ars

[E A M edições, 2014]






CHAVE



«como chegar pelo sangue à pétala de sal?»


estranho enredo de asas e de vento

comichosamente no pescoço


uma folhagem ardente

de dedos, uma

voragem inquieta sem perceber

o girar pesado da bengala manejada pelo velho

sentado na sua solidão


a mudez e o deserto tipologia de lâminas

de linfas, as

tintas vulcânicas do rugir visceral

fata morgana para um naipe de fotografias

com a feminilidade da areia


neste continente esgrimindo um lado de sangue

longe do sal, que

em pétala o sopro condensa


[flutuante texto colado aos lábios]


«como extrair pela pele o sal da pétala?»




© Jorge Molder






MEIA HORA À ESPERA COM JORGE MOLDER



é da grafite no canto, de violentamente

raspar de profundis

uma linhagem parece normal

as impressões digitais gastam-se no trabalho

por um conjunto de coisas contaminadas

que se entrelaçam na alteridade


ou um vínculo com a luz no rasgo

sublinhada impaciência esfíngica : desfocar

a palma ao papel na palma da mão

transversal neste mundo tenso e omisso


[caixa negra ≠ jaula ocre ≠ máscara mortuária]


entre o escuro-de-cama e o mito do espelho

uma hesitação limpa da vontade

colarinho submerso de encontro à psicanálise

para veludo dum gato-pantera suspenso

na água da mão fotografada


e o hiato de tesoura ambígua desagrega a nuca

por onde entra o sabotador que procurará

o “pairar da toalha” na câmara escura






CRASTO



[estrada de maçã, crepúsculo de laranja]


a leitura enjeitada entre lágrimas de resina

vibráteis na luz coalhada peregrinamente

tal olhar ardente nutrido de fruta e solitude


[orto do esposo]


no monte sentado rente ao plátano respirante

tenho por esquecido um umbigo de pedra


«tudo é de todos»






O ATELIER DE VICTOR WILLING



descobriu que o seu atelier era lá fora e

pôs-se logo a encenar interstícios celulares

pelo posicionamento estratégico de

despojos vivos, calibrando-lhes temperaturas

impregnando-os de suor

e cheiros-de-estar


«pelo ínfimo o íntimo meu» de facto,

pela célula tudo é mais claro e imediato


lembrou-se de construir um postal tridimensional

com sons armadilhados, um

atelier-tela com uma constelação de silêncios

cúmplices do êxtase


cuidadosamente transportou

paisagens geométricas da sua geografia biográfica

árvores gordas de oxigénio e água

a sacola, a cadeira-miradouro


[sentou-se]


«o meu trabalho

é isto, um

lugar» depois partiu






GLOBO


«Principiáveis o ciclo do vai e vem

contínuos entre a casa e a floresta»


Maria Gabriela Llansol


pelo que dão a revelar, o truque

consistirá em habitar “interiores”


arvoredo esfolado na fábula contada num

outono muito frio, o

piano uivante e bastante tristes as cegonhas


nas mãos a tábua dos nós a ler

pressentindo-se uma reinação alquímica

onde convivas picotados pela cinza regozijam-se

numa ceia de alfabetos contrafeitos


alguém diz e esbraceja um telhado

de ouvir-se faz sua casa

querendo que outros a vejam, a leiam

façam outras casas


porém todos esbracejam apenas

explica a “fome” e os

istmos na humanidade inconclusa


são gélidos e cadavéricos os dedos que tocam

a sonata, última noite do globo






RETRATO SEGUNDO LUCIAN FREUD



o mármore cárneo crescente febres de

proteína branca e amarela

à mercê de músculos tectónicos






A MESA MAIS PEQUENA DO CAFÉ MÜLLER



um rectângulo de madeira intenso

dissolve-se no ácido da oralidade, porque

ver arcos-de-violência é outra coisa

uma meia sombra, assim às cadeiras a

tremura devolvida de pernas e braços

em trovão-de-esforço na dança


atenta, no jardim de caules magoados e fixando

às cegas a lente pela sufocação dos ruídos na

raiz comum dos maxilares, pina bausch desconstrói

elipticamente essa linguagem

desfragmentando-lhe a violência sonora em busca

do não-diálogo, crua essência do mundo






CHÃO-DANÇANTE



aprendi com as formigas

o chão-dançante

do pão e da arte

© Herdeiros de Marguerite Duras






M. D. E A ARTE DA CONFISSÃO



as urtigas do sexo tomai-as

e não apenas o venéreo culto da delambida

câmara lenta que exorciza imundícies à retórica


saberão a rio dos meus quinze anos e meio

que desaguou no ofício pelo qual

consubstancio rupturas

outrora papel químico do prazer

agora compleição física da memória


uma possível barragem

[forçada teia de fotografias]

tendo o álcool como linfa do tédio


humidamente lenhificados nas páginas

cheiros, olhares, esboços carnais

intumescidos de adrenalina

escritos pela pele e pelo perigo

que a verdade das palavras pouco me interessa






ROCHA-TIMBRE



terra em alimento o silêncio

entre mim com os

reflexos do vagão falcifoliado

uma brasa lábil rente à boca

fechada. vil a ideia da

comunhão de amarguras

como pão ávido silente

às frases, ampola miserável

dos arrastados no entanto

há a rocha-timbre

[aglomerado fílmico precioso]

a atravessar os veios áqueos






FONTELO



[entrada] depois meio passo

minuto de antevisão

¿estarei a pisar uns olhos à floresta?


força da resina no coração. que:


não vim pelo bafo incendiário dos insectos

nem por esgares de pavões que ludibriam crianças


eu, e usando a eu-pele e não um tu residual

casca do meio no caminho, parece dito

vim ler com os pés metades da pauta

possíveis preâmbulos fora-do-trilho

como quem ausculta relógios às raízes para

explicação de vacuidades do carbono nos troncos


¿a escrita túrgida dos gatafunhos vegetais?


aquele quê d’humano treme-me como astral

quando o braço nu ensina ao braço vestido


«vou contar-te uma rocha», aragem sem frase


um microclima de sílaba órfã dado à criança

que sorri feliz de ser enganada por um pavão






TESTAMENTO DE ANA MENDIETA



de cair digo

nua, o

tronco é-me queimado

adentro


por exterior

estática silhueta olhando o brilhante formigueiro

da cal escurecida

cuspida à pressa nas discussões, quente


[uma vida contada entre as ervas e o espelho]


debaixo da mesa deixo um eu com

múltiplos epitáfios de pólvora, mulher evoluída

em pássaro [o sal, as penas] no friso da testa

simulando estados de água gelada e cingida

por uma arte do sangue, contra o

vidro escutando


fosse minimalista a verdadeira sinceridade

sem a verborreia da confissão

ou antes corda de

líquidos vazando algo corajoso para o incêndio

dos ossos






ENCONTRO DE FIAMA COM WITTGENSTEIN


«Canto o coral do a, o som ritual.»


Fiama Hasse Pais Brandão


a voz é o expoente, gomo

de opinião que enverdece todas as manhãs

de sentar-se na laje fria numa zanga com o sol

as vozes o pano de pássaro calado

à linha das fúcsias; porque elas falam e

também a cor é um conceito numérico

bradante por enquanto as proposições da lógica

são murchas como as folhas de outono

[os nossos mortos, estrume preocupante]

que o enigma existe, só não se dá a conhecer

com maquilhagem lógico-filosófica

não suspira por dedução, antes respira por

devoção oculta no esquecimento limpo

da natureza. bem, isto é ser-se místico no

interior das palavras, sendo às vezes possível

pressentir a nascente do eco; o coral esmaece

com sorrisos de ocasião, revigora-se pelo

inexprimível revelado : o silêncio, som ritual






AGULHA



raramente a flecha mineral dum estímulo

viaja no poro sem aleijá-lo há um branco vazio

inerte na escolha do icebergue quase invisível

mas que pesa inelutavelmente sobre os ombros

quando se hipoteca a força memorial das imagens


qualquer tentativa de reconhecimento é perigosa

pelo emaranhamento de nervuras que encalacra o

bolbo raquidiano, qualquer devaneio libertino

por cansaço jogado às grades vítreas poderá fundir

o poro, isto é, inutilizá-lo irremediavelmente


a flecha mineral é uma agulha sintonizadora

abrindo expressão a mucosas e órgãos, o visco

de notícia estrangeira no colchão da identidade

as feridas e o paradoxo, fricção ousada no poro






TRÊS RECADOS PARA VIRGINIA WOOLF



vestiste papel com

dor escrevente, és

o caroço no texto


|


o enredo e a temperatura : das fibras

entrelaçadas no engano, estiradas na

nau. periferia inversa ao afogamento


|


não faz mal afinal

para quem ser mãe

do lótus cerebral?

© Herdeiros de Francesca Woodman






FRANCESCA



o que dizes? fixo, o

transparente rasgo-ventre

de que reabrem voz por dentro


a consciência suja a nudez

o húmus canta na planta


a luz tem-te magoado?


é um pudor atento à mão que treme

ao texto por fora

ou sombra nominal

: o lenço, o prato, a cadeira


[algo mais reescreve a alma sentada]


e o duende aleija-se, nudez empolgante

de espalhar o rosto pela parede

de ver a morte crucificada na ombreira






ENSAIO OU O BLUFF DE PAULA REGO



porque o sótão, essa barriga

d’arte adiada, guarda

segredos engelhados que

escorregam na pupila vigilante

de quem assina à margem


nele o armário, a barca dos deslocados

bonecos sexuados de categorias diversas

uns empoleirados, outros

rastejantes a mulher das

faces escavadas pela insónia e pelo papão

agrupou-os por aspecto e

afinidade temporal, por famílias


o que calado dito seja

entre barulhos de chave na fechadura

uma vez mais resiliência do pano contra

a paralisia macambúzia

nessa barriga redonda que é

o sótão, cebola velha das estórias

de intrepidez nocturna






O QUARTO DE LOUISE BOURGEOIS



este é o álbum dos líquidos

prova de sanidade brotada da qualidade

do silêncio : positivar a agressividade na arte

denunciar amontoamentos de almofadas

torcer e distorcer o corpo da obra no corpo que

a faz e envelhece, discurso

torcendo os líquidos

enrodilhados na água de lavagem, pressentíveis

em roupas seguradas por ossos


[inversões de tangerina sob a abóboda aracnídea]


rir com e não rir de, episódio de infância a vingar

la mesure du temps

estranhar ruas do corpo, pobres enxertos

le temps des blessés

vermelho-sangue-dor como centopeia-nostálgica

l’itinéraire unique

destruir o pai, uma manhã diferente


[mãos-em-rede para um arco de histeria]


a noite sombras na parede o medo do caos, de

ferir as pessoas [passagem perigosa] de

humanizar a amputação






PASTICHE



real, com a

hibridez dos palanques mais impróprios à

língua interior, a narrativa entrega-se

como alimento côncavo e convexo

solevando-se depois numa opacidade promíscua

com mãos lavadas e falsos sobrolhos

franzidos único erro, talvez, será

não valorizar tal falsidade pelo acúmulo

de cirúrgicos lapsos e

mutações-de-luz no texto já bravio

enxerto desconcertante ao

leitor latente, irreal






UMA VELA NA ÁGUA PARA TARKOVSKI


«Lê sem livro. Lê e esquece.»

Álvaro Lapa


ressoa a chuva

[música dura e flores velhas]

porque o sono é feito de incêndios, livros

com águas que emprenham o vidro

de lavarem erradamente

o reflexo : substância inominável

do lar resvalado


à terceira tentativa chegará

cumpridora a chama, com tremura dada

a santa catarina a zona muda

de manto e figura, marca a testa pensante

numa peregrinação de fazer

sangrar o nariz e

tresler biografias a uma carta antiga


pelo nojo o verme venenoso desce

do sono através do sonho

e abandonando de vez os cabelos sob a

ruminante insistência da chuva

o clarão da gasolina nas estátuas

transparece uma patética frigidez

nos manuais de história






PÊNDULO



sob o peso

do que a palavra faz ao corpo

balanço num angulómetro enferrujado


[injúrias de saliva mole e mortal]


desço balançando não sei onde

terei de, entre os

martelos vertebrais, destruir

o relógio