Rua dos Sonâmbulos

[E A M edições, 2015]






falaram-me de uma rua para sonâmbulos


e começa a folha branca de sol


, como se lembrasse a repetição e o consumismo

tempo apenas de arrumar a bola de cristal,

sofisticada caverna de literatura; o de sempre é

registo, algo doméstico como um cão


. a rua é um esqueleto limpo


quem anda passeia e vê

(relembra e foge) o futuro estranhando

quem-habitante do nunca







, uma calma de entrever diferenças no suar e soar

o som do líquido-corpo de entrever uma

reflexão da miséria, mas miséria imaterial

e não outra


os sonâmbulos alegres esquecem-se de comer

(isso aparentemente visto

a partir da nave provisória do espelho)

mas comem, comem com avidez amnésica

não sabem é bem o quê


: erram na rua desenhando pão, escrevem

ininterruptamente no diário [folha branca de sol]


a manhã é dum sorriso devorador

[estrela falsa]

rumo ao casulo espreitando a meteorologia

essa circunstância cartomante


manoel descobriu a comodidade no lixo

e desde então mora na inutilidade das coisas

como pão-não para a boca; também assim

bartleby







os sonâmbulos descobrem

e as descobertas passam pelos hiatos

massagem do ar, vida como luz instintiva


. um sistema de moscas abertas


a caneta falha por vezes a esfinge desloca-se

confunde o tempo dos transeuntes

e conversa com os visitantes da livraria


ocupação, o paradoxo a assombrar clientes

que fazem pé-coxinho com acordo ortográfico

«ideia escusada d’ervas literárias» pensou a esfinge







entra na livraria um espantalho d’almas morno

cordial (boca que lê) inspecciona

no aperto de mão o tendão da escrita

tremura nua da noite anterior ou réplica sísmica

de papel : o mercantilismo simpático


[encenação urticante]


vive-se a rua mesmo em casa, na terra

dos comos (colmo bruto do fazer) vejamos, um

recipiente de plástico num alpinismo gravítico

de pensar à volta dos talheres


. a casa é o ovo


outra cor e sem a casca pois

clarice trabalhou-lhe o foco subtraindo toda a luz

num raiar de distâncias

cansou a palavra e os olhos até o ovo

aumentar a mesa


«o ovo é a chave sem pressupor uma porta»

diz clarice tentando não o ver

por um desaparecimento tornado parto

saco vitelino do achar-perdendo


, um subtexto da língua a gerar

plaquetas de leitura







o jovem sonâmbulo amealha na camisa

choros de fruta, último dos quais

o da intrépida maçã


visita um eremitério pousado na languidez

procura discernir véus num céu decalcado

[arvoredo a refluir o azul movente] sob o riso

de aves velhas que escondem a hipotenusa


o jovem sonâmbulo ainda não compreende

mecanismos que envolvam cofres de pólen

embora os tenha debaixo da pele por todo o corpo


, esforça-se por decifrar a linha ziguezagueante

da fractura, o que nos olhos magoa a pedra

obrigada a convenções de cariz documental

: gelatinosamente entra inteiro (com as sombras)


na rua os trompetes recuperam o fôlego a passo

esvaziando saliva aos humanos; luiza diz que

pingam infelicidade quotidiana

(utiliza portanto a nave provisória do espelho)

bonito de se ver na tarde quente quando ritmado

uma feira encenada de vaidades







quando a fábula se exalta

a torre caminha o passarão assiste aos

avanços da complexa máscara

do medo, ao

enredo de sangues ecoados

na aorta


[um dragão e texto]


ilha que é sapato fora do tapete

e ao lado da cama, impossibilidade

de espelho a fábula é um ouriço

bicudo por dentro


[fórmula do pensar]


desfeita a torre o passarão vive

uma ideia de terra, impressões

de madrepérola







o assobiador de ruínas afasta os lémures


atrás do mundo, na ânsia devastadora da noite

tropeça nos pares de sapatos instalados no bosque

dispostos segundo a reologia dos arbustos


apesar de tudo é ele o guardador de fantasmas

um nome enganado com uma missão


e sopra a antífona do sono nas cidades

influenciado pelo ponteiro de sólido ardil


[bússola errante a perder dias]


de animal o feio no museu que a mão surpreende

colocada no ventre oblíquo para o dia-futuro







assim que o umbigo inflama

e os pés tomam posse da alergia ao mundo

há um querer correr

transviado nas artérias da cidade-abóbada

por cima da rua, ainda


ao correr o sonâmbulo incorre num

exercício de desmaterializar margens

(maria gabriela acalenta-o, algo que

o seu útero de papel pode fazer)

(in)raciocina no esforço

tão longe de compreender

miríades de junções textuais e celulares


porque julga apagar o rasto aos dias

o sonâmbulo enfrenta desmemoriado o

fundo do copo; aprenderá no casulo

a tábua de monólogos do vento


¿dissolução do tempo ou miragem do icebergue?


. mas as noites engrossam







a mãe enevoada corta

o riso-mármore


[retrato a sépia]


o rio vê

o lago sufoca


[dança oculta]


junto ao branco cego da estátua


atilada a mãe de bruços tenta

ver a falha, a meada no toque


[memória em cartas]


: madeira-perfume, sangue

a ir-se embora no texto







ontem lesionei-me a ouvir mahler

(lado esquerdo) junção de trevo musical

pouco adágio e um beijo na tesoura lenta

dos violinos feliz cesura íntima

de cama e coração


, isto para sujar o fígado no minuto seguinte

na estrada misógina do giz branco


«a poeira não é nevoeiro» apetece-me dizer

ao presumível semeador de florestas

semeador de balcão, de alvenaria atrapalhada


: concordo que a cidade começa no esgoto

ainda algo inorgânico [o estrume em alicerces]

mas os livros não pegam na água

nem seguram betão aos edifícios


a dádiva é a dúvida e não a dívida entre

pombos e gaivotas, parasitas da comiseração


. porque a frugalidade encenada não é frugal


a que propósito estilhaçar vidro, pisá-lo e varrê-lo

para a mesoderme da alma?


antes a microfilia do caos







anfiteatro nicho e paradigma


, a dança antes da dança

regada a cabeça que

por luz domando o negro vidrado de

covas e triângulos

não desce ao escrutínio outro do descanso


cabeça [cogumelo movente]

problema dançante no meio da peça onde

a falsa caveira toca envenenada o falso nenúfar

noites brancas, lady macbeth aos berros

sombras-sobras de esculpir o remorso


hamlet hamleteia febrilmente a solidão


«não encontro na boca a minha língua

tenho para te dizer um peixe vermelho»







roda aros | nervos olho

um fio condutor liga o ver

de povoar sombras à imagem


órbita de parque a bicicleta explica-a

subtraindo à memória o banco de jardim


alguém agradece ao vento e senta-se


, o que da forma se sabe

(ar livre ou matéria negra)

não vinga línguas na teia de morfemas


o sideral olho observa observadores

antes inconsciência [labareda funérea]

ilusão miscigenada de átomos e pulmões no

grande fole universal


sim sagan, desde o azul (pálido ponto) que agonia


subtil e aparentemente parada a imagem

porque se povoa o silêncio com signos

alienígenas, artefactos da doença







quando o candeeiro público bifurca

quer dizer duas coisas

reabrindo discussão a quatro ou cinco assuntos

e o que realmente fica por dizer sobre os dois

objectos falantes em botão

é uma imagem o gigante mudo e anti-social

encripta no seu retiro a solidão

único detentor do dicionário dos peixes

único morador da porta número três


os sonâmbulos, nómadas internos de qualquer

texto ou suposto discurso, calculam haver

viagem por fazer; provavelmente ao oriente


. o olfacto aguça o cérebro


de milhas e de sonhos

a substância alquímica assemelha-se à

cera dos ouvidos o gigante dorme







nadir bruxuleia cores à cidade

com um compasso riscador dentro da retina

e findo o corpo no organismo sem fundo

(mais espacejado enquanto ensaio)

ele crê desenhada em elipses a sua autobiografia


«bacon beijou acidamente a fisionomia

do trabalho, enquanto eu dormia

como desculpa da velhice chamei-lhe casal

ao que tinha, pouco feliz»


[migração do calor]


aves exiladas no ouro vermelho exasperante

zaratustra esquecido


«nunca viste o mar no avesso do corpo?»


que o esqueleto queixa-se da sua não-condição

e também o diabo tem tentações

amantes no real e irreal

sombras na terra, óculos no inferno


: o bordel queima amarelo «as valquírias, onde estão?

como haver água neste lugar?

quero valquírias limpas, um azul escuro de estar»


, e nadir adormece na juventude da interrogação







so long as I get somewhere

down, down, down

I know something interesting is sure to happen


quartos escuros, portas fechadas

nenhum corredor o que é?


[curiouser and curiouser]


. frase-febre


, chaves desaparecidas

uma maçaneta distante à família


I can’t explain myself, I’m afraid

it was much pleasanter at home

and what is the use of a book?


eu-onde defronte tu-quando

a brincar aos abismos


shall I never get any older that I am know?







a minha mão no ombro-árvore avô


tenho um corvo a voar dentro do corpo

sem peso sem cor sem nome

da pele longínquo grasna


ando a ver se engano o ecossistema

de rasgar trilhos vejo pedras, folhas, perdas

que os galhos tramam-me altura

a ponto de chorar


tudo, tudo tudo vivo mas morrente, tudo


quem tem um ombro-árvore

não precisa de fazer atenção ao caminho

e pode cumprimentar os pequenos seres

não é avô? e agora,


quem alimentará à noite o penedo fundido?







penso (tu e o inverno) algumas cartas

dão chuva, o trevo na espiral

com a insistência meteórica da linha errática


[telemóvel no coldre]


trincheira íntima ou

um quê de forma crescente por joelhos maduros

ou folhas de sol várias, vidas com

chuva no fim


os olhos guardados num pião

(subtil coração) tanta tinta seca

risos linha verbal abaixo e

amor baixinho num hospital


cada carta traz mais alto sentidos

apagados na escrita







e quem-habitante cose o som à miragem urbana

adivinha no nunca atrocidades, linha torta do edifício

falado entre pares (irmanados desiguais)

porque nada de humano o liga ao contrato que

de humano nada há se não a ideia animalidade

descontrolada e desdita, selvagem e sonâmbula

[antes dogma, antes pedra angular] só e a errar







«se por uma vez me visses como sou»


ainda jovem o sonâmbulo rodopia no carrossel

de verniz e açúcares

nu denuncia podridão a sangues de família

[ringue e pocilga]

irá morrer limpo, outro

pensa


o banquete, ou memória dele a bater

num sangue poluído

quadro expressionista colossalmente dentro

minutos em gesso e tinta que de tão vibráteis enxovalham

o cérebro


[revólver emergente]


dor moderna sozinho, a sociedade não cabe

a lama mais saudável que o creme dos bolos


spinoza ilumina o matadouro, afinal uma igreja

para o outramento asseado na imundície

corpos exteriores à alma

com outros de almas outras magoantes de mantos

da coisa pensante, mas deus muito distante







luz azul de umbigo à terra, noite-abóbada


ouvintes e teclas alternam

que ver é ouvir a escrita do som

raspar tactos à imagem


a assembleia um

pulmão atento ao esteio lucifónico


porque instrumentista fecha os olhos


o engano afunda de abismo o real

os dedos cingem de lama a música que a pele beija


som-de-fúria por véu onde borboletas se ionizam

tão pouco o láudano para as sombras no claustro







sonâmbulo há que inverter a cabeça

pintar feridas de terra na pele


, coisas de céu escuro e medo líquido

angústias de tinta no café


uma fome de ler no linho estragado

dias a milho e aveia


cabeça, fonte de tremura [raiz perversa]

que é carne mastigada e a vida ruim







idoso e sem barco o marinheiro procura o cão

(paisagem-desenho por lobo onde ancorar)

que lhe traga sorte e vinque vértices familiares


sabe de cães porque plantou fábulas no mar

a linhagem perdida no jogo das ausências

como meia metade funda envolta de lodo


o marinheiro traz um búzio de conversas

falaram-lhe sobre a distância e o suor

sobre a faca-mineral e a sílaba de sal


; o que se perde de mar entre o lobo e o barco?

o ar, a água, o som? um espectro da verdade?


[a solidão, o tempo, as vozes, a solidão]


que a estrada dá-lhe a berma e o sonho

conquanto a verdade consome e mata