Bago
[Edição de Autor, 2021]
I
os dedos tocam de sangue o caderno
abrem-no
e pegam no estilete
que animado de luz arterial e pensamento
vai escrevendo
um corpo dentro do corpo
longe dos dedos
o feixe irregular toca de energia o coração
há um magma movendo-se dentro dele
um rio vivo como pórtico de uma aldeia
[os rostos acesos]
― o que está escrito?
nada está escrito, o caderno vazio
mas na planície da mão vigora
um poema-tatuagem
monte de feno | meia dúzia de seixos polidos por dedos
ainda medindo a viagem
⚜
vento de pulsão no eflúvio enganado dum verso
de estimar hemorragia na entropia
vinho doído de vida minuto a minuto
a trama revela-se por exaustão e resignação
dada ao húmus deliberadamente
fome gratuita agarrada ao cão da dor
e à miséria em papel podre de romanceiro
⚜
a medusa solar pernoita no vidro fosco da melancolia
, nunca quis saber de tapumes enjeitados
o bloqueio da sombra explica a campânula
dormir entre os vidros da memória
assombrando os espelhos
vinga o dia mas não o sentido da melancolia
oblíquas ou enviesadas as ramificações intersectadas
[veios luminosos da medusa]
são razão do memorando ―
⚜
… molinha de sílabas na inquietação do estômago ―
assim crescem as árvores onde a floresta não é possível
a partir do nó ventricular em rodopio numa canção órfã
árvores de ramos alquímicos confusos e desorientados
faiscando de anemia vegetal na clareira do desassossego
as árvores de palavras não têm xilema nem floema, usam
o coração de outros para tudo e crescem lestas no baldio
dos corpos; de boca para boca e de desenho em desenho
também pela árvore das mãos que acusará tensão ao arco
porque há uma árvore arterial em cada momento ―
⚜
então luz não é de levar
ou trazer
e a nervura da língua não será igual à da folha
que se recolhe num passeio ―
ser dá trabalho
como o de tresler | transcrever
essa inclusão perniciosa de cristais na bioleitura
refulgindo os minerais na biblioteca do sangue
não se traz nem se leva a luz
a luz perdida no conceito e na génese
entidade ela própria
diversa e divergente de identidades
aparecendo sem concessão por pura aparição e contradição
como que namorando a espiral do devir
, uma nervura intocável de tensão e esquecimento ―
no escuro fundo
a flor-de-lis atenta
com os seus veios constritos no vácuo incolor do tempo
a flor-de-lis comprometida
com a púrpura da solidão, natureza em isolamento
o feixe de energia desenha o sangue
por contraste
numa dança de sombras que atazana a língua
nervura que diz do fogo de olhar
enquanto escrita sanguínea
místico som em chama de transporte dito milagre
ou então luz
que se conhece por cegueira ―
⚜
ascende a bruma enevoada como vitral de abismo
algo aflora irremediável da ínfima rasura do horizonte
quando a imagem sabe a sangue por contraste frio
com a água vertebrada a reverberar todos os sentidos
a imagem sondando os espectros em profundidade
como que no cérebro plantada uma raiz dada à nudez
II
o estranho em mim ― uma força
de dentro para dentro
aparentemente de fora como ovo cósmico
[tremor de águas brancas]
! energia :
uma bolha humana de contradições
acirrada foz confundindo-se
entre as bocas
, a força redistribuindo tensões aos músculos
que atónitos se atrapalham de orquestralidade
sobrevindo em ondas energéticas
como estrela-de-carne ou pedra-de-toque
da solidão ― o estranho em mim
⚜
pode o torpor como funda verosímil do real
em carne nua estalar de sal e renúncia
um céu de pranto
que chova obliquamente certo
sobre falsas certezas
pode o torpor brincar ao cetim
numa era de hienas
aninhadas trôpegas no lixo
⚜
a turbulência mastigada em barulho pelo mar
resquícios luminosos de mim
ou imaginando-me eu todo boca paranormal
a funcionar desigual minuto a minuto
sobre cada momento ―
as palavras são-me erosão
no corpo
mastigam-me de ausência
por uma existência impalpável
as palavras : tão reais como os dentes do mar
⚜
o som bivalve a meias com o silêncio
intermezzo | intersecção
nódulo precursor da voz
bipartido o som conflui
[artéria solta do poema]
o que fica de sombra manchada
depois do espasmo sanguíneo?
⚜
entro na agrura do ângulo
como quem arrisca devasso uma confissão
pano a pano
a memória em cuspo frio
[fio condutor devoluto]
por asa ou barbatana na transgressão
― o ângulo diz do vértice
fala por paredes indivisíveis
inflexão a inflexão
a dúvida do brilho sobre as coisas
sobre os ângulos ―
não entro no ângulo
antes na câmara opressora
dum verso indizível
⚜
e como a lua esplende azul
olho entre os dedos
hora do anjo na plataforma ― nas mãos
um globo dormente
grão-olho-ubíquo como raiva de sol
sobre as civilizações
quando esplende a solidão
o ermo estaca
de contrição
⚜
o bago onde vou dormir
alimentou-se de nevoeiro
passaram anos sobre o pólen
um poliedro vivo este bago
temeroso e rugoso
quase pedra de sopro
para espectros ―
afastou-se da decência de gota
um líquido move-se dentro dele
e não é água mas saliva azul
fome de texto | fome de pele
paisagem ferida a contraponto
por confusão de espelhos interinos
o bago onde vou dormir
não é bago antes casulo
nave aturdida de falso encanto pelo mundo
casulo de mantos aleijados do desassossego
nave das estórias d’incenso adstringente
o sono será calculado pela rama do pesadelo
texto de fora | texto de dentro
crise óptica na revelação das essências
são imprevisíveis as estalactites no sono d’alcova
deito-me enredado de sedas do casulo
o bago que me impede de dormir ―
III
queimas de amor lírico pelejadas na calçada
glândulas ensonadas na fuga para a arte
― que dirá a pele sobre o vulcão?
⚜
a rua examinada pela traqueia epistolar da insónia
― os pulmões digerem fôlegos de imagem
, coração de vidro embaciado em movimento pendular
restará uma ponte de marfim
marchetada de crepúsculos
. e nenhum ar
⚜
ontem soprei figuras na água rósea de uma ideia doente ―
lábios confundem-me os aromas na memória
mãos conferem veios sensoriais de mágoas já corpo
nódoas negras, feridas abertas e as dezanove cicatrizes
espiral de evocações pesadas em redemoinho
estruturas fantasmagóricas perigosas
metidas em metano com a língua e outros músculos
ontem animais visuais fizeram o animal que sou hoje
perante a página turva dum relance no espelho d’água
água rósea porque contém sangue
porque contém o meu e o de outros
objectos em velocidade, gestos e rostos
sopros de dentro
, só muito de dentro floresce o sangue para o abismo ―
hoje apresento-me como alimento às feras
trago escuridões brumosas de roxos a descobrir em lilás
porém não sei porque inescrutável qualquer escuridão
mesmo que as trevas sejam a revelação da identidade
negativos do que se afirma no sabugo mental
como errada milonga a decantar num dos cantos do quarto
junto aos intestinos caramelizados da máquina de escrever
⚜
o tempo num bago de som
ronda de fósforos à espera
de alinhar manchas lunares
sem dever nada a ninguém
poder ter um momento só
a caminhar dentro do bago
rastreando rombos ao arco
futuros cancros trabalhadores
na nave de âmbar ensejando o
interlúdio de música e de dor
rasgadas as pautas de latidos
sacudidos os livros sagrados
abrindo o peito ao gérmen
do casulo em intermitência
véus instantâneos do âmago
âmnio mental e sentimental
onde as paredes húmidas dão
o humilde húmus ao humor
sangrando o podre entediado
profundidade do som na cor
interior arbusto perfumado
⚜
perfurará a palavra
a pleura descomunal da insensibilidade informada?
palavra de estepes poéticas
quasi iridescente
aleijada nas lides onde a literatura é guardanapo
ou talvez palavra como amuleto gasto
num qualquer bolso da idade menor?
que palavra vem na quadriga de hades
silenciar-me o descontentamento atroz deste marasmo?
crisântemos invertidos do fogo bravio?
e um gato-arabesco salta
vagueia ávido pelas estantes guardas do meu sono
despenteia-me o cabelo e os sonhos ronronando
[talvez a palavra em suave ritmo codificado]
tira-me da dormência e do limbo de cogitação
para eu me aperceber
entre os mantos semióticos da necessidade de ausência
que a palavra se apaga a ela própria antes de existir
⚜
olho-te entre linho e bagos de romã
minha mão embriaga-se no teu corpo
sobrevoa escutando o mar até ao osso
abraço-te na lenta escrita das algas
e com a densa neblina dum beijo
ensaio contigo a concha do sono