Micélio
[Edição de Autor, 2021]
que de oval e de ovo um clarão
estremece encharcado
de mínimos relâmpagos entre o sangue
como quem pela primeira vez ensaia vestir
um nome
à espera da noite
: o som-sangue de estar vivo atravessa
um ecossistema onírico de púrpuras
ensandecidos minotauros num espasmo indiciador
de cortinas e guilhotinas ―
de oval e de ovo o nome
enredado na pele e no sono
raivas de casca podre à entrada do palato
ecoando primitivos ecos de ecos
ocos relâmpagos mínimos
entre o sangue
✫
por observação entenda-se um esvaziamento progressivo
do alto esqueleto branco prostrado
ensimesmado no lenho do tempo
esqueleto branquíssimo longe do cósmico
da míngua de terras e barros para uma boca ― ou linha
de fecho
subentenda-se,
profusa chuva miudinha de embaraços
revendo fissuras de tessitura familiar nos tendões
que da pose
fomentam vergonha ontológica de cansaço
a morte falará do búzio
surgirá na última esquina da realidade enquanto dúvida
com um grosso sobretudo de burel
vinda das fábulas e dos contarelos
a morte murmurará ao ouvido palavras do eterno descanso
morrinha bífida entre vulva e boca
✫
surgir e ressurgir, artifício de dissolução do tempo
ou o corte de pássaros
num qualquer momento aleatório
nem a pomba nega de brusquidão urbana
nem o velho abandona o banco de jardim da cidade
[sobreposição de ninhos cognitivos da frustração]
o tempo por um tempo outro tempo
o da infância e o da indecisão
artifício de dissolução o tempo
ninguém sabe onde ele começa no corpo
ou onde começará o seu próprio corpo
e o de outros em si
onde na insondabilidade dos poros
em cada corpo as partes entre si começam
por confissão ― eis o micélio de
inícios corporais em sobreposição
micélio estranhamente activo sob a mínima jugular
sem qualquer noção de espaço os espectros queimam
a medo queimam o tempo no cadinho da negação
✫
cresce na caruma da garganta
visitação que mergulha na aventura áquea dos dedos
intangíveis dedos da memória
dedos de coito e relação
semi-apagados
― a presença recupera raízes antigas
reconstrói uma árvore pulmonar
ao contrário
, o peso inteiro de uma nau
no peito
✫
quando o quanto em marcha assobia
e se revela na cor e na dor
da urina
casa de enganos cárneos
medidos pelo desmedido cérebro
a promessa de uma estrela
será suficiente no alívio de sintomas indesejados
tal como o sabão
padre no banho que limpo não é de aromas
em professo ar
quanto de nada, horas frias
desdizendo a temperatura da permanência física
na terra
desencanto do quanto
quando tudo vier como má notícia
os olhos a abrirem arregalados
muito do espanto
de saber ainda a doer muito
toda a nomenclatura dos fluidos
sobre o plano
✫
mantra : o perfil de corda em meditação
refulge um peixe em labaredas com a água dos sonhos
o perfil de corda sonda as válvulas coronárias
e pequenos sistemas arteriais
dá o mote para o ingresso
na grande dispersão do sangue onírico
manter a áurea areia de uma praia conservada na memória
sem azedumes de cardumes dissuasores
manter essa imagem de areia refulgente
áurea e vívida
com pessoas em redor
pessoas-feixe ou peixe diáfano sentindo o pulso
cerebralmente aquando o salto
do lince
✫
uma espécie de caroço fulvo rindo no escuro
noz de dentro
fácil de quebrar e estalar entre cartilagens
e nada disto me entra no nome
ou na culpa
da caligrafia das mucosas sobre o cimento
naturalmente que queria
uma escrita limpa na noite das estrelas
uma última observada
noite de orvalho no terraço dos avós
mas o que cranialmente resvala
é um vazio-vácuo do luto ainda por engolir
nos intervalos da agenda
desconheço o meu próprio interior
meu verso vivo do reverso morto
desconheço-o no intuito de sobreviver
ao toque de nuvem na almofada que me vê dormir
sei que me incomoda e se intromete
esta espécie de caroço, fulvo, movendo-se no escuro
rindo ― chego a temer que seja o coração
✫
mão quente surpreendida pelo conhecimento
mão morta reservada ― a mão quente sobre a mão fria
dedos sobrepostos : uma raiz de vénulas e arteríolas
o que desdobrar da surpresa antagónica das mãos?
beber da raiz? ter medo?
… o rarefeito ar da tarde em que o trovão poda a árvore
simples memórias
risos como folhas caducas
brisa suave de cabelo muito preto
― o rizoma invertido da insegurança insondável
o que há de intervalo entre a mão quente e a mão fria
✫
a pintura decai eu respiro
olho e o painel respira também ― a pele mente em tintas
com o suor de temperaturas
como me traem as galerias vivas de uma memória
ameaçada de viscos temporais e de efemeridade
olho
a linha do nariz
sob a asa desaparecida de um subterfúgio
curva entusiasmada de um gesto contundente
aguçado no olhar
cúmulo de intentos vertiginosos
que enferruja o paladar magoado de sangue
✫
um veio dourado entre o sangue ao vento
de estreitar corredores no pensamento ―
nenhum desígnio sobre o parapeito
o milhafre morto numa página cheia de voo
nenhum remorso sobre o parapeito
apenas a espera cheia de nódulos escuros
, espasmos de irreconhecível pulso
de esperar que tudo se faça
como o desenho grosso das ondas numa praia
um veio dourado pendendo de nostalgia
o ácido das fotografias a morder a pele
, paisagens cinzentas umas sobre as outras
[almas frágeis decalcadas a frio]
e o ouvido morto feito milhafre
✫
pesa o músculo contra o sono
incidente hesitante
à escarpa do peito colhido e recolhido
de apresentação em apresentação
como enigma do espelho da nave do mundo
[diálogo entre águas espectrais]
e o enigma é o que se escolhe deixar fora
um secular contexto da cerebralidade física
da permanência ―
irrastreável esse momento da mágoa
em que surge o hematoma
formigando tecidos d’alma atormentada
sublime alimento da iconoclastia cíclica
da ignorância
✫
olhar sobre o ombro do duplo ― um anjo zangado?
o que revelar da narrativa cruamente real
dorso enfático da ideia
a crescer animalesca num antro atapetado
de angústias carmesins do passado?
a casa, o sótão? o corpo ou a mente?
a podridão retórica dada a mente infestada de ratos
a desmentirem o lixo?
funcionam ainda os autómatos da subserviência?
procuram um lugar de mácula idílica por consciência?
quando, nas escadarias, aparecerá o ridículo palhaço
dando em gargalhadas a esmola contrária do suicídio?
✫
e o glóbulo sonoro não diz nada
do fundo cónico ao gargalo gaguejador
vaso de dormência | ensaio de túmulo branco
o glóbulo sonoro não quererá dizer nada
flui no rio sanguíneo de uma frase calada
de cada momento brincado no sangue
a sombra de estatueta falsa amealha
humidade de crescimento no conhecimento
para um salvo-conduto de insatisfação
no flanco magistral da solidão em dor
um sussurro cristaliza o sabre ósseo do âmago
vai escrever no peito suado da noite sanguínea
o rio dos amieiros negros ― os peixes não entenderam
o sermão; mas fazem o que têm de fazer
✫
invariavelmente de costas a imagem é suplantada
pelo vulto rude de sombras indistintas
a porta entreaberta ― vê-se o fuso cromático
pelo qual o estigma floral ensaia abrir-se
na hora insuspeita do diafragma
[a imagem]
a alcateia de barulhos melindrosos longe da celulose
vaso de sangue sonâmbulo a incendiar a planície
as costas do medo ―
as personagens ensandecem na mente
papel químico do reverso pensado
alguém frente ao espelho nega de nojo
a melancolia absorta
de uma presença morta
✫
reconfiguro o cristal da manhã mentindo de novo às estrelas
passo e vejo ―
a água corre cristalina na prisão do quartzo
janela natural do encanto misterioso repercutido
, dizer das poças
dos regos que sulcam e cantam a fraga luzidia
brilho preparado de temor e erosão
. tanto que o cristal nem é importante
mas a possibilidade espectral dum prisma ―
que conversas arderão no quartzo apresentado como janela
no mineral atiçado por água fria do inadvertido pensamento?
tóxica ideia do cristal enquanto acto de beber em perdição
ou mera assumpção dum grotesco salto de ambição, ideia
enquanto sede exasperante à beira do riacho
mas recusando sempre de rosto transfigurado nesse espelho
e não abandonando nunca o desejo de engolir louco
uma flecha-torrente de água gelada rumo ao coração
✫
fermentam humores e tremores no lagarto
pisado na estrada ― emaranhado de fios de seda cósmica
que na funda sombra cirzem trechos de indecifrável vida
terra | água | ar | fogo
da boca do lagarto o barro vermelho de sangue ou ferrugem
de quadrangular o céu asfixia em palavras
falsos cadafalsos para azedume : o que fermenta não é ódio
antes uma natural segregação de tédio
incandescência doente de pensamento
à mínima pulsação do silêncio enquanto grito
✫
regredir para regressar ao atónito
do que se singra num qualquer momento
que o veneno atrofia vagarosamente o tronco vegetativo
da vontade ― separam-se
as mucosas litigiosas de sombras
como súmula da noite um véu urticante de cólicas
encontro perdida no chão a palavra «carnagem»
gémulas de flores gemem de função
rente às casas que choram betão ― se tão errado fugir
como que permitindo na dispersão o erro elementar
no seu último grau de pureza
a rapariga verde leva a mão à barriga
quer confessar-se à floresta
onde bichos refulgentes apressam-se a refugiarem-se
nas lacunas das árvores negras
regredir então ao atónito para regressar
à sensaboria doente dum leme perdido
como a palavra «carnagem»
ainda no chão
✫
e o traço mínimo largado no ar e na água dos duendes
vem trazer fendas ao olhar
o verso parado parece arder
de agir por dança na arena simplificam-se hierarquias
o grosso arabesco morde a mão que o desenha
infinita fábula de gestos
e malfadadas hemorragias textuais
a folha-esqueleto veio segredar antífonas do fim
estórias de anjos na terra e feridas no azul-celeste
afinal grânulos de texto gangrenam a página
passando a memória dum corpo o que era arabesco
uma promessa de árvore arterial
perdida entre ouvidos no limiar do abismo
✫
como quem assina a sua morte nalguma margem do sonho
assim o regaço
talvez legado pulmonar da ignorância
e a mortalha mais limpa do que uma vocação
enganei-me com os dedos nos lábios
estilete e linho amarelecido sobre a escrivaninha
enganei-me beijado pela secura de ditados
como quem desdiz a vida de cemitério em cemitério
― cortar o filme no sangue
com incertezas na lírica de canções prenhas de significado
aura intrincada sobre o plano ou vulto a bafejar a bafejar
e o corvo começa a roubar panos à escrita
parece-se com uma orelha necrosada ante a morte
as asas fazem menos barulho do que a cor
✫
perguntar pela lágrima numa ponta do lençol
tem sido o remédio de uma vida paralela
a coreografia necessária para dançar sozinho na margem
e atrair as panteras bravas dos livros em humidade
no inverno
perguntar pela lágrima
como que reúne o que ainda de humano subsiste
mesmo que as esferas da biologia recusem
a lírica assustada de impressões em agulha
mesmo que o manto alquímico não resista já
à fricção atroz da banalidade
perguntar pela lágrima entre a lavanda
do lençol ternamente enrodilhado numa das pernas
mesmo sem os encarnados vertiginosos de caravaggio
perguntar abandonando a lenta crueldade dos últimos dias
e dormir