Boca do Mundo

[Universitária Editora, 2004]

ANOTAÇÕES DO EXORCISTA DESEMPREGADO



“Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam”


António Maria Lisboa



o luar sangra copioso enquanto uma ninfa dá à luz pudibunda. a pele derrete num sopro desfocado coleccionando fungos enjoados da acrílica sede. encostado ao parapeito aprecio a fúlgida maresia de elementos. embebo um casulo no álcool e coloco-o no crisol em chama para reforçar a sombra da alvorada de cordel. estrangeiro em casa, a ruína repetida em cada palavra de que matéria são as nódoas na túnica luminosa? sumo de tulipas negras ou sangue pisado? o problema é despertar a sombra morta do que já é morto.


saboreio o doce verso da terra em cada circuito oval circunscrito, no álamo em que sobeja a dor póstuma dos gestos. saboreio o que de sabor fede a injusta verdade dos gomos insubmissos arranco o eco aprisionado e do soluço de cristal a voz retrai para que no êxtase sincrónico dual, um outro ser puro e imaterial surja.


perante a abscôndita sinceridade carbonizada rompi com o diabo das miudezas vis e espumei clorofórmio ensandecendo. vivo a loucura febril das tardes de escrutínio as sarças ardem solenemente. o vidro ameaça a veia cardeal e cabeças negam propósitos. deste terreno apenas se herda o húmus e a névoa inevitável do supérfluo.


este novo antro

este apetite elíptico

ou estrada relançada

ou abismo ressentido

inspira expira e morre

ciclicamente recicla

a terapia da fala


mergulho no mar marmóreo onde ressurge a fisionomia. o lodo verde apodera-se da pele. bebo as cores dos olhos que fugidios embatem nos meus. espremo um limão verde na fechadura do acaso. como expressar o desprezo encurralado em cada cópula? lento visco a escorrer entre rostos que num tempo a tempo tocam-se solitários a espera reanima o falso vagar dos corpos.


teias de seda cegam e o murmúrio aquoso silencia os gestos. os ecos afunilam-se. recebi notícias da outra margem pelo mensageiro negro e agora despeço-me atirando asfódelos até ajaezar o ínvio nado-morto... adeus.


este novo ser

esta estátua de lama viva

ou agitação obscura

ou decalque mordido

inspira expira e exibe-se

doente vomita o bolor

que o persegue à noite


irrompem apotegmas do algodão translúcido que limpa graciosamente o coração de vidro. preparo a mortalha para o almoço. para a entrada indigestas reflexões metafísicas abrem o apetite. o pulso frágil repousa na mesa onde o pão desabrocha para as bocas intimamente rosadas. súbita fome verbal mastiga-se o pão, mastiga-se a opinião à mesa curam-se feridas corrigem-se posturas num vislumbre ósseo. as frases desirmanadas do suco medular são a confissão nas entrelinhas e os choros em argola, encadeados nas lacunas do diálogo arquitectado sílaba a sílaba, recriam uma memória colectiva.


não repouso nessa neblina acoruchada. consumo poeiras obscuras dum silêncio reduzido à orla imediata e, se da mão envelhecida se celebrar a deiscência dos esporos com o fúnebre desalento da memória alegre das coisas, sairei ileso ao desabar o solo carcomido. abro os olhos e entro na tertúlia imagística da sala vazia. os naipes arrevessados ao chão depois da notícia, o cego jejum da solicitude mesquinha longe, neste lugar, procuro repouso.


uma vez mais

a formiga verteu

ácido sobre as pétalas

manchando com luz negra

tudo à sua volta


a pronúncia secular da cinza retrai o que próximo se acende quando denotada a alígera fecundidade da boca que, morta de desespero, cala-se enclausurando segredos dum calcário ardente.


uma vez mais

outra pomba morreu

em pleno voo

quando um poeta cardíaco

selou o poema caindo sobre ele


não digo do palácio de cristal renegado no sonho enquanto sopro diário. não digo dos fungos que sós assombram qualquer regresso nos pedaços de jornais velhos. digo dos dedos arqueados, digo do vibrante arco metálico que regressa do exílio.

abro os braços à agitação dos ventos do sul. persigo os pássaros que outrora desenhei nas noites em que a insónia me ensinou a dormir de olhos abertos.


tento emitir a argola envolvente perante a prontidão canora do vampiro enraizado no sangue que teme a volúpia exasperante das cartas a escrever. reconheço a lua na noite aquática, rezo ajoelhado perante a ulva macia de prata e sigo com o olhar um peixe que foge a trote; os dedos negros de paixão, unidos em oração, pedindo a anulação de imagens no espelho universal. enganado pela viuvez da imagem, assisto cabisbaixo ao simulacro da vulva póstuma.


neste antro nocturno, aproxima-se de mim o tosco anão verde que tosse agoniado por ter folhas secas caídas do castanheiro senil entranhadas nas cavidades respiratórias, e, jocoso e sério, segreda-me ao ouvido: «engole o botão de rosa».


a parábola repousa

na corola da flor

que madruga

adoçando o ódio


não mais do que isto: a zaragatoa aperta, o inóspito campo é povoado por flores-de-lis, a ronda precoce entoa os caprichos e a madeixa de cabelo é moeda entre inimigos. não mais do que isto.


rodo a maçaneta e já não nego o tesouro mas a sua forma. ninguém dissimula a logística entranhada e os glóbulos jamais apagarão as éclogas consolidadas no ínfimo recolher de espasmos coniventes até à estância libidinosa que o coração engrandecido pressente a todo o momento. que memória devo guardar dos dias sem semântica?


a parábola como punhal

exposto no regaço inquieto

crianças adormecem

no quarto que fumega


a relíquia sob a plena colina, o áspero colar indemne no colo, o labor floral nos braços... remexendo os sais me devolvo. o desenlace do argumento forjado a um passo do fulgurado abraço entre iluminados e dançando à chuva o sabre do inócuo ressentir golpeia o grito náutico eis o espaço mínimo entre flocos para blocos que contrariam os focos. daquela tarde lembro-me da caruma morena do verão, do cheiro a hortelã que benze os lábios. nesta tarde resta-me a sede... o unicórnio abandonou o vale dos espelhos e, agora, corre a morte no rio.


de novo a corda ensebada, o visco arrasta-se nas artérias do afecto. a distância contida no aperto propicia a revolta da saliva metafórica que faz com que as bocas soletrem mágoas e esqueçam o beijo, magno artifício do prazer. abro a janela e emerge uma linha curva no repentino solo. escavo derrapando no escárnio e vislumbro a raiz no brusco clarão que incide na aguarela.


voo picado

sono moroso drena-se

o paulatino veneno


os lábios não estão completos ao dizerem a palavra, mas o simples ruir das margens completam o sentido infectado do corpo.


três versos três facas

ainda não morreste? alguém

será teu provisório inferno

PRANTO PELO CORDÃO UMBILICAL


“As nuvens explodem. Estamos no Signo da

Cascata. Porque as mães sabem tudo. Aguardam

sentadas o vinho dos mortos.”


Fernando Grade


“Mãe: quem me dera dormir tanto que voltasse a nascer...”


Jorge Fragoso


neutrões assumem o comando da matéria

cabeças vazias clamam o nihil

perdidas cabeças na pele

farrapo de células

os apelidos da infância humilham

aqueles que deram braçadas

no mar de saturno

facas estelares

atravessam os pulmões

que beberam o ar e a geografia abissal

a repetir uma e outra vez nos pesadelos

inicia-se a combustão

os átomos dançam em torno do fogo


entra e sai da câmara

o que és?

soletra «frio»

o sono longe e certa a faca do dia

sintoniza a cara de luz na avalanche mental

ouve o grito da imagem

esfaqueia a sombra do que se diz frágil

mas intocável


esfregam-se mãos na parede pintada

com o sangue dos vermes intermitentes

desenhos a lápis fino nos olhos apontados ao sol

a sujidade do mundo é vertiginosa

a beleza é subjugada pela raiva

ó mundo dos acidentes hormonais

bombardeado com motorizadas cadentes

vindas da cordilheira de meteoros


apartai de mim o jarro de porcelana que parti

e colei peça a peça com a cola dos lábios que trinquei

nas absurdas noites da paixão adolescente

¿como esquecer as roupas sujas

de lama e verdume de giestas?

o fim em cada luar

areia mastigada com desdém e antipatia egocêntrica

[o mundo selvagem]

cai a música

o açúcar da doença rapta o sorriso hipócrita

entre pensamentos planetários

os dedos já navalhas ferem as faces do rosto


mãe

a orquídea está cansada do orgulho

que lhe corre na seiva

mãe

expurga-me o veneno


a obsessão visionária é negritude discursiva

¿como esquecer o coração da viagem?


e se fosse possível prever

a órbita

das auréolas voadoras?


e se depositássemos

as veias

no antro estomacal do mundo?


e se largássemos

as mágoas

que causam anemia?


e se já não houvessem

os espelhos

da alegoria social?


e se prevalecesse a intercepção desmesurada

dos olhos onzeneiros

que sedentos esperam o desabamento do tecto?


e se a negra cor do pano

alimentada de medo

deixasse de ser a cor do sono comum?


mãe

vi Cassandra desolada

subindo a rua com a túnica rasgada

os pulsos rodando brancos

os dedos tacteando francos

o ar que já não respira

os olhos repetindo o poço de sangue que vira

o rosto esculpido pelo ódio

dedicado à besta que subiu ao pódio

Cassandra arrasta seus pés

seguindo o trilho do sol pela última vez


mãe

vi Orestes procurando a víbora viperina

e nem Pílades lhe esgueira a sina

nem Ifigénia o reconhece agora

cada facada em sua mãe é hora

que passa recordando seu pai

com estima cega – o coração trai

o materno colo que de carne o adornou –

por Hermíone Orestes Pirro matou

e Cassandra soltou um sorriso maquiavélico

Orestes carrega nas veias o amor bélico


o andarilho humanóide

festeja ensonado

a sumarenta denúncia

chove

e há quem se molhe por dentro

parafusos de cobre enferrujam na carne mole

do sentimento que veste os órgãos

suados de existência

chuva contrária

chove

e há quem arda por fora


mãe

o bicho-da-seda

encontra-se rodeado de agulhas

contorce-se de dores

quer sair e sairá


mãe

tenho dores por todo o corpo


monto o palco

forro o cenário com a pele

o mundo entra-me pelos poros

declaro único o lugar

[o cérebro da cidade dos homens]

único é o primeiríssimo lugar

com todas as ossadas encaixadas

no qual assisto à dança dos mártires do novo tempo


estar aqui

mergulhado no muco

lendo o vermelho da imagem

o sangue

sempre o sangue

digo sangue escorre sangue

e ele dentro

anima o corpo explodindo nas veias

o sangue

estar aqui

à espera que as vozes presas na minha cabeça

se soltem desobrigadas

para que possa escutar a mirabolante fábula

e desenhar os esquemas nas paredes amarelecidas

pelo líquido amniótico


dentro quente me sinto

as duas metades roçam-se com desejo

dentro possesso articulo os selos ósseos da memória

fora arde-me o umbigo

a musa esbofeteia o ar acima da cabeça

fora solta-se-me o cavalo de bronze

que amarga a língua presa ao meio


mãe

quero adormecer de novo no teu ventre

TOOLBOX

ESPELHO

da superfície plana a imagem plena

eu e outrém frente a frente

paralelos ao vazio quedamos atentos



SANGUE


ângulos advertem perigos geométricos

vermelho o sangue mata



CORAÇÃO


cofre de mágoas guardado por espinhos

cofre de pólen guardado por ossos



BOCA


a caverna húmida ecoa a boca adúltera

encarcera o segredo libertando-o



MÃOS


iluminam o que tocam

movidas por escura razão

soldados nus dançam atrevidos



PELE


movimento limitado ao círculo delineado

a tarde de horas vestida a sombra mancha

a pele



CABELO


lianas descem a colina sinuosa

almejam envolver todo o corpo

para que do casulo um novo ser nasça


OLHOS


janelas móveis para o mundo

espelhos irredutíveis da realidade mutável

esferas cristalinas incrustadas no altar do corpo



OLFACTO


o aroma chama tão secreto seduzir à porta

do palácio polpudo é nosso dever sucumbir

aos desígnios egrégios de tão humilde condição



OSSOS


articulam-se comedidos dobrando a carne a pele

jamais roçam o perímetro frágil do afecto

o esqueleto insinua bifurcações da vacuidade



GENITAIS


Profusamente Ébrio Navega Injecta Sémen

Vulva Aberta Gritando Inspira Natividade Abjecta


OUVIDO


auscultando o movimento intrínseco ao vulto de terra

no laboratório isolado de brancas paredes mortas

o ouvido olvida a pulsação primordial que une

as vísceras do ser às entranhas da crosta terrestre



ROSTO


ninguém adivinha o rosto com o olhar

por mais profundo que seja

ninguém o desenha de modo fidedigno

com seu lápis mente ou deslumbramento

sem que lhe imponha traços de outros rostos

ninguém conhece o verdadeiro rosto

e se alguém julgar conhecê-lo torna-se ninguém

FLORILÉGIO DO SILÊNCIO OBLÍQUO


RECINTO MORTUÁRIO


acelero a cor do pinho na alvorada que se incendeia

escrevo como obsessão última

arauto vibro

penso e viro o leme no que é pleno

mas inconcebível a agulha sobrevoa

a pele defendo a farsa das terminações nervosas

como preâmbulo declamado pelo gago a apedrejar

enxergo a linfa no gume

procurando o gato persa fictício

e sacudindo a poeira de alucinações

adopto o léxico do corvo


sei que criaram a verdade a partir da rosa murcha

e agora as bocas esfomeadas comungam-na

em círculo a lampreia não sabe o nome de cada um

dos seus filhos não me cabe corrigir o silêncio

sabendo que o peixe foi criado para o dislate

e que o agrilhoado decesso singra

no encontro dissonante em que visto

um rosto de prata


a tarde torna-se crespa com o glutinoso silêncio

festejo a solidão comungando rochas brancas

e amêndoas amargas

enquanto a mulher de água doce caminha sobre

o mar


observo o meu corpo aliás estudo o corpo

em uníssono será o corpo a herança a profanar

no pálido recinto mortuário? o corpo fez-se a partir

do silêncio que ainda orvalha na pele

tão triste a água que sobra

quando a força do beijo ósseo se torna agreste

quem morre numa boca em corpo se transforma

vive-se mastigando o pão da culpa vive-se

da lenta morte que aglutina grãos de pólen sortidos


a gota de mel alastra-se pesarosa no copo de cristal

e só é mancha quando esfregada na pele

daquele que a repudia e enxovalha

quando decalca o pudor salino que bebeu

dos seios marmóreos das estátuas

há muito esquecidas na ilha longínqua

que se tornou ferida negra do oceano imenso




CIO


amancebam-se os bígamos pois é etéreo

o caminho da paixão roxa irá o corpo

enlanguescer nas núpcias como logro?

amante ou locatário?

eis a dúvida da nova praia a cama enluarada

é o leito fúnebre de Platão


o maganão de olhos esverdeados solta a fúria

na espiral dum beijo

lava-se no lago sagrado agitando as águas

depois do banho reduz-se a um cadáver

manchado de néon que conserva no peito

um ninho de aves de sangue frio


o edifício de açúcar erigido em tempos

entre as árvores de betão foi demolido

e resta agora o regozijo pesaroso

aquando a despedida das aves migratórias


o cadáver acena com sua mão construída de musgo

e líquen adeus aves perfumadas



DUAS POMBAS VADIAS


“Pero tú vendrás

con la lengua quemada por la lluvia de sal.”


Federico García Lorca


vislumbro o suicídio ao longo das tuas pernas

de te tocar falhei ao fingir falecer

a silhueta púbere sobrevoa

o que me ataca por detrás

espera

quero que saibas que não perco o rasto

do que voa rente ao chão

vem pousar nesta noite escura

amanhã virá a mãe do que se move

liberta-te desta casa

os olhos agarram-se ao chão


liberta-me também

pois quero acordar no aquário teu

acalma-te

quebra a cabeça de água

o outro mundo é apenas

um outro dia que não chega a raiar


¿quantas vezes amarrados

à cama resguardada do frio criador?

não consigo ver nada lá fora

a erguer-se calvo e serenamente cruel

neste amontoado de lençóis impregnados de saliva


éramos pequenos deuses rasgados devagar

quando selvagens na cama

para terminarmos mortos no chão


a síndrome das algemas de vidro

ataca de novo


tenho-te nas veias

num espaço de luz penetras em concentração

entras radiante

a vida como rocha

o amor tão devasso

e um fio de chuva corre nas palavras


perdi-me ao perder-te em mim

nas minhas coisas poucas

amarguradas de forma tal

que o singelo movimento é

a propaganda horrenda na rua

o lado agoirento emaranha as atrocidades

duas pombas vadias

apaziguadas pela enfadonha submissão às regras:

sem lábios carnudos para beijar

sem poder de escolha entre aberrações

de algo que ainda não se conhece


distanciados por um interstício

dois corpos suados a nossa juventude estreitava-se

na conversação imaginária tu dormias

e eu contemplava a sorumbática descida

do milhafre

ameaçando a sombra do barro feito homem


o que de mim recolho pelo olhar retido

é morgue absorta do abismo detido


persistíamos na súplica de chegar a qualquer lado

ajoelhámo-nos

gritámos

dissemos que um dia mataríamos a lua

e afundávamo-nos cada vez mais

na areia movediça


aflige-me o cansaço de cansaço

a maçã acidula torna-se azeda

como denúncia poética

dos que foram condenados à vida


fim em cada qual

exortação insatisfeita do animal


foste-te embora

sei que levaste lágrimas escondidas

nos punhos cerrados

aqui comigo ninguém

dispo o nada visto o nada

troco o nada acontecido

pelo nada sentido

mergulho no rio uma urna

flutua ao meu lado


irregular esta navalha do céu oceânico

ataca-me de novo um mar de vidro

um anjo atravessa a nado as minhas costas


a navalha foi cravada fundo




FALSO FOGO


chego tarde e trago falso fogo nos lábios

falaram-me da maçã sem corpo

e inocentemente esperei a mãe dos ovários de ouro

para lhe dizer que já não é bem-vinda neste mundo

refugio-me no umbigo da laranja que pousa

para a luz residual

dragões de fogo bailam silenciosos

despertando subtilmente a dor parte dum corpo

a partir dor que se arrasta dormente na carne

ainda viva

o silêncio que a doa é ruído

e o ser a roer-se por dentro chega a temer o pior

desejando incrédulo o esvaziado sentir

da dor parte dum corpo a partir



FILHOS DA AVE TRAÍDA


não me lembro mas é como se me lembrasse

um enorme chorão é o marco do subterfúgio lilás

sento-me na escadaria e estalo os ossos dos dedos

estabelecendo uma ordem de pequenos progressos

a anotar ao longo da insónia numa pauta desenhada

no peito suado a maresia lunar anima soluços

de terra e há um volver astuto que resvala em toda

a armação orgânica ninguém cala a cálida brisa

que ostenta a crise absurda das moléculas

a sombra áspera é território a perder de vista

onde se travam as mais ridículas batalhas

como artifício de decoro a coroar o corpo

nascido da furna humidamente quente


não me lembro mas é como se me lembrasse

junto a mim a segurança soturna de goivos

encurralados na jarra de vidro baço

os dias amassados no tabuleiro para fabrico de pão

que provoca a amnésia parcial garantindo

a sobrevivência num calculado mundo insalubre

¿terão frio as estátuas erguidas pelos filhos

da ave traída que mastigam a neve e o gelo

quando têm sede? nenhuma sede é saciada

ter sede de vida é ter sede de morte e

sempre que a fome ataca

rasgam a carne uns aos outros

carne de cor roubada a uma outra carne

¿de que nos queixamos afinal?


palmilhando a estrada do silêncio

a voz sobrevive atravessando a nebulosa ouve-se

um oco eco

o comedido fonema neste mundo

tudo causa gangrena e há quem dê por dar

o poema




BOCA DE ONTEM

e no princípio era o nada que ainda hoje é

de tanto dividir o dia chego a ver mutilado o sonho

sorvo a luz do estranho astro que povoa sonâmbulo

o espaço que por não ser meu pertence-me

e as pegadas lembram-me coalhos de lágrimas

soros aflitos sobre as palavras precipitadas


espelho:

olhos olham o olhar de outros olhos

eu feito tu sou eu sem o ser


os ossos rasgam a seda dos dias

e

a boca de ontem exala um olor a morte




LE DERNIER TRAIN


«La terre regarde la terre, tout le monde regarde tout le monde, personne n’y comprend rien.»


Jacques Prévert


il pleut

le sang pleure

le plasma diminue

¿qui nous regarde?

les étrangers de la nuit roulent

la règle est simple:

ne jamais se rendre à l’espace pétrifiant

à la gare mes amis

à la gare

on mange les ossements des autres

on ferme les yeux en parlant

la folie est morte à la maison

les enfants sont pâles

ils ne connaissent pas la vraie chanson de ce monde

ni le mot fatal

à la gare mes amis

à la gare

on part à la recherche du foie noirci de la lune


elles ne me disent rien

ces fleurs découvertes à la lumière étranglée

elles ne me disent rien

ces feuilles sèches de l’arbre brûlé

ils ne me disent rien

ces appendices démasqués des multiples insectes

morts par le nectar d’or

on n’aperçoit aucun vêtement de la mort

qui danse autour de nous

mais tout est dit:

il n’y a rien à dire


l´eau mortelle sur ce plastique ridicule

¿où être pour réussir à attraper l’étoile obscure?

l’illusion à connaître sans effort

le délicieux pain corrompu par syllabes

de l’heureuse marionnette dansante

à la gare mes amis

à la gare

¿ne faut-il pas nous sauver?


les fluides d’un cristal fragile qui souffre

dans toute la constellation

descendent en à notre rêve

le plus grand rêve

écho de la vie derrière des conflits fugaces

qui troublent la dernière phrase

avant la décadence organique du corps

la soirée jaunie ressuscitera le père de la folie

à l'égard du séjour que brille euphémiquement

les images brûlent en passant

des peaux ressemblent à l´argile frétillante

desséchée sur le métal malade

à la gare mes amis

à la gare

protégez vos têtes


voici le poison atrocement inéluctable

l’image définitivement déflorée

avec la poussière de chaque jour seul

sur la nuit nue métalliquement ouverte


en pleurant la ville s’asphyxie

l’aigre air ressemble à l’antique refoulement

fermé dans le crâne solide par l’orgueil

¿qu’est-ce qu’on fait ici?

à la gare mes amis

à la gare

allons-y allons-y



A CIDADE DO ÓDIO


tubarão entre tubarões no útero da mãe

irmão entre irmãos

o canibalismo uterino é a prova

o vencedor mergulhará para fora

e tudo se desenrola sem ódio explícito

o ódio jamais habitou o útero

habita a cidade

autêntico baile de gadanhas

o turbilhão em cada um e na multidão

ninguém sai ileso deste chão estrepitoso

cá fora perde-se o que veio de dentro

outrora imaculado

o silêncio da legítima ignorância

uma outra morte mas que nada decepa


pouco se sabe sobre o que realmente nos magoa



EXÍLIO


“A process in the eye forwarns

The bones of blindness; and the womb

Drives in a death as life leaks out.”


Dylan Thomas


a árvore falou com suas raízes de cheiro

e no ano seguinte secou eu sou onde estou

nada a antever por agora

um vento novo vagueia

de hora em hora

as mãos enterram-se no cabelo macio

adormecem calejadas resguardadas

do frio

a noite é longa viajo deitado perpassando

o paralelepípedo enevoado não durmo

a noite é labareda de gelo

ardo acumulando no interior o vurmo


a água morta cinge o peixe morto

por linhas direitas o desígnio torto




2 DE NOVEMBRO


ergue-se uma nova multidão no cemitério amplo

a terra cheia de rostos que rosto limpo paira sobre

as cabeças dos vivos? não passa dum choro

a mais pequena flor orvalha sem o sorriso

dos que já viveram o gelo atacou outrora houve

um coração arrancado a ferros da fornalha

não era um coração era um búzio de carne

que quando soprado entoava a música

do fraco ouro que a geração dos assassinos

perpetuou os mortos ainda gritam

os sinos pararam de tocar quem está vivo

é já morto se não ouvir o seu próprio coração


a terra sabe a amargura de corpos que deixaram

de respirar a terra é sangue as flores nascem

as árvores irrompem do solo crescem engrossam

pela força da terra que digere os corpos

¿quando descerá a palma dourada que concentra

toda a energia que outrora animou esses corpos

agora húmus?

à luz da lua fluorescente o cálice de prata

colocado no centro da mesa do jardim

arrecada gotas de chuva para que na nova manhã

dissolvam as lágrimas esféricas solidificadas

de espanto nos rostos cadavéricos

e eis que nasce o dia em que se celebram os mortos

o sol desponta imponente abre-se a janela

para se ver a montanha a arfar com nova cor


hoje não se bebe o orvalho de todos os dias

hoje e só hoje bebe-se o cálice de lágrimas



ORQUESTRA SEM MAESTRO


os tambores apelam à secura flagrante do crepúsculo

a cítara hipnotiza renunciando ao verso que cheira

a terra molhada

guitarras eléctricas galgam a montanha

e a descer violinos choram irritando a pele

a harmónica hostiliza o espaço pisado cautelosamente

saxofones esfaqueiam na escuridão cegos

vingam-se robustos

o metal refina o sangue extorquindo a ferrugem

acumulada na jornada os gemidos são dissimulados

pelo contrabaixo de voz grave e paternal


por fim o descanso

o piano ensina a ordem de todas as coisas

e depois o isolamento parcial para auscultar

a música do corpo desapegado da fala



LÁGRIMAS DE SANGUE


transfiguro o rosto com lágrimas de sal tatuadas

na mão aperto com força o gargalo de vidro baço

um queixo de luz esvai-se acima

dum outro rosto reflectido

com lágrimas de sangue vivo a escorrer

pelas faces abaixo


suculentas borboletas planam no espaço livre

do sótão

ao canto um baú de castanho por abrir

desmaiado sob o olhar da roda secular

saio fechando a porta e sei que as borboletas

se despenharão inanimadas

transformando todo o espaço num cemitério

de pedaços de cartolina recortados

em forma de borboleta

e minúsculas peças de madeira


há uma continuidade entre o corpo animado de vida

e o vácuo doentio que nos transcende

tudo se reduz a um sopro limpo

uma aragem filosofal que transforma em vida

tudo o que toca


da realidade frugal uma outra realidade abscôndita

o caos recomeça no ponto cardeal minúsculo

da afinidade conjugal de todos os corpos

adormecidos na paisagem interior do sonho

tornado carne focada de modo abstraído


o diafragma invisível trabalha

rodeado por músculos que formam o pericarpo

dum fruto que incha fuliginoso


a luz gera-se no interior

e é conduzida por um canal estreito

até ao ostíolo porta selectiva de lábios

morbidamente encarnados quando fechados

mas que abrem diáfanos

deixando transparecer o sangue vivo em apoteose

quando algo emerge da paisagem externa

e navega subtilmente através do fruto

transformando-se em nova paisagem interior

outra luz


a terra dissipa o vapor enamorado

pela força dos astros montanhosos

a música das esferas anima esculturas vulcânicas

e a orquídea respira com dificuldade

tem sucessivos ataques de asma

perante plantas demoníacas e ervas guerreiras

que banidas do reino floral colorido

respiram arquejantes e dominadoras


as pétalas do lado negro

vivem manchadas pelo orvalho contrafeito

as pétalas do lado imaculado

vivem manchadas por lágrimas de sangue vivo

que escorrem lentamente para a terra

habitando-a definitivamente


o hálito da terra é acre

assim como o paladar do sangue na boca

que pulsa ainda vivo pelo remorso



PÓLEN


"Estalaram os botões dos salgueiros.

Um bafo húmido-lilás turba e perturba.

A primavera toca mais fundo na loucura, revolve

os vivos e os mortos.

Todos deitam flor."


Herberto Helder


não adianta renunciar à dádiva comum

dos anos alinhados pelo espaço húmido

que nos dilacera boca do mundo a nascente

de saliva

caldeia as enigmáticas esculturas aprisionadas


¿será o jardim a súmula da fantasia empoeirada?

o contrapeso das jornadas manchadas de sangue

e suor?


visão alucinante quando se espreita a primavera

estação na qual plantas desossadas florescem

rendidas ao bailado dos insectos que zoam em coro

e o jardim

é ele próprio um oceano

as ondas foram substituídas por corolas

que abrem sincronizadas durante o dia


uma tarde sob uma outra

os olhos comprometem a terra

cintilam tremores nas pétalas das açucenas

as peónias abafam a papoula solitária

mas eis que a hera rasteja cautelosamente

serpente vegetal enrolando-se nas peónias

sacudindo-as até cuspirem as ninfas envergonhadas

para o chão que se mancha dum pó dourado


nesta tarde as lágrimas têm cheiro

Apolo chora ainda

chora desprezando o atento girassol

que cresce opulento no solo empanturrado

de melancólicos desgostos e sussurra repetidamente

o nome duma ninfa da água

Apolo chora com um jacinto cor de sangue

a roçar-se-lhe no peito as dedaleiras

dançam sarcásticas e acusam Zéfiro

uivando com suas inúmeras bocas


todas as flores têm tatuadas nas suas pétalas

um rosto divino ou humano

e cada uma tem o seu sangue em que o plasma

é composto pelas lágrimas derramadas de quem ficou

e viu partir quem amava


tudo é construído pela dor escorregadia

(o navio de cristal cavalga na alucinação

breve emaranhado de sombras indescritíveis)

denunciar o rebento que a todo o instante se altera

torna-se manobra da paixão quebradiça

a falecer nesta enseada doentia

e que

ao apagar-se na sombra da mulher que vestiu

as pétalas das flores murchas

o navio de cristal esquecido entre a relva embacia

esse mesmo navio que limpo

amplia a flor que repousa no chão

flor cruelmente decepada que ainda

não partiu deste mundo


quando o dia se reduz ao crepúsculo

o sol não é mais do que uma ciranda de brasa

que anuncia o fim de tudo



ENIGMA


saia o último clarão do vidro fusco para que vingue

a tarântula sensual morta no ventre da página

os cômoros são falsos assim como o olhar húmido

do estrangeiro em nossa casa de fluídos e cartilagens

de parte em parte a dívida pelo comum

não há palavra com o equânime valor do gesto

mas a semântica dos afectos não acorda os mortos

um mastro de cristal condena os espectros

ondulam anjos de sal na intempérie pardacenta


adoeço à chuva procurando o lírio

que outrora cresceu com o meu choro sofrido

entro no portal de vapor e de súbito

a opção como ameaça: o texto ou o fruto

o fruto do texto ou o texto do fruto

e depois o enigma: as sílabas dos frutos eleitos

cruzadas ao acaso escapam fantasmas

pelos meatos ainda não eclodiu o cisne

das nuvens



AMANHÃ


concluída a criogénese gigantescas crianças de gelo

apressam-se pelo corredor armadilhado: géiseres

vulcões em erupção

chuva ininterrupta de bólides pungentes


o corredor é estreito como lâmina do presente

com inúmeras portas de mármore róseo trancadas

escondidos nas esquinas de marfim

os esqueletos de animais extintos

surpreendem as crianças e elas gritam e esquivam-se

à luz dos olhos de quartzo das estátuas plúmbeas

encostadas às paredes do corredor que humedecem

com o sangue das crianças

e estas derretem progressivamente diminuindo

de tamanho até se evaporarem por completo


outras crianças abrem seus gélidos pulmões

à aragem de morte devolvida por sucção

da outra margem negro e trémulo círculo

ao fundo do corredor


IMPÉRIO DE CAL


estás sentado lês uma tulipa nasce-te

entre os dedos do pé esquerdo

magoada acende-se roxa para ti

continuas a ler para não confessares ter visto

ergues o império de cal no cérebro desprezando-a

e a tulipa explode


sabes-te culpado

soltas uma pequena gargalhada cruel

que engoles ávido sem transparecer

qualquer sentimento de culpa

ninguém te olha mas é como se estivesses

entre a multidão que te julga a cada suspiro

não lhe tocaste nem tão pouco a viste

sentiste-a entre os dedos do pé esquerdo


agora

entras na cave dos excessos onde escondes

o que mais de visível apresentas na tua conduta

experimentas um silêncio corrosivo

e tal silêncio é dor morrente

sentes fome

e só te lembras dum pólen que não provaste

tentas adivinhar-lhe o sabor

mas nenhuma boca adivinha o paladar do sémen

duma flor


nessa tua cave tens um frasco onde em menino

colocavas as corolas arrancadas às flores

com inocência eversiva

mas como foste gastando o que angariaste

nesses teus verdes anos

o frasco encontra-se agora vazio


já não regas os teus dias

com o pólen da tolerância unânime

e vives amedrontado

rodeado por paredes de vidro




SONOLÊNCIA


“Não somos nós quem dorme

não somos nós quem morre

quando as pálpebras pesam


é o sono que morre

é a morte que dorme

quando dormimos nela”


Gastão Cruz


o alvoroço infernal governa a planície do medo

e seus herdeiros não degeneram

cumprem o ciclo

cada um por si neste jardim de espelhos

corroídos pelo ácido solto

entre breves olhares disparados

em ofensiva

bípedes esbracejam ritualmente

neste salão pavimentado de azulejos negros

em que a medida do vazio

é a medida do frio

enquanto decalque sobre o nada

os bípedes dançam

orbitam aturdidos em elipse

o que os segura é o medo

esse líquido que corre nas artérias da ignorância


a viagem

a derradeira viagem inesperada rasga a noite

descansar é substituir angústias

conquistar velhos castelos em ruínas

abandonados na infância

o fôlego é maior na solidão

a moldura gira em torno

das mãos

e verte-se o líquido azul

sobre a pele essa manta gelatinosa

que se veste à justa sussurrando

a última palavra da frase ossificada

à beira dos lábios


¿que afecto o sono

prende?


fungos guerreiros do sono assemelham-se

a constelações

e o escárnio cru de seres irreconhecíveis

compõe a partitura que acompanha

o desmoronamento do corpo

até restar apenas lodo que lento se move

e respira dissonante

sob a égide das quatro paredes

do quarto escuro trancado


abrindo as mãos

o corpo entorpece

como paga do que se apaga

nos olhos cansados

e depois um leve sopro coincide

com a brusca

queda

do tampo


¿que confissão o sono

prende?



TERRA A TERRA


as mãos nuas carregam o trigo dourado

e o rosto não é acaso

é essência figurada ardem as vestes

mas a feição é implacável e crua


o coração soluça na terra

vivo sol a sol sobre a cinza

respiro e morro em cada suspiro

as mãos ardem por dentro

mesmo antes de serem mergulhadas no fogo


olho a terra sinto o sangue

sorvo o elixir de tão invisível condição

soletro a palavra «terra»

T-E-R-R-A

Temendo Esconjuros Ressuscito Raízes Antigas


grato labor nos dá o labirinto

a colheita negra é nosso orgulho

deste chão ergueremos nossa face

uma voz sussurra:

«recebe o cordeiro de ouro em tua casa

cinge-o com a luz da lamparina acesa

e quando sentires que é carne à tua imagem

carrega-o nos braços até ao altar»


um muro branco se adivinha

ao se medir metro a metro a estampa

do que se vive pisando

e quando às mãos descem o pão o vinho

mastiga-se solenemente a renúncia à seara à vinha


meço com as mãos os frutos do sol

caio

a queda em flor

do que digo sobra-me a tesoura

os dedos circundam o umbigo

é o tempo é a hora

terno é o mando embora ilusório

PERIGOS GEOMÉTRICOS


OBRA

...............quadrado...dado...quadro

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...............obra..exposta...a...cobro

PAIXÃO

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CASA

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MEDO

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CICATRIZ

.........................não..se..ouve..o..coração

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....................e..................................................i

........................restos: ...legítima...cicatriz

ÁRVORE DOS SOLUÇOS

“If the lost word is lost, if the spent word is spent

If the unheard, unspoken

Word is unspoken, unheard;

Still is the unspoken word, the Word unheard,

The Word without a word, the Word within

The world and for the world;

And the light shone in darkness and

Against the Word the unstilled world still whirled

About the centre of the silent Word.”


T. S. Eliot


“olha em redor dos bosques as veredas destruídas

pela explosão devastadora das minas e ouve

as vozes límpidas morrerem no poema”


Al Berto

eu vi o terror

entranhado nos olhos que matam

s i l e n c i o s a m e n t e

vi a carpa gigante cortar o muco

às postas

calculei por palavras

réplicas da cidade destruída

vi corvos em reunião

com etiquetas suicidas

nas garras


abriu-se uma fenda

no paraíso de betão

os culpados serão punidos

cada um a seu tempo


cabras com cornos de aço

perseguem agora o desertor

que executou as tarefas macabras

a cidade dizimada


a eira ao abandono

regresso despedindo-me de tudo

quanto foi alegria lilás

as velhas portas apodrecem

como eu apodreço

a cada rotação da terra

foi-se tudo

o tempo róseo dum eixo

que hoje é cicatriz no queixo


carrego a carapaça de calcário

deste tempo

bebo desconfiado o delírio fecundo da noite

enquanto ouço o ziguezague oriental do zinco


dou por mim às avessas

os órgãos expostos

espio-me a mim próprio

¿brilhará a nobreza

do belíssimo fruto cínico

acariciado pelas egoístas mãos?

ou será o brilho a desonra

a fugacidade rediviva que cega

esbranquiçando os olhos polidos

a cada imagem que passa rente

com sua acidez?


abro uma laranja rasgando com as unhas

a pele grossa

leio o texto humedecendo os lábios

com o sumo dos seus gomos violados

gostaria de sentir o mais pequeno remorso

ao beber o sangue deste fruto

ao ler os seus versos


secam as fontes

a alcateia à espreita

bocas tão bocas

os sons da garganta estragam palatos

morrem animais


eis que chegam os narizes de sangue azul

as grades sujas de esterco

e sangue amarelado


¿quando vingar a cor do dia?


a rua

nua

a noite

noutra rua

o dia


se um som

se um mesmo som ouvisse

sem a voracidade mental

se fosse quem fosse a própria pessoa

escorregando no som

e se nesse mesmo som

eu ouvisse a ouvir-me fingindo silêncio

repetindo o som com os lábios feridos

a língua exausta

os dentes a corroerem-se

p r o g r e s s i v a m e n t e

se nesse mesmo som eu me ouvisse tanto

que me deixasse de ouvir

poderia gritar

rasgando o véu desse limpo som

a fórmula do novo silêncio


ao descer descalço a montanha

a alma do alcatrão surgiu-me disparando

seu olhar como bala obstinada

e outras também o fizeram no mesmo segundo


após o tiroteio negro

desenhei a face escavada do estranho eleito

entre muitos que agora habitam o corpo

e senti o corpo a seu corpo

outro corpo apartado do corpo legítimo

mas dentro nada nem ninguém

se apodera do sangue


extraio o ácido da árvore dos soluços

na camisa uma nódoa de sangue fermenta

como dístico na amputação do sonho

antigos demónios tatuados no peito

são o único testemunho da catástrofe do inverno

relembrado com o incenso das manhãs de nevoeiro


sorvo a luz

a cabeça húmida de suor e perdido o bulício

encolho-me: esqueci-me dum nome

que me beijou junto à cama

esqueci-me das três sílabas

o nome da mulher vestida de lua


cito a perícia da plebe gemebunda sito no mundo

[as mãos cosem as tiras de carne uma a uma]

cito a frase que os pulmões golfam


a ventania oblíqua encolhe-me a cada momento

dedilho os ossos fictícios que arqueiam

debruço-me cansado sobre a terra frágil

que à meia-noite se alimenta de folhas de videira

e galhos secos que estalam como dedos nervosos


a pele queimada

o sol raia louco empobrecendo a luta

não se vê a armação de metal

o prazer é ilegítimo

o cardume silencia a lagoa

a rosa murcha no berço do vácuo

e num milímetro visual

olhando em frente

um abismo de decalque

sobre o esvoaçar de andorinhas

tíbio disparo sanguíneo


a trágica açucena ergue-se entre as patas

do quadrúpede unicórnio

[a enxada assina o declínio da abóbada cinábria]

e espreitando pela janela armadilhada

meço a força da água no horizonte

esquecida a terra do elo semântico

as vicissitudes dum outro tempo

tornam-se estranhas à razão


um novo arco de cal e a epiderme retrai

p a r c i m o n i o s a m e n t e

as linhas ósseas intersectam-se em movimento

assim vivo com os lábios negros

de beijar à pressa

A REGIÃO DO FANTASMA


TRÊS DEDOS

a orla engessada

os pés criam musgo

na meia o brinquedo

a lua atinge o medo

SENHOR

quero três dedos a apontar a vitrine

mora lá a minha voz de criança

a retinir o passado

que as geladas mãos adultas amarrotam

FREAK

gaguejo sagrando sob influência solar

oriento as mãos para o gesto luciferino

KILL THE ROSE

eis que venho denunciar a rosa

queimando saliva

a memória em tornado

a genética dita a cadência dos enigmas

ADN

não quero acordar o peixe de fogo

que há muito habita o arco-íris do ódio



OFERENDA


treze virgens menstruadas

festejam com as luas

poças de sangue

rolas desordeiras

suam na opaca noite

ÁMEN

eis a vítima do ópio sagrado

mulher trasladada para o sepulcro

CAMA

as pernas estremecem

as coxas apertadas esfregam o sexo

os corpos olham-se

o corpo sobre o corpo

corpos

untos derretidos

FUSÃO

guelras para respirar entre lençóis

as orelhas mordidas por impulso carnívoro

ALVOROÇO

os ouvidos morrem

os corpos apagam-se com gemidos

ORGASMO


INVENTÁRIO PARA...


UNHA

negra

OSSO

branco

ISCO

infalível

bando de abutres calculistas

herança de fundamentalistas

da terra à água

da boca ao ânus

estrume nos lábios podres

janela de hálito ogro

pesado mistério tão sério

como a gaivota comendo alcatrão

iluminação precoce do abléfara

eis a lição

do

PARA


TROVA DE ATRIÇÃO

AI DE MIM

disse

ou brinco

com os teus cabelos

queimaste-me

e eu rasguei-te a saia

a noite não te come

quando assim estás vestida

AI DE MIM

disseste

ou evaporas

sem deixares qualquer rasto

não passas dum espectro

então

não te escuto

escreve a tua presença no espelho

com os dedos suados

eu espero

AI DE NÓS

disse

ou disseste tu?

EXPIAÇÃO

a cavalo cintilo ausente

saqueio fermento às musas

CULPADO

falo por sílabas de luz suja

a mão direita bate duas vezes

no peito

ABSOLVIDO

mantenho a pose surda

uma onda de sangue

resvala sobre o cérebro

digo o que está dito

quando muito não dizer

é imunizar a palavra

dizendo-a em silêncio absoluto

sem abrir a boca

SINAL DA CRUZ

perdoai querubins

a indecisão do ser menor



VAU

eis a incumbência basilar

dum luto planeado

ONDE ESTÁ O CADÁVER?

anteontem a terra

sorveu-o desabrida

esguichando

sua linfa venenosa

instituído o sobral pontiagudo

o verso estaca

e a charrua indaga díspar

QUEM MORREU?

cadáver anónimo

a constar nos autos

cadáver anónimo deambulando

entre pesadelos húmidos

QUEM ÉS TU?

surdo

caminha na passadeira de sangue

até ao interruptor

OFF

VÍRUS

demarco a tatuagem

interstício da linha agridoce

as línguas em euforia

AGORA

um olho de vidro

a doença

MAIS LOGO

o silvo de bronze a morrer

na garganta do irmão terráqueo

AMANHÃ

a cura descrita num papel amarrotado

receita milagrosa ilegível

os destroços mutilam a consciência

JAMAIS

assistiremos à cabal destruição do vírus

a palavra o gesto a paisagem o homem

tantos vírus ou apenas um

nenhum

[é este o vírus]

CHÁ DE CINZAS

sobre o que sob o néon

sobreveio no escaldante serão

lamento o rodapé da charada

vinho a escorrer nas paredes caiadas

palma contra palma

PALMAS

o avejão baila na rua

com a cabeça na mão

baila bêbado

nem sequer sabe que não existe

[existe portanto]

agora grita assobia geme

STOP

a cicatriz em sangue

num lado da boca

as malvas guardadas

no outro lado da boca

o calor a brasa a chama

convido-vos a beber

o meu chá de cinzas

SILÊNCIO


ENTRELINHAS



(!)


verde

de cair

a boca


(...)


outra

margem


(...)


o leão

indisposto

como tapete

dormente


(...)


a sirene

soa


(...)


os lençóis

no chão


(...)


tarde

o arrepio

a tempo


(...)


a tábua

resinosa

intoxica


(...)


o suor

[água

com sal

mordente]

o licor

sufragado

do corpo


(...)


o cérebro

alcooliza

o humor


(...)


o corpo

sonâmbulo

pisa

a passadeira

de flores

secas


(...)


a esquina

reluz

[ainda é

tempo]

a fome

aperta

os espelhos

movem-se

na sala


(...)


o vício

da ferrugem


(...)


dor nos

membros


(...)


a poesia

(le)prosa

ensombra

o quarto


(...)


o cadeado

esquecido

entre dobras

de papel

a chave

desenhada

no crânio


(...)


elo iludido

sem os

cem vocábulos

do fuzilamento


(...)


dança

a vespa

entre

as capas


(...)


jejuando

o ser

suicida-se

a mastigar


(...)


a floresta

dos sais

negros


(...)


a sirene

soa

novamente


(...)


o vento

maligno


(...)


as bocas

denunciam

tudo


(...)


a valsa

de fogo


(...)


tudo escurece

ao contacto


(...)


a floresta

dos sais

negros

único refúgio


(...)


não tarda

o coração

enegrecer

por completo


(?)



CUBICULUM


“Silos de prosélitos como fruta podre

que eu avisto da minha colina rachada pelo meio.

Desço, plano e pico

voraz,

é o meu farrapo de carne narrativa...”


Paulo da Costa Domingos


“Às vezes, entranhando-me num espelho, consigo dar

nele duas ou três braçadas sucessivas.”


Luís Miguel Nava


persigo a alta onda serpenteada

finto as lâminas recordando Ícaro

enveredo pela espuma decantada

percorrendo toda a casa onde pícaro

objecto procuro enquanto isento

lutando contra paredes que invento


um sismo no corpo, fluido mosaico

esperando que um rosto boquiaberto

saia como vareja vil do estio arcaico

planando a flora do coração em aperto;

o corpo arde por dentro e treme por fora

espera o sopro criador cavalgando na hora


incrédulo peço morosamente a mão

a mão povoada por líquenes cinzentos

que sombrios desafiam o cogumelo são

cujo talo é pétreo pelo som dos ventos

mas oco e frígido e de sangue vazio

escondendo bem fundo o nó bravio


a mão pousada convida os insectos

o desleixo é seu eixo, doce morrer à sede

enquanto a água oculta ditongos secretos

o monstro torna-se escravo; e o sol? vede

como desperta a cor da inaugural mistura

de sonhos e límpido sangue que perdura


impunemente a cortesia para a inimizade

porque no lacre tudo provoca a erosão

e eu peço a pegajosa demora na assiduidade

o refluxo hábil entre o estômago e o coração

para que as imagens elegidas pelo tacto doentio

aflorem selectivamente nos sonhos à beira do rio


embraveço mirando o pescoço cuidado

temendo os cactos letais da face ingrata

foi porque falaste, ó tu com ar de danado

que vestes o luto e enrolas a luz na gravata

ó tu que és sola da noite e tampo do sol

não cantarás inocente no meu secreto atol


onde vislumbrar a estrela cinzelada

nesga de luz a caiar ou morder vocal?

onde achar o filho pródigo da alvorada

quando a memória inspira cuidado tal

que a álea entre o passado e o presente

torna-se casa incendiada pelo poente


os famigerados cadeados riem-se calados

o que sobra? réstia de sangue como lágrima

de monstro marinho para sonhos estereotipados

e o lado sangra o tu real, a cova após a esgrima

o tampo abeira-se em alucinações como simulacro

efígie sublimada sob a língua crua e o paladar acro


palatos confundidos com úmeros, o sono da criança

apressada para o célebre abismo célere e a corrente

enfreia a ânsia atrevida na sintomática esperança;

nascer aleijão com gomos capciosos, dócil doente

é ser laranja azeda num pomar ominado mas vivo

ou vã elite causticando num cerco familiar estivo


terreando sabendo do nó brusco que padece ao frio

longe do ventre tem o vento o ar a água morta

terreando sem que a maré suba com sábio estrio

sem que a longa palma pronuncie a sentença absorta

de modo subtil mas com a força bárbara permitida

exalando um olor lauto no hexágono cerrado da vida


jorra a fonte e eu, só, em plácida noite refugiado

guardo minúsculas pedras frias para um colar

algo para alguém ressuscitar ao manejar o cajado

alguém ausente, perdido no meu corpo a chorar;

o abrigo é único regozijo fiel à traição viável

e nesse antro, o nada sentido é o tudo inefável


trauteio a culpa na viela arrojada em pleno olhar

minha fracção vítrea resplandece inquieta e voraz

húmida sobre a imagem, atenta no insólito vibrar;

a luz sob inflexões aquosas e depois o soar mor traz

sílabas cheias intactas por desbravar e enaltecer

até ao clarão negro até ao branco atónito até morrer


entre rostos a distância do enigma em pensamento

a corola ausente e um punhado de pólen surripiado

galhos em vez de dedos e uma fogueira arde, o vento

ousa desvirginar os negros cabelos da mulher ao lado

o paul escuro seca perante as montanhas do alvor

até cobiçar a água dos vis olhos improfícuos da dor


a brasa acesa do infortúnio, intermitente, o sono

ambígua vontade sobre o côncavo lacre inseminado

longa vai a tarde nesta praia de areia sem patrono

onde recito a exígua culpa soletrando-a queimado

os lábios a arder e a estrela comovendo-se solidária

o probo queimor torna cativa a condecorada área


ardor no cubículo amestrado em tempo de guerra

sei do campo de flores regado pelo fluxo enjeitado

traduzo-o em movimento lendo a boca de terra

protegida por árvores guerreiras cumprindo o voto;

por não caber na forma do outro que sempre analiso

não confio no nome escrito na doce neve que piso


o nome sujo por simpatia esbelta, erro do costume

platinar o medo amolecendo a ardósia do pericárdio

para ter sede no vale irrigado pelo osmótico lume

da paixão de dois gumes aquando o beijo precário

e o nicho ofegante da enigmática sombra bendita

não supera o vulto sublime que sofrendo crepita


uma concisa nota menor no dorso e escuto

o imaculado ditongo onde a obnóxia lava

assume a contrapartida inibitória do arguto

manancial de retrocessos nos quais a clava

perpassa domínios intrínsecos à abjecta falácia

minguada no sorver aleivoso, na dual eficácia


deteriorando o difuso tapete, o chão já sublimado

a súplica racha quando se dá a desova de lampreias

e a mórbida elipse da denúncia aceite como achado

arrecada o livre suco desamparado de efémeras veias;

o semblante serena com o exotismo megalomaníaco

enquanto se limpa parte do cinismo hipocondríaco


meditabundo na dor, envolto na cíclica nuvem

claustro perene intacto e nem sequer uma fracção

de incenso ardida remando contra o que se tem

proferindo à terra o monólogo da reivindicação

rei sendo escravo de si próprio quando chora

homem de não saber a palavra que só ancora


um naco da árvore, sóbria dissolução da azáfama

ravina escarpada, serosa do eminente arquitrave

e largando de antemão as redes na água da chama

uno as mãos imbuídas de nácar trazido por uma ave

permitindo o silencioso denegrir da grafite herdada

e beijo, prudentemente, a extensa fronte inflamada


outra foz, labaredas no vazio sepulcral

cinzas confundem o autêntico paladar

nem prato nem talher, o axioma do mal

apenas um púlpito antecedendo o cessar

a reunião de elementos como certo mando

dum líder só, entre muitos de si, chamando


iões amargos na boca alugada, o de dentro brada

não se acende, a sumptuosa amada não se evapora

e eu, bicho entre bichos, aflito por ser espúrio nada

nego a própria negação e a locução é grito no agora:

a única realidade neste desperdício de terra e fantasia

o único pão que corta como espada ao olhar a fasquia


ouvi dizer que a fera soltou-se e não encontra o dono

derramado nos lençóis tento falecer de novo na noite

a fera espera no outro lado para atacar-me no sono

dançando sedutora ao som metálico do aéreo açoite

o pautado corpo fulgura num assaz faiscar errático

longe da fera comum que abalroa o mundo prático


enfrento ansioso a lua manchada de urina celestial

sintonizo a maré nocturna, cometas como peixes

ajoelho-me e relembro a água salgada e a areia dual

arqueio-me abraçando o cadáver suspenso os feixes

de energia no mínimo e a secura invade a garganta

o negror ostenta a luz aspergida que dócil me levanta


rara, a erva verde na cal da boca e tu a um passo

não falo de amor, falo de corpos em combustão

das cartas amo mais as cinzas e o terno embaraço

ridículos são os néscios madrugadores da paixão;

prefiro a alvorada como temporário leito de morte

e a fusão de lágrimas como ouro matinal da corte


caindo na imensidão dos múltiplos ícones flagrantes

traio-me impaciente observando a compulsividade

dos elementos cúmplices na entropia, mui cintilantes

convexos adversos desconexos presos à afinidade

o vácuo como premissa da frenética criatura vassala

alfa e ómega no cerne do lume, ínfimo clarão da fala


ter o túmulo como cobertor, a vanglória de poder

cheirar os mortos, dádiva ao conhecê-los na esculca

após a viragem ou conversão química, puro morrer;

o beijo fica deixando-se ir, antro respiratório da culpa

dissolvida no rubro charco das tácitas diatomáceas

tudo escrito na tábua, coeso turbilhão de hemáceas


necessito de chuva nestas palavras e o céu azul

nostalgia indigente, voz no vazio vácuo musical

era pressuposto entrar o coro frenesim do paul

acompanhado pela cavernosa guitarra do vitral;

os amantes suicidam-se e cai lento o áqueo pano

escusados são os berbicachos ao redor do engano


uivo à claridade duma fictícia lua ainda alucinada

não espero nada em troca de silvos desenxabidos

clamo e nada mais a morrer nos braços da enseada

agonizo perante o arder do enxofre de cabelos tidos

como fósforos a acender na fiel madrugada algente

gaguejar perante a estátua falante é ser inclemente


prevejo a tertúlia cerebral e trincolejo sarcasticamente

medusas dançam à volta e largo as rédeas já cobras

espreito pelo orifício esgravatado quando só, doente

não arrecado estilhaços de saliva nem ásperas sobras

escondo-me aquando os bocejos, almofado os ossos

e faço parémias crivando punhados de terra de Cnossos


o cão e a pulga de O’Neill acordam-me, o orvalho pende

colchão frio: ardósia da noite de improvisações canhestras

arrepio-me por não saber os truques do desabrido duende

e atordoado pelo assobio da flecha enxoto moscas destras;

pecados geram o tumulto que forma o diamante a entrever

à janela da palavra-flor escrita no ventre luzidio da mulher


pressinto a gula subindo a escada até ao sótão dos gritos

rei sem reino num mundo limitado mas infinito colossal

os juízos enferrujados recordam o sangue insidioso de mitos

a loucura eremita de novecentos, a mestria a fugir do sal;

debruço-me e cheiro o pó até se tornar licor para o beber

estendo o sorriso e recito antiquados sonetos ao entardecer


vagueio com o purpúreo manto apaziguado pelo uno coalho

a poesia povoa a pele como escama despertando os répteis

danço asfixiado no antro cheirando o que morre no soalho;

durante o sono os avisos dos profetas servidos por azeméis

estremeço só de saber a errância maligna da vã carnificina

talvez subestime o olor das noites com lua purpurina


ergo a taça sabendo que dela não beberei e lamento

o valor das balas fundidas, sangue metálico, ardor

de vítimas por todo o mundo a curar num tempo

purpúreo tempo das imaculadas feridas sem dor;

receando a ruína da alçada repito as palavras ardidas

crendo na sombra omnipresente de peles sofridas


em surdina devolvo o arrebatado divagar

a lembrança como precoce estímulo tardio

mães choram no cais com derradeiro vagar

e os gestos do poeta no crepúsculo sombrio

salgam as lágrimas da rota com flores estiadas

álgido é o leito amargurado de glosas recitadas


vou deixar gerânios sobre a mesa, depor a casta mão

que afaga estes versos banidos do solo, estes versos

manchados de fúria desavinda tão real como a canção

que chega aos ouvidos de alguém a errar nos reversos

da nervura folicular colhida a frio no átrio da alegoria

vigiado pelo guardião que vive a noite temendo o dia