Micélio

[Edição de Autor, 2021]






que de oval e de ovo um clarão

estremece encharcado

de mínimos relâmpagos entre o sangue

como quem pela primeira vez ensaia vestir

um nome

à espera da noite


: o som-sangue de estar vivo atravessa

um ecossistema onírico de púrpuras

ensandecidos minotauros num espasmo indiciador

de cortinas e guilhotinas ―


de oval e de ovo o nome

enredado na pele e no sono

raivas de casca podre à entrada do palato

ecoando primitivos ecos de ecos

ocos relâmpagos mínimos

entre o sangue







por observação entenda-se um esvaziamento progressivo

do alto esqueleto branco prostrado

ensimesmado no lenho do tempo

esqueleto branquíssimo longe do cósmico

da míngua de terras e barros para uma boca ― ou linha

de fecho

subentenda-se,

profusa chuva miudinha de embaraços

revendo fissuras de tessitura familiar nos tendões

que da pose

fomentam vergonha ontológica de cansaço


a morte falará do búzio

surgirá na última esquina da realidade enquanto dúvida

com um grosso sobretudo de burel

vinda das fábulas e dos contarelos

a morte murmurará ao ouvido palavras do eterno descanso

morrinha bífida entre vulva e boca







surgir e ressurgir, artifício de dissolução do tempo

ou o corte de pássaros

num qualquer momento aleatório

nem a pomba nega de brusquidão urbana

nem o velho abandona o banco de jardim da cidade


[sobreposição de ninhos cognitivos da frustração]


o tempo por um tempo outro tempo

o da infância e o da indecisão

artifício de dissolução o tempo


ninguém sabe onde ele começa no corpo

ou onde começará o seu próprio corpo

e o de outros em si

onde na insondabilidade dos poros

em cada corpo as partes entre si começam

por confissão ― eis o micélio de

inícios corporais em sobreposição

micélio estranhamente activo sob a mínima jugular


sem qualquer noção de espaço os espectros queimam

a medo queimam o tempo no cadinho da negação







cresce na caruma da garganta

visitação que mergulha na aventura áquea dos dedos

intangíveis dedos da memória

dedos de coito e relação

semi-apagados


― a presença recupera raízes antigas

reconstrói uma árvore pulmonar

ao contrário


, o peso inteiro de uma nau

no peito







quando o quanto em marcha assobia

e se revela na cor e na dor

da urina

casa de enganos cárneos

medidos pelo desmedido cérebro


a promessa de uma estrela

será suficiente no alívio de sintomas indesejados

tal como o sabão

padre no banho que limpo não é de aromas

em professo ar

quanto de nada, horas frias

desdizendo a temperatura da permanência física

na terra


desencanto do quanto

quando tudo vier como má notícia

os olhos a abrirem arregalados

muito do espanto

de saber ainda a doer muito

toda a nomenclatura dos fluidos

sobre o plano







mantra : o perfil de corda em meditação

refulge um peixe em labaredas com a água dos sonhos


o perfil de corda sonda as válvulas coronárias

e pequenos sistemas arteriais

dá o mote para o ingresso

na grande dispersão do sangue onírico


manter a áurea areia de uma praia conservada na memória

sem azedumes de cardumes dissuasores

manter essa imagem de areia refulgente

áurea e vívida

com pessoas em redor

pessoas-feixe ou peixe diáfano sentindo o pulso

cerebralmente aquando o salto

do lince







uma espécie de caroço fulvo rindo no escuro

noz de dentro

fácil de quebrar e estalar entre cartilagens

e nada disto me entra no nome

ou na culpa

da caligrafia das mucosas sobre o cimento


naturalmente que queria

uma escrita limpa na noite das estrelas

uma última observada

noite de orvalho no terraço dos avós

mas o que cranialmente resvala

é um vazio-vácuo do luto ainda por engolir

nos intervalos da agenda


desconheço o meu próprio interior

meu verso vivo do reverso morto

desconheço-o no intuito de sobreviver

ao toque de nuvem na almofada que me vê dormir

sei que me incomoda e se intromete

esta espécie de caroço, fulvo, movendo-se no escuro

rindo ― chego a temer que seja o coração







mão quente surpreendida pelo conhecimento

mão morta reservada ― a mão quente sobre a mão fria

dedos sobrepostos : uma raiz de vénulas e arteríolas


o que desdobrar da surpresa antagónica das mãos?

beber da raiz? ter medo?


… o rarefeito ar da tarde em que o trovão poda a árvore

simples memórias

risos como folhas caducas

brisa suave de cabelo muito preto


― o rizoma invertido da insegurança insondável

o que há de intervalo entre a mão quente e a mão fria







a pintura decai eu respiro

olho e o painel respira também ― a pele mente em tintas

com o suor de temperaturas

como me traem as galerias vivas de uma memória

ameaçada de viscos temporais e de efemeridade


olho

a linha do nariz

sob a asa desaparecida de um subterfúgio

curva entusiasmada de um gesto contundente

aguçado no olhar

cúmulo de intentos vertiginosos

que enferruja o paladar magoado de sangue







um veio dourado entre o sangue ao vento

de estreitar corredores no pensamento ―


nenhum desígnio sobre o parapeito

o milhafre morto numa página cheia de voo

nenhum remorso sobre o parapeito

apenas a espera cheia de nódulos escuros


, espasmos de irreconhecível pulso

de esperar que tudo se faça

como o desenho grosso das ondas numa praia


um veio dourado pendendo de nostalgia

o ácido das fotografias a morder a pele


, paisagens cinzentas umas sobre as outras

[almas frágeis decalcadas a frio]

e o ouvido morto feito milhafre







pesa o músculo contra o sono

incidente hesitante

à escarpa do peito colhido e recolhido

de apresentação em apresentação

como enigma do espelho da nave do mundo


[diálogo entre águas espectrais]


e o enigma é o que se escolhe deixar fora

um secular contexto da cerebralidade física

da permanência ―


irrastreável esse momento da mágoa

em que surge o hematoma

formigando tecidos d’alma atormentada

sublime alimento da iconoclastia cíclica

da ignorância







olhar sobre o ombro do duplo ― um anjo zangado?


o que revelar da narrativa cruamente real

dorso enfático da ideia

a crescer animalesca num antro atapetado

de angústias carmesins do passado?


a casa, o sótão? o corpo ou a mente?


a podridão retórica dada a mente infestada de ratos

a desmentirem o lixo?


funcionam ainda os autómatos da subserviência?

procuram um lugar de mácula idílica por consciência?


quando, nas escadarias, aparecerá o ridículo palhaço

dando em gargalhadas a esmola contrária do suicídio?







e o glóbulo sonoro não diz nada

do fundo cónico ao gargalo gaguejador

vaso de dormência | ensaio de túmulo branco

o glóbulo sonoro não quererá dizer nada

flui no rio sanguíneo de uma frase calada


de cada momento brincado no sangue

a sombra de estatueta falsa amealha

humidade de crescimento no conhecimento

para um salvo-conduto de insatisfação


no flanco magistral da solidão em dor

um sussurro cristaliza o sabre ósseo do âmago

vai escrever no peito suado da noite sanguínea


o rio dos amieiros negros ― os peixes não entenderam

o sermão; mas fazem o que têm de fazer







invariavelmente de costas a imagem é suplantada

pelo vulto rude de sombras indistintas


a porta entreaberta ― vê-se o fuso cromático

pelo qual o estigma floral ensaia abrir-se

na hora insuspeita do diafragma


[a imagem]


a alcateia de barulhos melindrosos longe da celulose

vaso de sangue sonâmbulo a incendiar a planície


as costas do medo ―

as personagens ensandecem na mente

papel químico do reverso pensado


alguém frente ao espelho nega de nojo

a melancolia absorta

de uma presença morta







reconfiguro o cristal da manhã mentindo de novo às estrelas

passo e vejo ―

a água corre cristalina na prisão do quartzo

janela natural do encanto misterioso repercutido


, dizer das poças

dos regos que sulcam e cantam a fraga luzidia

brilho preparado de temor e erosão


. tanto que o cristal nem é importante

mas a possibilidade espectral dum prisma ―


que conversas arderão no quartzo apresentado como janela

no mineral atiçado por água fria do inadvertido pensamento?


tóxica ideia do cristal enquanto acto de beber em perdição

ou mera assumpção dum grotesco salto de ambição, ideia

enquanto sede exasperante à beira do riacho

mas recusando sempre de rosto transfigurado nesse espelho

e não abandonando nunca o desejo de engolir louco

uma flecha-torrente de água gelada rumo ao coração







fermentam humores e tremores no lagarto

pisado na estrada ― emaranhado de fios de seda cósmica

que na funda sombra cirzem trechos de indecifrável vida


terra | água | ar | fogo


da boca do lagarto o barro vermelho de sangue ou ferrugem

de quadrangular o céu asfixia em palavras

falsos cadafalsos para azedume : o que fermenta não é ódio


antes uma natural segregação de tédio

incandescência doente de pensamento

à mínima pulsação do silêncio enquanto grito







regredir para regressar ao atónito

do que se singra num qualquer momento

que o veneno atrofia vagarosamente o tronco vegetativo

da vontade ― separam-se

as mucosas litigiosas de sombras


como súmula da noite um véu urticante de cólicas

encontro perdida no chão a palavra «carnagem»

gémulas de flores gemem de função

rente às casas que choram betão ― se tão errado fugir

como que permitindo na dispersão o erro elementar

no seu último grau de pureza


a rapariga verde leva a mão à barriga

quer confessar-se à floresta

onde bichos refulgentes apressam-se a refugiarem-se

nas lacunas das árvores negras


regredir então ao atónito para regressar

à sensaboria doente dum leme perdido

como a palavra «carnagem»

ainda no chão







e o traço mínimo largado no ar e na água dos duendes

vem trazer fendas ao olhar

o verso parado parece arder

de agir por dança na arena simplificam-se hierarquias


o grosso arabesco morde a mão que o desenha

infinita fábula de gestos

e malfadadas hemorragias textuais


a folha-esqueleto veio segredar antífonas do fim

estórias de anjos na terra e feridas no azul-celeste


afinal grânulos de texto gangrenam a página

passando a memória dum corpo o que era arabesco

uma promessa de árvore arterial

perdida entre ouvidos no limiar do abismo







como quem assina a sua morte nalguma margem do sonho

assim o regaço

talvez legado pulmonar da ignorância

e a mortalha mais limpa do que uma vocação


enganei-me com os dedos nos lábios

estilete e linho amarelecido sobre a escrivaninha

enganei-me beijado pela secura de ditados

como quem desdiz a vida de cemitério em cemitério


― cortar o filme no sangue

com incertezas na lírica de canções prenhas de significado

aura intrincada sobre o plano ou vulto a bafejar a bafejar


e o corvo começa a roubar panos à escrita

parece-se com uma orelha necrosada ante a morte

as asas fazem menos barulho do que a cor







perguntar pela lágrima numa ponta do lençol

tem sido o remédio de uma vida paralela

a coreografia necessária para dançar sozinho na margem

e atrair as panteras bravas dos livros em humidade

no inverno


perguntar pela lágrima

como que reúne o que ainda de humano subsiste

mesmo que as esferas da biologia recusem

a lírica assustada de impressões em agulha

mesmo que o manto alquímico não resista já

à fricção atroz da banalidade


perguntar pela lágrima entre a lavanda

do lençol ternamente enrodilhado numa das pernas

mesmo sem os encarnados vertiginosos de caravaggio

perguntar abandonando a lenta crueldade dos últimos dias

e dormir