Corpo

[Edição de Autor, 2020]






luz tonal ―

o corpo

entre fissuras

traz viva

a música

das esferas,

um recanto

de fogachos

por onde a agulha

deixa o canto

perfurar-se

de encanto

na vírgula

do horizonte.

os pulmões

escrevem

com oxigénio

ritmo-sísmico

deixam fluir

o último azul

do céu como

rápida memória.

no que de químico

exala a escrita

floresce a ideia

de ser

de ferir a biologia

enquanto energia.

e o movimento

é o sangue,

sangue vivo

escrevente

no vazio,

entenda-se:

tonal e

luminoso

enquanto perda

constante ―

dele o eflúvio

pensamento

flor desarmada

dum intento

dele a fisicalidade

do movimento.

enquanto perda

constante

a vida é possível

enquanto dúvida

sangrando

esquecimento

embrulhado de

comoção numa carta

sem remetente.

manter a estrela

no corpo, faísca

entre a carne

o desenho do gesto

mantido quente.

dente-de-leão

ou pólipo

sussurro descendente

entre clarão

e semente

brisa de sal

intersticial ― a voz

ressoa a mãe

por todo o corpo

entre o bem

entre o mal

vem de longe

o cordão umbilical.

o sol caminha

para os ossos;

que o marfim

é escutado

no outro lado.

as sombras alimentam

os espíritos.

o esqueleto dum sopro

atrapalhado algures

no universo

funciona como compasso

para uma cartografia.

e trabalham

finas agulhas no

gosto lido

nas entrelinhas

da indefinição

existencial ― o que

levar do gosto para

dentro do corpo?

e entenda-se

profundidade ontológica

como fruição em

rendilhado microscópico

: miríade de cintilações

membranares que

por transumância onírica

se transformam

em ornamentados

pórticos, em tácteis

sonhos ou pesadelos.

a vírgula do espanto

assoladora vontade

e dúvida como

insólito instrumento.

interessará a viagem

do pássaro num corpo

cujo o céu é a pele?

esquecendo o pombo

intermitente

no corvo real

para entreter dentro

há que converter

livros em ave

reverter a frase

ler enfim

o voo ―

conversam os espasmos

na fundura do diálogo

entre corpos

carnais ou intangíveis,

medem-se pelo ouvido

efemeramente

medem-se na mescla

caindo sempre na

realidade doente.

a música

salva

a continuidade

dos corpos, faz

estremecer a

fissura

por onde nascem

as palavras ―

o mais puro

murmúrio

é o que valerá

a pena salvar

: som rítmico

cheio de

oxigénio

delicadas palavras

de magro papel

de tão sensível

quase música

e de quase ser

a fissura

legitima a

verdadeira música

entre corpos

que se tocam

também pelo olhar

também pela tensão

do arco imaginativo

a salientar

imprecisões de

cada âmago

reimaginado

plano a plano

em plena deserção.

e falar é

reconfigurar vida

ou morte

descer ao mais

íntimo do organismo

ainda a

organizar-se

confuso e curioso

na fuga que

é viver, descer

para reencontrar-se

absoluto

na dúvida

: indagar

do rio ao mar

a foz das bibliotecas

praia de lençol fino

onde dormir

entre alimentos.

porque a origem

do verbo enquanto

substância viva

começa numa boca

insondável; daí a

aflição dos desígnios

tatuados de civilização

em civilização ―

a garganta é

a derradeira caverna

da humanidade,

acalenta uma gravidez

para o derradeiro

silêncio.

o vento frugal

assiste o ser esperante

permeável a delírios

de narrativas diárias

d'alcova. o corpo

tem muito a aprender

com as árvores; não apenas

a nível estrutural

ou de presença

também a nível endógeno

algo alquimicamente etéreo

como a viagem interior

de apanágio botânico

raiando aparências

nos reflexos da carne.

a experiência enquanto

acto animal sobre as coisas

conserva na sua essência

a ingenuidade inteligente

dum primeiro olhar ―

e há o toque,

movimento primordial

de acção,

exímio acontecimento

de conhecimento

das esferas em translação

soando música como

sangramento preciso,

como leitura de

navegação; o que de cru

em elipse se entende

por órbita oculta de

seres em transgressão.

a borboleta-caveira

paira como ameaça fértil

entre tecidos musculares

causa dor

desconforto febril

redefine limites

a órgãos nobres;

flébil insecto

de consciência

temeroso no incenso

do sonho enquanto

ameaça, ou antes

inevitável selo de

aviso das trevas.

a noite aprimora

a luz escarlate no corpo

para a valsa ritual

de estação em estação;

no seu gume espelhado

vivem as imagens

sobreviventes

de todas as eras ―

a noite é a terra,

o útero do mundo.

contudo, o que se

ouve à partida

é a água cantante

a ecoar num

recipiente; a espiral

do pensamento

é um puzzle em

movimento. mas

ferir a verdade

falando a folhear

águas da mente

não cabe na dulcificada

forma de comunicação

entre pares, com todos

os maneirismos fúteis,

apesar de constituir

uma boa fonte

de vurmo útil.

a utilidade

é o embaraço

crepitante

do cérebro,

a cabeça pesa

no alento dos

membros em

assincronia.

que barco oco

de medusas

grávidas!

frases-serpentes

atrapalham a

biologia necessária

ao equilíbrio

caminhante das

células. tudo fora do

silêncio fecundador

e mesmo assim

o tambor coronário

precipita esguichante

vida nas situações

inesperadas ― tem a ver

com um feixe de energia

que tem um timbre

metamórfico. as

metamorfoses musicais

do que se sente

enriquecem outras

figurações mentais

e são sangue espiritual

para o desenho

dos gestos,

movimento cru

da poesia. a ideia

confunde o género

e perde importância

pela efemeridade

do ser pensante.

o traço veemente

da ideia

interessa no

sentido inevitável

da vida enquanto

acto natural

de sensibilidade

química para o

social, ainda que

abstracta essa

intenção; o ímpeto

individual vem do

feixe embrionário

da unidade

nascida ímpar e

a nível prático

desamparada ―

daí a noção de corpo

no que de si terá

a sua essência

mais absoluta. querer

não é crer, ser não

implica ter e ver

não tem ainda

a cegueira pura

necessária. erros

da ideia em si

idealizada. entre

névoa e nuvem

no corpo as mãos

reconfiguram

um véu no

espaço interior

dum vagão cárneo,

reconfiguram ecos

do cordão umbilical;

a música tende para

um líquido amniótico,

ambiência para uma

saliência à qual

as mãos se agarram.

acutilante dedilhar

de cristal sobreposto

a cartas suadas

do céu hialino ―

o corpo ama

de perder-se na

profundidade da seda

interna; de amordaçar

o grito para maior prazer

o corpo ama, derrama

engana-se inocente

de doer ―

a vaga do arterial som

redesenha o horizonte

estremece paradigmas

nos alvéolos

da contradição

corpórea. a ironia

manifesta-se pelo

frio negro de gotas

acendendo um

sistema complexo

de neurotransmissores

ou a lua contrapondo-se;

a ironia, vaga

onde sombras ombreiam

os estigmas

vaga capciosa

um casulo estranho

que se não crescer

será expelido

pela boca ― tradição

oral [mitos e bruxedos]

no lajedo reluzem

escaravelhos junto

à fogueira, o medo ―

versão lendária

da aversão ao real

por oração

: levai abantesmas

a cintura violeta

do monte azul

casa da borboleta-caveira

levai por ora

engordai o cereal

da longa noite

o cereal escuro

d'alquímicas especiarias

e não esqueçais

a dama do lago

cuja coroa é a lua cheia

pois ela espelhará

o que de melhor tereis

noutro mundo.

tossem luz as estrelas

ao luar

perante a insistência

perpetuante do

tambor coronário,

uma dança infinita

do espírito na

clareira da floresta.

uma dormência

invade do peito

às pernas o corpo

pronto para a viagem

à ilha dos pássaros

de mil cânticos.

o moinho do sono

a farinha do sonho

a teia interna

que o cérebro já

não é para pensar

vê-se reduzido a

um fruto morto

ilusão finda tida

por planeta apagado.

convém verificar amiúde

os filtros da cor biónica

o modo como a existência

sangra, partindo dum

qualquer pedaço de

realidade ― um pé

no fio de música

que ilumina o rosto

[camélias e rododendros]

mãos cheias, sorte

do astro seco nas pregas

da pele; ouvido louco

entre escamas de criaturas

vindas das fábulas

com vento mágico

do azul celeste roubado

ao nascer do sol.

aurora das entradas

mundanas

do sopro desprovido

de literatura,

sucedâneo e perene

entorpecer de

ferramentas cárneas

afectas ao texto ―

narrativa-corpo do

vento-dentro [ventre]

não-corpo do que é feito

se não-dito : coreografia

violenta do que é

lido minuto a minuto

ao ritmo de arcos

semilunares e

feixes híbridos tidos

por menores aos

propósitos da biologia.

começar por uma

pétala, ainda que

indistinta, uma

pétala vermelha

oferecida à música

o começo começado

pedra no fundo do corpo

como poço sem fundo

questão de questionar-se

corpo a corpo com

a identidade espraiada

num sonho aberto

por sugestão da

precariedade mental

entre plataformas

inomináveis. a

pétala vermelha

virá do nada?

estranho barco

na viagem da língua

insólita presença

na disposição do

tabuleiro ― o nada

é o jogo?

da apresentação submersa

que é o ser ensaiando

fragilidades ao nevoeiro

fervilhante e denso,

da apresentação escusada

o ser é e o nada se lhe

acrescenta grávido

de gritantes vazios ocos

: a pétala vermelha

é a língua?

uma nuvem de moscas

por cabeça; assim se

pensa o mundo

como emaranhado negro

por tangente no

hemisfério do próprio

pensamento-caminhada

reduto desconhecido

de ter qualquer água

demais valiosa para

uma sede implacável

ou seja, matar o peixe

na própria boca.

que boca foi pátria?

alguma vez? muito

menos a língua.

o sabor a fonte

é o risco ―

a fonte da permanência

[promíscuo visco]

para quê gritar

dentro do diário?

que terra implantar

ainda longe da

derradeira terra

como única

terra a interessar?

no fim

nenhum interesse

talvez, ou

genuíno baldio

merecido esquecimento

depois das dores, depois

da confusão de músculos

[esforço em progressão]

ou movimento-brasa

em confissão ― depois

do infernal depois cárneo

dito e escutado

infinitas vezes. alguma vez

em alguma dimensão

o texto enclausurado

como semente.

o cheiro a terra

molhada, chovida de

desencanto camarário

cheiro que se adensa

nos ossos

estremecendo todo

o corpo. o cheiro

é um buraco de luz

onde as tessituras

de aromas

fazem o que fazem

um vitral de cores

intangíveis

com a mobilidade

dum sonho.

a chuva repercutida

no crânio

memória física da acção

ou fragrância de gestos

e conversas,

enfim ― há um

caminho-luz

a abrir passo a passo

articulação a articulação

o puzzle

de infinita narrativa.

encontrar dentro

todas as pedras

incluindo as mais

minúsculas areias

de incompreensão,

espasmos de

paleta cósmica

no pensar

rodeando a raiz

do lírio.

há-de haver

uma janela onde

receber o pássaro lírico

depois da longa

travessia do deserto.

o leque de cada asa

grande no efeito de

dormir e agarrar

a deserção. e os livros

são pássaros escondidos

no papel ―

ler é chilrear.

a voz leva a pele

a deambular por

prosódias de terra

lama e cinza, a voz

pesa na pele

marchetada de estrelas

silenciosas ― se o som é

apenas vento

sem significados

ódio ou paixão

se o som é vento-dentro ―

então a leveza

perdoa a maldade

da humanidade; a leveza

apaga como borracha

qualquer indício

de existência mais pesada.

a serpente rodeia o fogo

dos pianos ― o espírito

vive no corpo uma escrita

dum cristal doloroso.

a dor com que se ajoelha

grossa boca de moscas possessas

no tendão dos ciclos

mesa estridente de perdões,

contínuos vícios.

a espera destoa, dá vida

à esperança necrosada;

trabalhos penosos da

permanência ― qualquer coisa

de reflexo musical

um qualquer ímpeto

de candura jovial

perante o velho universo.

passa a energia entre bocas

contágio poético do

descanso eufórico da

enfaixada depressão.

uma vela arde

na direcção do bardo

um armário de lágrimas

a boiar num mar gelado ―

que o choro é uma farmácia

tantos choros como antídotos

a venenos. o ouvido movimenta-se

na lonjura cárnea

dum som crepitante no

cerne da alma, coração.

a espada da paixão multiplica-se

em agulhas, antídotos.

então o ouvido não ouve

canta silenciosamente

para o coração ―

o vinho morto no sangue

faz cantar a videira;

a pedra reluz na carne

assim a verdade provisória

das leituras, um real

a fazer corpo

enquanto música.

o toque da mão parte

o que se aparte do

silêncio físico : partindo o som

desvendando

fragmentos ressonantes

dum espírito liquefeito

a refluir por concreção

lírica ― a infância,

um engano cardíaco

que prolonga o mundo;

arrasta-o para o corpo

de corpos entre corpos

submergidos na muita pele.

camada a camada a pele

apresenta-se eufórica

casulo de manchas

personalidade em sombra

numa parede.

o infinito globular da parábola

confundida fábula

passada de boca em boca.

subterfúgio do corpo

o não-sexo

enormemente idealizado

como sexo

no sentido funcional do termo.

o desejo-elixir apartado da arte

raiando aspectos anedóticos

de comparação subsidiária.

inquietude corpórea

cisma na alma como

avanço repentino que

inutilmente esclarece

a gota de água defronte

a fonte.

o suor engana os ciclos da terra

falso cristal do sonho

erro no trabalho do sono.

como e quando acordar

a gárgula?

passaram séculos

no pensamento,

tantos fantasmas

como xenobióticos; e o fígado

extremamente cansado.

à espera do dia translúcido ―

desenho vital de cada

metro cúbico de oxigénio,

contagem de vida.

um grito ― e é em luz

que o estilete diz

alguma coisa de si em

enrodilhada gota

gota prestes a cair

como palavra

gota rendilhada

do tempo

enrolada por convulsão

das ondas na língua.

a viagem faz-se nos

interstícios do som

enquanto corpo.

a viagem é o corpo

que se apresenta,

ingresso real

na conjuntura errante

de múltiplas cavernas;

que falar tem sido

a transformação

de membros em folhas.

o vegetal precipita-se

nas escadarias sombrias

dos bastidores orgânicos.

o vento aguça os cristais

das palavras, o corpo

põe-se em risco

ao imitar situações

de marionetas em sonhos

grosso ovo do eco

no linguajar dos répteis ―

põe-se em risco

continuamente

sim, este corpo

sobejamente diagnosticado

corpo devoluto

na mínima ressonância

da mínima gotícula

de saliva ― última cortina

[breve soluço entre olhares]

desabrocha como rosa

a canção, da boca trémula

ao generoso ouvido

entre os raios de neve solar

líquido amor em néctar

de dádiva toda. vida

vida gritada

vida miudinha quente

doce e leitoso bafejar

raio solar de entrega

harmoniosa luz

que liga a terra crua

a corpos nus

perdidos no compasso

minuto a minuto

apartados da dança

fissura-luz da cicatriz

último pano sem cor

fio a fio um olor na distância

cada um em si e muito só

vê escrita a lua no corpo.

a respiração ―

música de sopros

declive vertiginoso

alimentado pela foz

da poesia.

o eixo da dança

é o eu ferido de beleza

mosaico estonteante

de energia que brinca

no universo

a contraluz ― e um dedo

entra no umbigo

ramificando-se em

órgãos menores

estranhos tremeluzentes

ao lado dos outros.

quantos espelhos dentro?

o que olhar?

o que ver de interno

no interior?

a carne dos espelhos

dúvida em angústia

vitríolo preciso

vitríolo cantante

película a película

na memória

dos sonhos esquecidos

um a um ― enleio

duma voz que perfura

que perdura como coito

a braços com

o texto físico

a fugir da pele,

corte lancinante

de violinos

na presença irresoluta

de espectros sonâmbulos,

corte de entrada contagiando

tremores pulmonares

por oposição

ao real escatológico

da mundanidade.

a comoção no pássaro canoro

de cada endereço

da alma a funcionar como

nave-nuvem do começo

começo-viajante das essências

frases químicas dentro

do corpo ― e tudo o que

se toca e não se entende

tem dentro a sua ilha

entre mares orgânicos

da solidão. sobe o gato preto

até à boca, a fuga musical

como felina necessidade

no balançar do gesto pensado.

é preciso cuidar das

flores do estômago ― relações

de vidro azul à escuta

sujo como os outros

flores negras crescendo

em direcção à boca.

e o gato preto

balança e salta sorrateiro

lê os objectos sem lhes tocar.

de pender cresce o coração

na dúvida dos livros entre pão

e bolor fundente

entre gente

vislumbrada do alçapão.

a língua musculada

do outono

amálgama de casulos

imagem presente dum

corpo luzidio

como rio

ou poema-serpente

que se insinua

que se apresenta

rei dum lugar

por incendiar.

toda a cerveja das areias

ainda por beber ―

tudo passa pela

extrema necessidade

e ínclita desmesura

do mais ínfimo tesão

candura fasciculada

todos os nomes

em cada nome

cada nome o nome

sanguíneo e irrepetível

com raízes de carne textual

nome interpelado nas

núpcias das candeias

[risos e fugas]

na deiscência lunar

da adolescência.

a incerteza dum tu

é a certeza dum eu

afundando-se no

líquido mnésico

da existência

na desmesura universal

da escala a sangue frio.

brincadeira dos nomes

romance, brincadeira

dos corpos a serem

corpo encontrado vazio

se só quando procura

um outro com nome

e nome como fraga

onde ter pé e amar

para melhor compreender

a dádiva da solidão ―

o álcool do amor a correr

desvirtuado, sem vergonha

sobre o sexo suado da noite

abreviatura de silêncio

selado com os lábios

corpos extasiados

confundidos com «o corpo».

a que sabe a boca

de se estar vivo?

encontro adentro

defronte do espelho?

falo em vez de língua

confissão célula a célula

membro a membro

o corpo como voz inteira

de dizer palavras químicas

codificadas em silêncio.

a memória dum eu

reflectida em sombras

decalcadas nos músculos.

a memória pertence

aos ouvidos da terra

moída e incompreendida

ouvidos distantes entre a

confessionalidade da identidade.

e o rosto movediço

confunde paisagens

rostos outros

em erosão

o esqueleto cá fora

pelo leite capcioso

das imagens ― uma mão

em bruma de metal

retorcendo as pregas

ao texto visceral ―

a procura da dança

como lâmina trémula

inquebrável na

insolência atroz do riso

enquanto armação orgânica

do desassossego.

desce pairando a planta do pé

no fio doutra pele,

a água do romance

entumesce fábulas

ridículas criaturas que

cantam e rasgam clássicos

uma miudinha chuva

de saliva cárnea

envergonha uma a uma

as pétalas vermelhas

recolhidas na branquidão

do sono.

os sonhos são como

as cidades do mundo,

impossíveis de habitar

no fundo, subtraída

a ilusão das regras.

um joelho desloca-se

e a pedra em ângulo

acende os órgãos

na tentativa de

auscultação musical

fúria dos padrões pessoais

[fluidos e pensamentos]

fúria líquida que muda

em cor, escala e desenho

o febril mapa-múndi

isto de sentir o corpo

como que agarrado ao mundo

é escrever o corpo no escuro

ou escrever-se enquanto vida

no escuro; escrever-se vivo

na ignorância e aturdimento

no mais fundo da solidão

até que raie uma luz como

corpo inteiro na surdez

da escuridão ― coisa de pedra

no peito, coisa de pedra

no leito perdida a dimensão

das desmedidas regras a lápis

continuamente magoando

o diário das estações

gritos em túneis viscerais

das fases, dos ciclos de vida

de todos os seres multiplicados

num só escrevente corpo

como resenha de cinza.

pouco conta de tanto olhar

uma sombra maior e escura

absorve violentamente

luz ao ecossistema

diminuindo o contraste existencial.

o pomar dos casulos está em risco

assim como em risco se pôs o corpo

em cada golada

de oxigénio ritmo-sísmico.

de visível o incómodo

ninho de rochas podres

a enxofrar os espíritos,

trata-se da correnteza

da têmpora no exercício

de mesclar águas proteicas

que se entrecruzam em

enganos de poesia e

cortesia ― corte incisivo

isso sim, claro gume

depois espelho profundo

fundo lugar

de afogamento interpessoal.

dizer-se osseamente

falar por falanges e dedos

o gaguejar das mãos

depostas na boca

que já se perdeu

boca apagada dum

rosto difuso na esperança

face à decadência

da memória ― há que

apontar halos de verdura

regar as montanhas mágicas

com poemas rasteiros

do sangue

comedidos por ovalidade

do som-sangue transcorrido.

fica o barulho urbano

na ebriez das artérias

a quente na leitura e

na subjugação das cartilagens

na falha do jogo.

manso cérebro

preso no crânio

de subir

armadilhas de bezoar

entoação da digestão

no pensamento

encontro duro no

corredor ósseo

marfim perfumado

pintassilgo na gaiola

[esvoaçar apertado]

encontro duro no

jardim de quartzo

com o bonsai a

subverter seus ramos

contando uma estória

globular ― quem chama

a si a pálida incerteza

do seu sentido?

pode chamar de seu

qualquer átomo gravítico

ao seu redor?

cabe a confessionalidade

da identidade

no trânsito molecular?

viver, uma explosão

chovam humores

chova adrenalina

sobre o negro do texto

que se quer escarlate;

e o sexo reorienta

pautas performativas

dança a soletrar

sensualmente ao ouvido.

desce as escadarias

o corpo animado de luz

[marioneta longínqua]

desce as escadarias

como se num minuto

lesse bibliotecas inteiras

e levasse todos os livros

para a cama

à espera da noite líquida

noite afiada dos espectros

onde alongar a árvore

do álcool puro

fervor inocente manchado

de honestidade térrea

impossível de esconder;

assim ter-se corpo

diante de tudo e para sempre.

porque os livros entram

dentro do corpo

são alimento etéreo do olhar

confundem linhas de vida

cosendo-as, sufragando-as

no corpo ― fermento esbelto

os livros fazem crescer

paisagens com pouca luz.

ler o interior é escrever

dedilhando pontos sofríveis

sensíveis a realidades encenadas

mergulhar por dentro

realçando mantos de carne

entre o mesentério semântico

mantos de carne acesa

intrincados feixes de baixa luz

poesia é ler o interior

usando espelhos subversivos ―

poesia, silêncio tatuado no corpo.

então estar vivo no

aturdimento próprio

do desamparo

é o poema ― movimenta-se

pelo lado pleural

todas as faces vistas e vividas

espelham-se num único rosto;

a máscara intensa de volumes

o poliedro perfumado

com que se joga

a vida, arriscar

o que se metaboliza

a partir de tudo, entrar

no labirinto plantado

por outros todos os dias

aleatoriamente.

o que é conhecer-se? o fumo

de auréola carcomida

do alter ego,

aura inconfessa tossida

na câmara das dúvidas

e do esquecimento. a névoa

metamorfoseada em

sombras debutantes

perfis sucessivos a lápis

de pessoa em pessoa

ensaios pessoa a pessoa

pessoa por pessoa. a máscara

inflamando-se na

adaptação do rosto.

e intransmissível a experiência

de aglutinação transformada

se mais fundo do que visto

e analisado ― aí a luz

continuará a falar

na sua surdina muda

e despida, continuará

por função de permanência

presença por surgimento

concreto e fulminante

dum propósito físico.

na gota de âmbar vê-se

um quarto imitando

um casulo enorme

sua história resumida

em papel e saliva

acende imagens num

reduto musical,

história implícita

por repetição

de civilização em civilização.

o quarto-casulo já corpo

borbota rosas

de boca em boca

por tradição.

impressões de luz

cambiadas freneticamente

pelo pâncreas

combinam anotações cerebrais

com música em lato senso

essência do som-sangue

enquanto identidade.

a invasão do sangue na

violência florida das palavras

permite uma antevisão

da mais nua solidão

a entregar em selos à terra.

de visita em visita

a nomeação de entes-luz

em páginas sobejadas

do cumprimento de ciclos

águas luzentes

da fuga intelectualizada.

mas o corpo não se compadece

com racionalizações;

anjos, arcanjos e outros seres

de luz baixa vêm-lhe animar

conversas químicas interiores

para transcendência lírica

que o apazigue ―

é quando o corpo vive

sem consciência de si

explodindo de vida

em cada célula mínima, o corpo

faz poemas em gomos

bebe em luz e poesia

cada vinheta do dia

ou noite, bebe incenso

de névoa ou bruma

conecta-se ao micélio semântico

das árvores nocturnas

memoriza paradeiros

de pássaros afrodisíacos.

raro e transparente

é este o corpo

frágil e complacente

à procura do raio-mãe da luz

que aprende

a cada fracção de tempo

a desaprender

por fruição exponencial,

este corpo transumando

o micélio semântico

amando e desamando

cada relação dentro de si.

lençol branco

fino arabesco escarlate

sangue e pétalas vermelhas

a música das esferas

traz vivo

[entre fissuras]

o corpo

luz tonal ―