRISTINA



o fim ― onde a fonte secou

não imaginaria uma porta


região mais sóbria em mim

dor de encastrado mundo

o parto | o caixão

cercada asfixia da obrigação


o legado puro e podre

ombreando a estação


[minha estranha manhã

entranhas de minha irmã]


. a envenenada casula da morte


da sede, da mágoa no tempo cego

― bebo

da terra de plantas no desassossego






MURALHA


flor-de-pedra

donde borbota a cidade

do vermelho em panos

jardim de todas as bocas

com o sal ajuizado

dos insanos

uma vez era e restituindo

dentro a verdade nos ossos

e na fuligem

flor-de-pedra

a cidade unificada no vértice

na origem






CARTA DO NÓMADA FERIDO A TEMPO



esta carta é um corpo

um cofre de ossos perfumados

de escrever,

resolver a carne nas flores

da passionalidade violácea

revolver mistérios à dor

de estar vivo, de escrever

e morrer aos poucos







a pedra tornou evidente

começámos na água

ainda antes talvez

ente crente, dormente

[dança das partículas]


do movimento

vem o corpo

entre as sobras

de luz ― hoje

já tem ar


digo poesia, saltar







dizia ― assim voamos

dispersando distância

e azedume

voltamos a um sentido

centro estrelado

nenhuma via

precipício, árvore cortada

e nós no centro

desafiando o sol

e a cidade

palco como pulmão atónito

atento no meio do nosso abraço

asfixiando imagens outras

do mundo







deitado abandonando-me

desdobrando-me em tendões e clarões

experimento o perímetro-de-raios

conto-me dividindo ficticiamente

sectores concludentes, esquecendo as

portas d'esfíncteres cronometradas

pelo olho-de-luz ― esperando ainda

o bruxo das boas-noites, os lençóis

torturados por sobras de escrita e pão

riscos de artérias coroando o negro

cortes de gesto à laia de confissão







eis que acordo num linho escuro

bebi vinho morto ―

não esperava outra coisa dessa cicuta

dos pássaros, nem tudo reluz a pronto


o diário de feridas sobe o sangue

espuma-se em nada


eis que mover se torna em absoluto

o sentido primordial

o tecido da viagem | o nó-de-estrela







escrevesse a sombra debaixo do gato

zona escura movente

hipnose ondulante guiando a esferográfica

escrevesse ela sugando elipses às coisas

e por sorriso fixasse novela ou ensaio

[a caverna]

então fábula ou sonho seria

porque sombra o desinteresse do gato

desapego errante impregnado

de poesia







ver-te entre faces escavadas da catedral

som líquido na pedra

¿é isto música? de pele em pele

pulmões do tamanho da mão

a árvore aconselhou em tempo certo

são sonoros os frutos, ver-te entre

as faces escuras do espaço

súmula de voz que se vai esvaziando

e também o medo dá cor cansando

é isto música, lembro-me

pose por luz de monumento a monumento

continua líquido o som em qualquer pedra

agora sei







por veludo de não saber

alguém movendo-se

movendo-me dentro

abrindo e condoendo-se

vibrátil carta

desdobrando-se na

ave do peito, ser

água em flor

beber e esquecer

o rio estreito, a dor

um dia outro dia

a pele a escrever

enrodilhada de mal

encurralada por sal







felizmente aprendi com as plantas

a capturar gemas de sol

reanimei algumas vezes o coração

pondo no peito um seixo semilunar

aquecido pela estrela rainha


eu com os pés enterrados na areia

pertenço às árvores


fui ver o rio ― quem sou e

porque sou, pó angustiado

entre as nervuras da água







martela-me o som das ruas

com grandeza de canto

rosa de sentido perdido

pássaro que perde o nome ao voar


de aquecer o texto e chegar a ti

legente, micélio quente


baforada de lírios a emplumar

o papel entre as mãos







seguir-te, um gosto de boca com

a imperfeição da ausência, seguir-te

nas ruas do meu corpo

[galáxia incompreensível]

gosto amplificado em leituras sanguíneas

o texto a crescer como saudade

ou ilusão de secura de lábios ao espelho

como neva no sangue a frio na escrita

a contramão e depressa nos dedos doridos

que o que resta se sente e marulha

a foz dum vazio [soma] ou seja, seguir-te

querendo-te distante como estrela







dedo sozinho

luz perigosa

rodopia o espanto

a forma aquosa


dedo pequenino

no seu canto ―


dedo dado

dado dedo

engraçado

mete medo


desgraçado

dedo dado

dado dedo

apagado







vejo queimando

quanto de imagem

a luz seduz se

vela inebriando


uma coragem [solo]

de roer dentro fiel

― rindo e ferindo ―

o poema sem colo


ver para cegar

o dia inteiro

a confessar


porque tudo voragem

de olhar primeiro

a última imagem







eu

enquanto cabeça

pousada escarlate

ferindo as leituras


apercebo-me terrestre

rasante, sem que

me mate ―


eu

latejante, na

terra onírica

de abate







idealizo descomprometendo-me

separo todas as células

prometo-lhes liberdade

no abismo


o luar entre o sangue

místico cálice violeta

gasosa violência

de coração vivo


, assim escrevo ―


com o coração grosso na poesia

crendo morrer desenhando

crendo em abandonos de escrita

como se «florir» dissesse ferida






HORA-DE-LUZ



até chegar à liberdade do risco a alto

de colher amigos pulmões descomprometidos

sim, até chegar à liberdade desse risco

vai um tempo seco de romper esmeraldas

porque os esforços de onanismo contente

perdem a paisagem como a pedem às igrejas

da literatura comezinha subtraída ao deserto

estepes esterilizadas por tanto lustro ensaiado

― rimbaud desidratado à cabeceira com o bonsai ―

porque risco alto não é cantar mas sim rasgar

rasgar umbigos a um céu mesmo que pardacento

que a cor sai da violência natural do sangue nas veias

inquietante paisagem antes do verde tremente

sim, até chegar à liberdade desse risco

― palavra tida signo ou símbolo, tatuagem perigosa ―

há o livro a não ler | sincera noção de silêncio

ou ardósia ou animal ou poema ou silêncio somente







feral a ferida fingida

roto discurso a cru na carne

soçobrar de sobrar no mundo

um cansaço disruptivo

funciona como mó e agulha

intermitentemente sono e sexo

de caminharem personagens

seja terra o papel podre na farsa

recolhendo-se ao cerne da cápsula

crendo-se poema legítimo e orgânico

fagulha cárnea de grande silêncio

seja feral então a intenção escrita

deslocação rítmica do pensamento

a vaporizar por palavras, nuvem e selo







porque noite o rio mudo da insónia

noite prolongada a falanges do dia

vício e armadilha nos trilhos

[o riso metálico da insónia torpe]

de quem traz para trás a máscara

aguda máscara de juncos e morte

a noite em diálogo vivo na cabeça

roda-de-rosa de mão alguma sorte







e num relance aberto ao luar

arremessam-se letras e folículos

ao acaso | em contraste de contrapelo

como vórtice luminescente e aquático

alfabeto nada senão grunhido

freio risível da vizinha organicidade

interessa-me antes o mapa azul da noite

lavar oniricamente as camas porque

veios são lençóis sensíveis na leitura

vasto espectro da linguagem etérea

palavras esboroadas em estrelas ignescentes

aos olhos um álbum molecular íntimo

bailado de órgãos ou incisiva visceralidade

assim o luar dado em azul líquido

cosendo fundo a orfandade de mestre

a caminho da sombra | estado-zero

carvão lúcido luzente invés de corpo celeste







se sei vi o truque do aro

redundância em som repercutido

escadarias | alma numa garrafa

justifica-se a filosofia do gargalo

boca de cena precipitada no castelo

mas talvez rasgassem o tempo filósofo

coisa de impasse certeiro da medievalidade

que nunca a encher de música atende

os gritos duma banalidade explicativa

domínios que não se exercem se sei

vi o truque, o do aro cerebral

real mas quase imperceptível

truque de gato na laranja da esfera

ilusão de arco à boca dos sonhos

escadarias escadarias escadarias

ou truque do veneno-de-rua à espera







amanhã entre vincos que segredo

cruz-de-braços seguindo o reflexo

raio mínimo olhar do outro

permuta animal por prece tardia

que chegar miserável este

puzzle de prisioneiras gotas de orvalho

consequência da água no vidro dos olhos

a mão imediata incendeia a fotografia

quando ilha ouvido útil guardado

persianas abrem a manhã à rapariga verde

os aromas reanimam a voz do claustro

e uma língua de fogo denuncia o raio mínimo

pérola irregular mas com o brilho todo

o espaço musculado tornado pessoa

o núcleo floreando com música a existência

cruz-de-braços dançando espacejada

corola de olhar em olhar já flor-reflexo

atabalhoada vida num beijo de proa







descarta-se a paixão do inestimável

ofício de querer-viagem, o eu-sozinho

função dente-de-leão no cofre pulmonar

ou epístola entre pares sem céu

e tudo é sem céu pelo esquadro da ciência

não cabe a aorta em semente de demência

o quartzo azul do quarto de fugir

ensaio terrível da prova-de-vida

escorrendo entre dentes as palavras, secreções

o que contar por romance biológico

da dádiva que é partir falando em querer-viagem

quisto cianosado de escrita no corpo

imanência relutante da permanência

― paixão descartada enfim do inextinguível? ―

quente sangue impelindo e coagulando coragem

origami trôpego d'almas desdobradas à espera

dum último fôlego que se deseja primeiro







digo arca

sussurrando cofre

arca, arcar o corpo

quartzo escavado

água dentro sozinha

música, arco

arco e mistério

nuvem longe pequenina

centro de teia antiga

crucial aranha dos textos

trabalhando o uso

os aros, os panos

[armação do casulo]

estrategicamente postos

os estiletes de pedra

a corrente por som

verso-braço cristalino

onde chegar o pulmão







peço um não-haver pronto

culatra rasa da voz

e de pedir perco ponto a ponto

o triste fio de escolher em mim

a hora-de-luz no cristal de rezar

uma reza limpa de rezas peço

recolhendo vasos, diademas e sinais

um apagamento apaziguador de espaço

não-haver essencial da dispersão

ovo colossal de membranas e sol

sol miudinho de desembaraçar veias

fio de escolher dentro do cristal

esperando a tesoura de coração calado

ponto a ponto como estrada limpa

onde retecer em amor o desaparecimento