Rua dos Sonâmbulos
[E A M edições, 2015]
falaram-me de uma rua para sonâmbulos ―
e começa a folha branca de sol
, como se lembrasse a repetição e o consumismo
tempo apenas de arrumar a bola de cristal,
sofisticada caverna de literatura; o de sempre é
registo, algo doméstico como um cão
. a rua é um esqueleto limpo
quem anda passeia e vê
(relembra e foge) o futuro estranhando
― quem-habitante do nunca
✫
, uma calma de entrever diferenças no suar e soar
― o som do líquido-corpo ― de entrever uma
reflexão da miséria, mas miséria imaterial
e não outra
os sonâmbulos alegres esquecem-se de comer
(isso aparentemente visto
a partir da nave provisória do espelho)
mas comem, comem com avidez amnésica
não sabem é bem o quê
: erram na rua desenhando pão, escrevem
ininterruptamente no diário [folha branca de sol]
a manhã é dum sorriso devorador
[estrela falsa]
rumo ao casulo espreitando a meteorologia
essa circunstância cartomante
manoel descobriu a comodidade no lixo
e desde então mora na inutilidade das coisas
como pão-não para a boca; também assim
bartleby
✫
os sonâmbulos descobrem
e as descobertas passam pelos hiatos
massagem do ar, vida como luz instintiva
. um sistema de moscas abertas
a caneta falha ― por vezes a esfinge desloca-se
confunde o tempo dos transeuntes
e conversa com os visitantes da livraria
ocupação, o paradoxo a assombrar clientes
que fazem pé-coxinho com acordo ortográfico
«ideia escusada d’ervas literárias» pensou a esfinge
✫
entra na livraria um espantalho d’almas morno
cordial (boca que lê) inspecciona
no aperto de mão o tendão da escrita
tremura nua da noite anterior ou réplica sísmica
de papel : o mercantilismo simpático
[encenação urticante]
vive-se a rua mesmo em casa, na terra
dos comos (colmo bruto do fazer) vejamos, um
recipiente de plástico num alpinismo gravítico
de pensar à volta dos talheres
. a casa é o ovo ―
outra cor e sem a casca pois
clarice trabalhou-lhe o foco subtraindo toda a luz
num raiar de distâncias
cansou a palavra e os olhos até o ovo
aumentar a mesa
«o ovo é a chave sem pressupor uma porta»
diz clarice tentando não o ver
por um desaparecimento tornado parto
saco vitelino do achar-perdendo
, um subtexto da língua a gerar
plaquetas de leitura
✫
o jovem sonâmbulo amealha na camisa
choros de fruta, último dos quais
o da intrépida maçã ―
visita um eremitério pousado na languidez
procura discernir véus num céu decalcado
[arvoredo a refluir o azul movente] sob o riso
de aves velhas que escondem a hipotenusa
o jovem sonâmbulo ainda não compreende
mecanismos que envolvam cofres de pólen
embora os tenha debaixo da pele por todo o corpo
, esforça-se por decifrar a linha ziguezagueante
da fractura, o que nos olhos magoa a pedra
obrigada a convenções de cariz documental
: gelatinosamente entra inteiro (com as sombras)
na rua os trompetes recuperam o fôlego a passo
esvaziando saliva aos humanos; luiza diz que
pingam infelicidade quotidiana
(utiliza portanto a nave provisória do espelho)
bonito de se ver na tarde quente quando ritmado
― uma feira encenada de vaidades
quando a fábula se exalta
a torre caminha ― o passarão assiste aos
avanços da complexa máscara
do medo, ao
enredo de sangues ecoados
na aorta
[um dragão e texto]
ilha que é sapato fora do tapete
e ao lado da cama, impossibilidade
de espelho ― a fábula é um ouriço
bicudo por dentro
[fórmula do pensar]
desfeita a torre o passarão vive
uma ideia de terra, impressões
de madrepérola
✫
o assobiador de ruínas afasta os lémures ―
atrás do mundo, na ânsia devastadora da noite
tropeça nos pares de sapatos instalados no bosque
dispostos segundo a reologia dos arbustos
apesar de tudo é ele o guardador de fantasmas
um nome enganado com uma missão
e sopra a antífona do sono nas cidades
influenciado pelo ponteiro de sólido ardil
[bússola errante a perder dias]
de animal o feio no museu que a mão surpreende
colocada no ventre oblíquo para o dia-futuro
✫
assim que o umbigo inflama
e os pés tomam posse da alergia ao mundo
há um querer correr
transviado nas artérias da cidade-abóbada
por cima da rua, ainda ―
ao correr o sonâmbulo incorre num
exercício de desmaterializar margens
(maria gabriela acalenta-o, algo que
o seu útero de papel pode fazer)
(in)raciocina no esforço
tão longe de compreender
miríades de junções textuais e celulares
porque julga apagar o rasto aos dias
o sonâmbulo enfrenta desmemoriado o
fundo do copo; aprenderá no casulo
a tábua de monólogos do vento
¿dissolução do tempo ou miragem do icebergue?
. mas as noites engrossam ―
✫
a mãe enevoada corta
o riso-mármore
[retrato a sépia]
o rio vê
o lago sufoca
[dança oculta]
junto ao branco cego da estátua ―
atilada a mãe de bruços tenta
ver a falha, a meada no toque
[memória em cartas]
: madeira-perfume, sangue
a ir-se embora no texto
✫
ontem lesionei-me a ouvir mahler
(lado esquerdo) junção de trevo musical
pouco adágio e um beijo na tesoura lenta
dos violinos ― feliz cesura íntima
de cama e coração
, isto para sujar o fígado no minuto seguinte
na estrada misógina do giz branco
«a poeira não é nevoeiro» apetece-me dizer
ao presumível semeador de florestas
semeador de balcão, de alvenaria atrapalhada
: concordo que a cidade começa no esgoto
ainda algo inorgânico [o estrume em alicerces]
mas os livros não pegam na água
nem seguram betão aos edifícios
― a dádiva é a dúvida e não a dívida entre
pombos e gaivotas, parasitas da comiseração
. porque a frugalidade encenada não é frugal
a que propósito estilhaçar vidro, pisá-lo e varrê-lo
para a mesoderme da alma?
antes a microfilia do caos ―
✫
anfiteatro ― nicho e paradigma
, a dança antes da dança
regada a cabeça que
por luz domando o negro vidrado de
covas e triângulos
não desce ao escrutínio outro do descanso
cabeça [cogumelo movente]
problema dançante no meio da peça onde
a falsa caveira toca envenenada o falso nenúfar
noites brancas, lady macbeth aos berros
sombras-sobras de esculpir o remorso
hamlet hamleteia febrilmente a solidão ―
«não encontro na boca a minha língua
tenho para te dizer um peixe vermelho»
✫
roda aros | nervos olho
um fio condutor liga o ver
de povoar sombras à imagem
órbita de parque ― a bicicleta explica-a
subtraindo à memória o banco de jardim
alguém agradece ao vento e senta-se
, o que da forma se sabe
(ar livre ou matéria negra)
não vinga línguas na teia de morfemas
o sideral olho observa observadores
antes inconsciência [labareda funérea]
ilusão miscigenada de átomos e pulmões no
grande fole universal
sim sagan, desde o azul (pálido ponto) que agonia
subtil e aparentemente parada a imagem
porque se povoa o silêncio com signos
alienígenas, artefactos da doença
✫
quando o candeeiro público bifurca
quer dizer duas coisas
reabrindo discussão a quatro ou cinco assuntos
e o que realmente fica por dizer sobre os dois
objectos falantes em botão
é uma imagem ― o gigante mudo e anti-social
encripta no seu retiro a solidão
único detentor do dicionário dos peixes
único morador da porta número três
os sonâmbulos, nómadas internos de qualquer
texto ou suposto discurso, calculam haver
viagem por fazer; provavelmente ao oriente
. o olfacto aguça o cérebro
de milhas e de sonhos
a substância alquímica assemelha-se à
cera dos ouvidos ― o gigante dorme
✫
nadir bruxuleia cores à cidade
com um compasso riscador dentro da retina
e findo o corpo no organismo sem fundo
(mais espacejado enquanto ensaio)
ele crê desenhada em elipses a sua autobiografia
«bacon beijou acidamente a fisionomia
do trabalho, enquanto eu dormia
como desculpa da velhice ― chamei-lhe casal
ao que tinha, pouco feliz»
[migração do calor]
aves exiladas no ouro vermelho exasperante
zaratustra esquecido
«nunca viste o mar no avesso do corpo?»
que o esqueleto queixa-se da sua não-condição
e também o diabo tem tentações
amantes no real e irreal
sombras na terra, óculos no inferno
: o bordel queima amarelo ― «as valquírias, onde estão?
como haver água neste lugar?
quero valquírias limpas, um azul escuro de estar»
, e nadir adormece na juventude da interrogação
✫
so long as I get somewhere
down, down, down
I know something interesting is sure to happen
quartos escuros, portas fechadas
nenhum corredor ― o que é?
[curiouser and curiouser]
. frase-febre
, chaves desaparecidas
uma maçaneta distante à família
I can’t explain myself, I’m afraid
it was much pleasanter at home
and what is the use of a book?
eu-onde defronte tu-quando
a brincar aos abismos
shall I never get any older that I am know?
✫
a minha mão no ombro-árvore avô ―
tenho um corvo a voar dentro do corpo
sem peso sem cor sem nome
da pele longínquo grasna
ando a ver se engano o ecossistema
de rasgar trilhos vejo pedras, folhas, perdas
que os galhos tramam-me altura
a ponto de chorar
tudo, tudo ― tudo vivo mas morrente, tudo
quem tem um ombro-árvore
não precisa de fazer atenção ao caminho
e pode cumprimentar os pequenos seres
não é avô? e agora,
quem alimentará à noite o penedo fundido?
penso (tu e o inverno) ― algumas cartas
dão chuva, o trevo na espiral
com a insistência meteórica da linha errática
[telemóvel no coldre]
trincheira íntima ou
um quê de forma crescente por joelhos maduros
ou folhas de sol várias, vidas com
chuva no fim
os olhos guardados num pião
(subtil coração) tanta tinta seca
risos linha verbal abaixo e
amor baixinho num hospital
cada carta traz mais alto sentidos
apagados na escrita
✫
e quem-habitante cose o som à miragem urbana
adivinha no nunca atrocidades, linha torta do edifício
falado entre pares (irmanados desiguais)
porque nada de humano o liga ao contrato que
de humano nada há se não a ideia ― animalidade
descontrolada e desdita, selvagem e sonâmbula
[antes dogma, antes pedra angular] só e a errar
✫
«se por uma vez me visses como sou»
ainda jovem o sonâmbulo rodopia no carrossel
de verniz e açúcares
nu denuncia podridão a sangues de família
[ringue e pocilga]
irá morrer limpo, outro
pensa ―
o banquete, ou memória dele a bater
num sangue poluído
quadro expressionista colossalmente dentro
minutos em gesso e tinta que de tão vibráteis enxovalham
o cérebro
[revólver emergente]
dor moderna sozinho, a sociedade não cabe
a lama mais saudável que o creme dos bolos
spinoza ilumina o matadouro, afinal uma igreja
para o outramento asseado na imundície
― corpos exteriores à alma
com outros de almas outras magoantes de mantos
da coisa pensante, mas deus muito distante
✫
luz azul de umbigo à terra, noite-abóbada
ouvintes e teclas alternam ―
que ver é ouvir a escrita do som
raspar tactos à imagem
a assembleia um
pulmão atento ao esteio lucifónico
porque instrumentista ― fecha os olhos
o engano afunda de abismo o real
os dedos cingem de lama a música que a pele beija
som-de-fúria por véu onde borboletas se ionizam
tão pouco o láudano para as sombras no claustro
✫
sonâmbulo ― há que inverter a cabeça
pintar feridas de terra na pele
, coisas de céu escuro e medo líquido
angústias de tinta no café
uma fome de ler no linho estragado
dias a milho e aveia
cabeça, fonte de tremura [raiz perversa]
que é carne mastigada ― e a vida ruim
✫
idoso e sem barco o marinheiro procura o cão
(paisagem-desenho por lobo onde ancorar)
que lhe traga sorte e vinque vértices familiares
sabe de cães porque plantou fábulas no mar
a linhagem perdida no jogo das ausências
como meia metade funda envolta de lodo
o marinheiro traz um búzio de conversas
― falaram-lhe sobre a distância e o suor
sobre a faca-mineral e a sílaba de sal
; o que se perde de mar entre o lobo e o barco?
o ar, a água, o som? um espectro da verdade?
[a solidão, o tempo, as vozes, a solidão]
que a estrada dá-lhe a berma e o sonho
conquanto a verdade consome e mata