Artigo 112.º – Direitos da vítima antes da concessão da autorização de residência  

1 — Antes da concessão de autorização de residência, é assegurada à pessoa sinalizada ou identificada como vítima de tráfico de pessoas ou de ação de auxílio à imigração ilegal, que não disponha de recursos suficientes, a sua subsistência e o acesso a tratamento médico urgente e adequado.

2 — Para efeitos do disposto no número anterior são tidas em consideração as necessidades específicas das pessoas mais vulneráveis, incluindo o recurso, se necessário, a assistência psicológica.

3 — É igualmente garantida a segurança e proteção da pessoa referida no n.º 1.

4 — Sempre que necessário, é prestada à pessoa referida no n.º 1 assistência de tradução e interpretação, bem como proteção jurídica nos termos da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, não sendo aplicável o disposto no n.º 2 do seu artigo 7.º


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Comentários 


1 Quando se trata da questão dos direitos das vítimas de crimes ligados ao tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal, devemos ter em conta o disposto no art. 2.º, al. b), do protocolo adicional à convenção da Nações Unidas contra a criminalidade organizada transnacional, relativo à prevenção, à repressão e à punição do tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, nos termos da qual, entre os fins do protocolo, se inclui o de “proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos”. Por isso prevê o art. 7.º do mesmo protocolo a possibilidade de um estatuto próprio para pessoas nessa situação.

Daí decorre que um regime específico para vítimas dos referidos crimes poderia ser estabelecido face ao mencionado protocolo e independentemente da questão da colaboração das vítimas com as autoridades nacionais. Muito mais se justifica um regime favorável quando se perspective tal colaboração, como acontece à luz deste artigo, porquanto o regime aqui previsto se aplica às pessoas que aguardam a atribuição do título de residência, ao abrigo do art. 109.º, sendo ainda aplicável, por força do disposto no n.º 3 do artigo anterior, a quem se encontre no período de reflexão.

O auxílio refere-se desde logo, e como não podia deixar de ser, às necessidades elementares de subsistência e tratamento médico, pressupondo que a pessoa dele necessite, por carência de meios económicos.


2 Há no entanto que ter em conta a especial vulnerabilidade das vítimas destes crimes, em geral numa situação de dependência em relação aos autores dos mencionados crimes, particularmente do de tráfico de pessoas. Convém desde já lembrar os termos em que o art. 160.º do Código Penal (redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) prevê e pune o mencionado crime: 

1 - Quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos: a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave; b) Através de ardil ou manobra fraudulenta; c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração sexual, exploração do trabalho extracção de órgãos.

3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.

4 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

5 - Quem, tendo tido conhecimento da prática de crime previsto nos n.ºs 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

6 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.ºs 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Quer pelas modalidades de acção, quer pelas finalidades da prática do crime, percebe-se claramente que não raras vezes as suas vítimas carecem, não apenas de cuidados de subsistência e de saúde, mas de outro tipo de assistência, designadamente psicológica.


3 A mesma questão coloca-se em relação à segurança e protecção. As vítimas deste tipo de crimes defrontam-se com estruturas do crime organizado, muitas vezes violento, pelo que uma acção de colaboração e nomeadamente denúncia, representa riscos para a integridade física ou mesmo a vida, tanto dos próprios como eventualmente de familiares, mesmo nos países de origem.

Esta é aliás a razão pela qual a lei dá um prazo de reflexão as vítimas, sendo as próprias que estão em condições de fazer uma avaliação dos riscos.

Ainda assim, os Estados não podem demitir-se da sua responsabilidade nesta matéria. Com efeito, incumbe ao Estado garantir protecção a todos os cidadãos, nacionais ou estrangeiros, que se encontrem no seu território. E a necessidade de protecção é medida em função dos riscos, riscos naturalmente acrescidos relativamente às vítimas desses crimes.

Daí a previsão específica, no n.º 3, da garantia de segurança e protecção, para essas pessoas. 


4 A assistência de tradução e interpretação para quem delas necessite, é condição indispensável para que se possam cumprir as obrigações para com as vítimas, designadamente o dever de informação previsto no art. 111.º  A assistência de intérprete percorre aliás praticamente todo o regime de estrangeiros, designadamente em relação a actos da administração que tenham como consequência a imposição de ónus, limitação ou privação de direitos. Como acontece, por exemplo, em relação ao estrangeiro não admitido, que tem de beneficiar de intérprete, conforme previsto no n.º 1 do art. 40.º

O art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, atribui direito a protecção jurídica, que reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário, aos cidadãos nacionais e da União Europeia, bem como aos estrangeiros e apátridas com título de residência válido num Estado membro da União Europeia, que demonstrem estar em situação de insuficiência económica.

O mesmo direito é reconhecido, pelo n.º 2 do mesmo artigo, a estrangeiros sem título de residência válido, na condição de reciprocidade, ou seja, na medida em que ele seja atribuído aos portugueses pelas leis dos respectivos países.

A lei prevê, no art. 40.º, n.º 3, a possibilidade de celebração de protocolo entre o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Justiça e Ordem dos Advogados para assistência jurídica a estrangeiros não admitidos. Nada impede, antes tudo aconselha, que a realização de tais protocolos abranja a generalidade das questões relativas a estrangeiros e designadamente para os problemas a que se refere este artigo. 


Jurisprudência   


1 - A autorização de residência provisória a que se refere o n.º 1 da Lei n.º 38/80, de 1 de Agosto, é uma autorização de residência válida.

2 - O requerente que à data do despacho que não lhe admitiu o pedido de asilo, tinha já um ano de residência em Portugal, preenche o requisito do n.º 1 do art. 1.º do DL n.º 391/88, gozando do direito à protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário.

3 - Mesmo que assim se não entendesse, à mesma conclusão se chegaria considerando a existência de uma lacuna na lei ordinária quanta ao direito à protecção jurídica dos estrangeiros com autorização provisória de residência por terem pendente processo de pedido de asilo, lacuna a integrar por analogia com o regime adoptado para as situações já consolidadas.

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14-04-94 - Processo n.º 032935



1 - A protecção jurídica para estrangeiros não residentes em Portugal só é reconhecida na medida em que ela seja atribuída aos portugueses pelas leis dos respectivos Estados, em regime de reciprocidade.

2 - Se o requerente da assistência judiciária não provou, embora para tanto tivesse sido convidado pelo juiz, que a sua lei nacional também dá protecção jurídica aos portugueses não residentes, deve então o tribunal procurar oficiosamente obter o conhecimento desse direito estrangeiro.

3 - Na impossibilidade de tal averiguação pelo tribunal português, o pedido de apoio deverá ser indeferido.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto  de 15-12-98 - Processo n.º 9820272 


Regulamentação


I DECRETO REGULAMENTAR N.º 84/2007, de 5 de novembro (capítulo IV, autorização de residência e cartão azul UE) I DECRETO-LEI N.º 368/2007, de 5 de novembro – Define o regime especial de concessão de autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas a que se referem os n.ºs 4 e 5 do artigo 109.º e o n.º 2 do artigo 111.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho I LEI N.º 130/2015, de 4 de setembro – Procede à vigésima terceira alteração ao Código de Processo Penal e aprova o Estatuto da Vítima I DECRETO-LEI N.º 26/2021, de 31 de março Procede à criação da Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário [o Plano Nacional de Alojamento abrange, entre outras, as seguintes situações de risco e ou emergência social: fluxos migratórios não programados; pessoas vítimas de tráfico de seres humanos; pessoas ao abrigo da proteção internacional, no âmbito das competências das entidades que compõem a formação restrita do Grupo Operativo Único, nos termos estabelecidos pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2020, de 23 de novembro; funcionários e agentes do Estado com necessidades de fixação local, quando temporária e indispensável ao interesse público]. I PORTARIA N.º 120/2021 , de 8 de junho - Define o modelo de funcionamento e de gestão da Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário, criada ao abrigo do Decreto-Lei n.º 26/2021, de 31 de março.


Origem do texto   


Direito comunitário                               

Reproduz, o disposto no artigo 7.º da Directiva n.º 2004/81/CE, do Conselho, de 29 de Abril, relativa ao título de residência concedido aos nacionais de países terceiros que sejam vítimas do tráfico de seres humanos ou objecto de uma acção de auxílio à imigração ilegal e que cooperem com as autoridades competentes.



Direito nacional                                    

A redacção da norma foi introduzida no regime jurídico de estrangeiros pelo actual diploma legal.

Nota sobre a origem do direito no artigo 109.º


Procedimento legislativo


Proposta de Lei 93/X do Governo (2006)   

Artigo 112.º - Direitos da vítima antes da concessão da autorização de residência

1 - Antes da concessão de autorização de residência, é assegurada à pessoa sinalizada ou identificada como vítima de tráfico de pessoas ou de acção de auxílio à imigração ilegal, que não disponha de recursos suficientes, a sua subsistência e o acesso a tratamento médico urgente e adequado.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior são tidas em consideração as necessidades específicas das pessoas mais vulneráveis, incluindo o recurso, se necessário, a assistência psicológica.

3 - É igualmente garantida a segurança e protecção da pessoa referida no n.º 1.

4 - Sempre que necessário, é prestada à pessoa referida no n.º 1 assistência de tradução e interpretação, bem como assistência jurídica, nos termos da lei.

Discussão e votação indiciária: artigo 112.º da proposta de lei n.º 93/X — aprovado por unanimidade, registando-se a ausência de Os Verdes.




Proposta de Lei 50/XII do Governo (Lei n.º 29/2012)

Artigo 112.º – [...]

1 - [...].

2 - [...] .

3 - [...].

4 - Sempre que necessário, é prestada à pessoa referida no n.º 1 assistência de tradução e interpretação, bem como proteção jurídica nos termos da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, não sendo aplicável o disposto no n.º 2 do seu artigo 7.º

Discussão e votação na especialidade: artigo 112.º da Lei n.º 23/2007 – Proposta de alteração do n.º 4 do artigo 112.º, da PPL – aprovada por unanimidade. Redação original da Lei n.º 23/2007:     

Artigo 112.º - Direitos da vítima antes da concessão da autorização de residência

1 - Antes da concessão de autorização de residência, é assegurada à pessoa sinalizada ou identificada como vítima de tráfico de pessoas ou de acção de auxílio à imigração ilegal, que não disponha de recursos suficientes, a sua subsistência e o acesso a tratamento médico urgente e adequado.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior são tidas em consideração as necessidades específicas das pessoas mais vulneráveis, incluindo o recurso, se necessário, a assistência psicológica.

3 - É igualmente garantida a segurança e protecção da pessoa referida no n.º 1.

4 - Sempre que necessário, é prestada à pessoa referida no n.º 1 assistência de tradução e interpretação, bem como assistência jurídica, nos termos da lei.