NAVA ou O Sonâmbulo do Ontosurreal

[E A M edições, 2010]

In Memoriam LMN

p r ó l o g o



venho deixar-vos aos ouvidos estes meus joelhos de água

que tão de pânico

explodem para as ruas

cristais enriquecidos funcionando novembro nas mãos

e os astros continuamente órfãos


maravilham-se os muros

floresce doença ácida nos lábios


[a linguagem equívoca]


algum menino-crime maravilhado no carrossel

todo ele feito da luz rebentada de espelhos

efemeridade dos prismas rápidos da água


o rapaz chora os nós da erosão nas imediações foliculares

chuta a pedra e cospe para o chão

esperma da língua que evangelizará

os campos depois acorda com os punhos atados

às coxas duma rapariga


junto ao que o crepúsculo um dia transformará em tanque

pela inquinação das noites

assisto à nudez crescida do leite

atolado no sangue precário é terra

amarrotado incêndio-leite doutro corpo

mínimo poço de relâmpagos que contagia os olhos


as imagens regressam

amaciam irredutivelmente as vísceras

e há sempre alguém a coleccionar

miniaturas verdes entre o sangue


são manhãs avolumadas

árdua página

e por dentro

ondas eclodidas do leite desamparado

um poço a guardar na água podre as mãos

embrulhadas com o amor envelhecido das folhas

onde o outono permanece cárneo


intestinos iluminam-se

: o poema caído

[leão maduro ensonado]

ventre onde os últimos cães do arco-íris

estilhaçam de contemplação

reluzindo a fruta

encarcerada na brancura funda do arbusto

: o lenço caído

[touro hiperbólico interiorizado]

nua

cruelmente nua

a paisagem que os tigres abandonaram


uma imagem estancada na manhã

dita impossível

deflagra câmaras no falar

e os fios do poema apodrecem um a um


a revoada de mãos no meu corpo morto

ressuscitado agora

trovoadas de ausência imprecisa

veias amarradas ao vermelho


a alba precipita-se mordendo redonda a página

com a revisão dos incêndios

outrora confundidos nos cabelos dos jovens astros


de longe

essa revoada de luz ateia-me

cíclica e elíptica é-me dada

como abóbada virginal


venho resgatar os raios solares escondidos na vossa pele

perspectiva em tensão alinhavada na nudez

irritar-vos os rins na descarga volúvel

até abrirdes os poros ao pormenor branco

janelas que aceleram despenteadas antigas ecografias

ondas cárneas do poema enquanto animal


venho deixar-vos à boca raízes incarnadas

focos da folhagem permanecida púbere

bebei nelas

a confluência atroz do silêncio






o e s p e l h o d a m e m ó r i a



tumultuosamente

ouço a árvore na mesa

sou eu e a minha linguagem

uma língua com as suas zonas negras

onde as entranhas ascendem


sonho raízes à memória das papilas

folhagem interna a ser penetrada

minha seiva

: visões em ebulição

assim prisioneiro dum contrafeito horizonte

imiscuindo-me na vara do rosto

vergada convulsivamente


abri-lhe infecção

sublevação das fezes no fascínio

ofícios mil rente à matéria

fragmentos paisagísticos ou trabalhados calhaus

sou um lenço negro embaraçado no húmus

os joelhos cobertos

: epifania e assombro no matadouro

projectada concha do mal

do muro que de humano cobra dedos travessia transversal

ombros sobredentro costas

um mergulhar vermelho

ante o périplo preto e branco da face


[a febre seca no peitoril]


rendo-me à ficção do espelho

cabe o mar inaudito na memória

sinto mais podre o coração estilhaço-me

digo-me senão à conta da nudez dos

mais íntimos subúrbios


quisera eu descrever a fundura dos poços no ruído

comparando-a à profundidade das minhas vísceras

perseguisse eu as interrupções do pulso urbano

contrastando-as com os espaçamentos do sangue


avanço ignoro o labirinto

aliás

nem o concebo

entrelinhas no caminho são

furos extraviados da consciência

: o rasgão

poema sublinhado a todo o comprimento


temerei a ventania em que me escrevo

[porta subentendida]

reviverei assaltando a desordem

uma entropia no encalço do riso

e das falanges


ao mais pequeno arrepio na nuca

as trevas recuam

alerta necessário quando o poema-carne e a porta-ciência

digladiam entre si


baús

[o sopro]

cada pulmão uma pedreira

difícil atar-lhes oxigénio

os baús

a grande ressaca


de viagem em viagem a minha fome

: poro a poro

a colheita dos relâmpagos


tudo persiste-me nos sentidos

tacteiam a ondulação minuto a minuto

alçam espíritos na paisagem

propiciam a cópula das pontes


a um tempo a carne do texto

prossigo apanhando-lhe as folhas

as que azedam estranguladas nas brechas do cérebro


olhar cinema mudo personagens-luz num vagão

principal entre quarenta o valete de ouros


sonhei como fazer com toda a saliva possível

uma casa

lamber telha a telha

das entranhas construí-la incessantemente

a casa


perdi-me a colher num patamar

os frutos crescidos pela azia solar


avariei irremediavelmente mecanismos sagrados

sou uma clarabóia em desordem


regresso para arejar-vos a memória

fecundar-vos eu com a minha se preciso

não percebo muito bem

nem aspiro perceber


extravio-me na praia da infância

releio tremores nas ondas

um filme visionado

relâmpago a relâmpago


é bom deambular por dentro da imagem

chegar a perscrutar-lhe os passos

[paisagem legítima]

moldar em transe cristas e vilosidades na gravura


baptizo o horizonte pancreático

com este cuspo que

ainda sentindo-o meu

é-me estranho sim

está no cuspir certeiramente

o esculpir abstracto da imagem

seguindo-se um incerto escorrer

[um abreviar do coração]

no espectador


abro a respiração aos que têm as mãos esfoladas

interpelo-lhes sorrisos

o simples fundo dos poros


encapelada memória adiantar-lhe uma mãe?

estilhaços nada mais

embora se salve o bruxedo que há no arco dos olhos

porque a memória arqueia em espelho

com o ouvido a cronometrar dinamite tensa nos rins

: sombra ou manhã


[uma consciência replicada]


as águas rebentam a crista da infância

banham de nevoeiro as pedreiras

um esverdeado campo bilioso divide-se

pelo impuro atravessar dos dedos


muito difícil lavrar a memória

é preciso cuidar dos poços

sendo irreparável o encosto à solidão

quem nela se senta entrega-se à humidade

olhando retratos apedrejados nos degraus

à espera de recuperar um rastro

até ao intestino depois são os ossos

uma névoa muito verde


encontro na inércia o quarto

onde o mais fértil ruído tranquiliza a pele e

não há senão o descanso

pesada movimentação tectónica

ou um querer desovar no outro lado

as vagas do espelho


: desertar






e n t r e o c o r a ç ã o e a p e l e



regresso à carne viva

multiplicada no crepúsculo

falemos então das tempestades

da casa debaixo da língua

íngreme falésia do fogo


[passos]


sabor à boca recorro à memória

poder-me-ão diagnosticar solidão

aguardo ainda a janela onde


o sol é um cancro enorme que aleija de tão diáfano

assim ao que não posso rogo ao voo da pele


formasse eu um outro coração que fosse

clarão dos ombros no itinerário

uma coroa rasgada ao horizonte


rebentação da mesmíssima pele

alcantilado idioma cardíaco

e as mãos livres para destrinçarem as ondas


falo pelo desconforto

são fortíssimas as cumplicidades

conjugadas com a terra

mãe dos fungos albergados nos joelhos


o basalto desembaraça-se-me do peito

quer beber céu com a natureza

espalha negrumes no cego coser das ervas

assoa os esporos circundantes

lava-se depois no silêncio

que alma? que espírito? que corpo?


assombros num pobre sangue desfraldado

os lençóis exaltados

sobra sempre pele e mais pele

uma colher para remexer

resíduos no coração


a saliva carrega sulcos

vai subterrânea meter-se com os brônquios


problema de amar à tona

espectro inquietante dos destroços

pelo que as mãos lograriam xistos

se escavassem rente às gengivas

dalguém insidioso defronte

da palavra-prédio


[passos]


desde o berço que

a estranha e violenta intensidade dos órgãos

desmente clarividência às imagens






h á q u e m o s t r a r a s v í s c e r a s



[projectores]

encharcado

vinho de água-sangue

até à cintura

declina-me

a asfixia amante


isto ou o este

poisando espesso


[fotografia urdida

pela ligadura

oxidada]


: o lance das entranhas


permutar de roldão

frequências ou cristas

vitrinas de deus

tabuleiros magnéticos

a carne estrebucha

estrebucha excitada


[desnível da saliva]


vómito urgente

uma tão bomba-sol

supõe quente

o pénis

azul vertiginoso

sujo nas palavras

o céu incide

se o sol

se põe entre

protuberâncias caligráficas

o esperma rebenta-me

no texto fálico

[um abarrotar ocre]

leio pálpebras nos joelhos

um xadrez derivativo

por baixo de mãos

de dedos

ossos amontoados

selva orgânica à mercê de

escavações cíclicas

[abismos à lupa]

falésias torcidas no muco

despenhadeiros intestinais


roçam-se músculos

mergulham agredidos


: a feira ida

dos caprichos


vidros uvuliformes

ressurgem na pele

o extremo prenúncio

do mar

os olhos agasalham

como tantas quantas persianas

a entreolharem-se

[espinha]

fervura endémica

mucosas-refinarias

a mesma nervura enferma

da cabotagem






u m p a n o i m e r s o n a a g o n i a



afastem de mim o ouro azedo das árvores

estou farto

este cão negro persegue-me

e gastei toda a clorofila em sonhos de segunda categoria


[corvos em debandada]


ouço agora a purulência de intempéries constrangidas

os cotovelos livres na angústia

o mamilo de ferro na tábua

por passatempo esvaziar as pombas vezes sem conta

recortar a cidade o céu o mundo


o amor é uma transferência invectivada

mesmo que tardia a esferográfica sabe disso lesse

o condenado

cristalizando-se na redacção

onde aflorar ou desnudar é estranheza


a substância que delego em mim

corrosiva a fases de beber fisionomias

sem a nitidez do sexo

difere no tempo pelo grau de apodrecimento


o esqueleto apodera-se do absurdo

como de carne se tratasse é a fome

dum espírito descarnado


: limpo os ossos

sopro as vértebras fulgurantes no domínio soterrado


a pele empedrada exerce impensável bandeira no que digo

bêbado de esquecimento

um deserto solitário mas não diminuído

antes um terraço

coroa da penetração dos instantes neste meu sangue novo

joelhos de água nos vossos ouvidos


simule ou não o céu com ruínas das abóbadas coronárias

medindo as correias

e a publicidade cega doutros tecidos

há um cofre e um poço um poço metido dentro dum cofre

em vez dum cofre mergulhado no poço há raízes

escuridão húmida onde medram as entranhas

noutra dimensão


homogeneizar luz é veneno

anula círculos desavindos por motor natural da porosidade

ruídos da linha férrea nos diálogos, desprende

inversões que levam a um aposentamento progressivo


antes o rugido longínquo das trevas que é meu pai

expandir os sentidos para além da estratificação dos pesadelos

ir à cópula do inimaginável ou fingir sentir o advir do devir

expressão da carne mastigada pelos vermes

auspiciosos inquilinos do matadouro


escrevo esperando a reverberação óssea das metáforas

a serem excretadas pela enigmática abstracção

escrevo como se recuperasse eu o vermelho do sangue

como se espumejassem renascidas as vísceras em palpitação

escrevo espacejando os órgãos transmutados

contando com cicatrizes na via-láctea

cinzas de folhas assassinadas


[âmago zoológico]


concreto o fosso intransponível da linguagem

contra o tronco ideológico do polvo

porque a alegoria é das feras despidas de sua verdadeira carne

esfomeadas por remendarem-se a si mesmas

com carnes de herbívoros e moluscos


procuro um hiato onde caiba sem adjectivos

onde possa alinhar minhas raízes vertebrais

configurar consciência no húmus que sou

com toda a aridez possível

e agrafos na língua


por vezes parece que tenho banhistas no palato

apesar da secura e da vulnerabilidade com que falo

faz-me lembrar as praias onde medi o tesão das ondas

esquecendo-me da vegetação do texto


mas também a areia apodrece como as palavras

à luz da candeia pela qual dançam as aparências


: o túmulo é um quarto para roubar ar

escasso

uma passagem onde se escorraça o passado


[retracção carburante]


aqui os espelhos são insuportáveis

impregnam a identidade

compelem à repulsa perante a duplicidade da plataforma

porque no rebordo do principal mecanismo

rir é doença


só os túneis resistem à realidade frigorífica

neles sacudo as membranas ilegíveis

filio-me ao obscurantismo doloroso da escrita


[borrasca]


vejo com as mucosas um jeito intransmissível

de regar o torso dos contextos o muco

traz luz quando pinga no que

nem ouso tocar


apesar de me assoar a um pano que tresanda a agonia

peço-vos

não tenham medo da carne musical

toda a palavra é

uma glândula na iminência dos sentidos






m a n h ã s a n f r a c t u o s a s