Artigo 183.º – Auxílio à imigração ilegal

1 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até três anos.

2 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

3 — Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão estrangeiro em condições desumanas ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos.

4 — A tentativa é punível.

5 — As penas aplicáveis às entidades referidas no n.º 1 do artigo 182.º são as de multa, cujos limites mínimo e máximo são elevados ao dobro, ou de interdição do exercício da atividade de um a cinco anos.


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Comentários


1 — Os n.ºs 1, 2 e 4 correspondem, no essencial, aos n.ºs 1, 2 e 3 do art. 134.º-A do DL n.º 244/98, de 8 de Agosto, introduzido pelo DL n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro.

A verificação da prática do crime de auxílio à imigração ilegal carece da demonstração de requisitos subjectivos e objectivos. A acção material criminosa reside no "favorecimento" e na "facilitação". O modo da acção não é definido: qualquer um serve ("por qualquer forma": n.ºs 1 e 2; podemos incluir aqui, por exemplo, obtenção de documento fraudulento; protecção ao esconderijo ou acolhimento em casa do agente, etc.). O objecto da acção é a "entrada", o "trânsito" (n.º 1) e a "permanência" (n.º 2) ilegais, consoante os casos, noções cuja verificação casuística concreta há-de buscar-se no disposto no art. 181.º O sujeito activo é qualquer pessoa. O sujeito passivo é um cidadão estrangeiro. O elemento subjectivo consiste na consciência de prestar ilicitamente ajuda a cidadão estrangeiro entrar, permanecer e transitar ilegalmente no nosso país. Para a prática do crime não é essencial a obtenção de um ganho ou benefício económico, embora como resulta do n.º 2, também possa concorrer uma intenção lucrativa, que funcionará como elemento subjectivo que agrava a moldura penal abstracta. Para o ilícito contemplado no n.º 3, o modo da acção pode caracterizar-se por transporte e manutenção do cidadão em condições desumanas ou degradantes.

Os elementos do tipo de algum modo apresentam-se muito próximos das hipóteses contempladas nos arts. 1.º e 2.º da Directiva 2002/90/CE [referida na] anotação 2 ao art. 109.º, para cujo local aqui remetemos.

O n.º 2 do art. 1.º da referida Directiva permite que o Estado membro possa não "impor sanções" (portanto, despenalizar/isentar de pena) a quem pela prática do ilícito da al. a) do n.º 1 (correspondente ao n.º 1 do presente artigo) tiver agido com a intenção de prestar assistência humanitária à pessoa em questão. Teria ficado bem ao legislador introduzir na presente lei uma expressa disposição idêntica, atendendo à nobreza do fim da acção. Em todo o caso, um dos propósitos da Directiva ínsitos nessa norma é o de evitar que alguém deixe de prestar auxílio com vista à obtenção de asilo ou à protecção temporária de outrem com receio de ser incriminado pela prática de crime de auxílio à imigração ilegal. Ora, atendendo ao enquadramento desses casos de direito humanitário no nosso ordenamento jurídico, quem tiver praticado os factos previstos no presente artigo com a intenção de auxílio ao asilo ou à protecção humanitária estará fora do âmbito subjectivo da sua previsão por falta dos respectivos requisitos.


2 — O n.º 1 apresenta em relação ao n.º 2 duas diferenças de vulto. Uma reside no facto de no primeiro caso o acto de favorecimento ou facilitação visar somente a entrada ou o trânsito ilegais, enquanto no segundo, também se incluir a permanência ilegal. Outra consiste na circunstância de na primeira hipótese, ao preenchimento do ilícito ser indiferente a intenção do agente, desde que não tenha por objectivo a obtenção de lucro, enquanto na segunda a "intenção lucrativa" é elemento determinante do tipo, razão pela qual os limites mínimo e máximo da moldura penal abstracta são agravados no n.º 2, em relação ao n.º 1. Nota SEF: Na sua redação inicial, anterior à Lei n.º 29/2012, o n.º 2 deste artigo versava: "Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos."

O n.º 3, por seu turno, apresenta uma variação relativamente ao n.º 2, em razão da especial condição em que o auxiliado for tratado pelo agente autor do crime. Embora os elementos do tipo assentem na mesmafati-specie legal ("Se os factos forem praticados..."), introduzem-se nele novos elementos concernentes ao modo desumano ou degradante como o cidadão estrangeiro é tratado durante o transporte ou no sítio onde este esteja colocado. Em tais circunstâncias, se o auxílio à imigração for prestado de forma tal que represente um atentado à dignidade da pessoa humana, a moldura penal é agravada por se considerar ser elevada a ilicitude de tal conduta. De dois a oito anos será ainda a pena caso o cidadão estrangeiro se encontre ou tenha sido transportado de modo a pôr em perigo a sua vida (basta a actividade perigosa; não se exige o resultado) ou a causar-lhe efectivamente a morte ou a ofender gravemente a integridade física (é essencial a produção de um resultado danoso).


3 — A tentativa é punível (n.º 4). Significa que não deixa de ser punido o agente criminoso que pratica actos de execução do crime, mesmo que este não chegue a consumar-se (art. 22.º do CP).


4 — As penas de prisão prescritas para o agente singular nos n.ºs 1 a 3 não podem ser aplicadas às entidades colectivas referidas no n.º 1 do art. 182.º, como é compreensível. Por isso, estas sofrerão somente penas de multa ou de interdição do exercício da actividade durante um a cinco anos no caso das entidades referidas no art. 182.º, n.º 1 (n.º 5). Se forem aplicadas penas de multa, os respectivos limites mínimo determinados no art. 47.º, n.º 1, do CP (10 dias) e máximo (360) são elevados ao dobro. É o que resulta do n.º 5 do preceito.

A escolha da pena e a determinação da respectiva medida far-se-ão dentro dos critérios estabelecidos nos arts. 70.º e 71.º do CP. Curioso é notar, entretanto, que, enquanto o n.º 3 fixa uma pena de prisão de dois a oito anos sempre que o acto praticado colocar em condições desumanas ou degradantes, com perigo para a vida, com ofensa grave à integridade física ou causando a morte ao cidadão estrangeiro, ao passo que o art. 3.º da Directiva referida no n.º 1, para idênticas situações, aponta uma pena não inferior a oito anos de prisão efectiva.

No caso da "interdição do exercício da actividade", ela não se pode dizer automática, mas haverá de decorrer dos elementos de prova obtidos sobre o facto praticado e sobre a personalidade do agente e, outrossim, sobre o fundado receio de que possa vir a praticar outros crimes da mesma espécie (cfr. art 100.º, n.º 1, do CP).

O período de interdição conta-se desde o trânsito em julgado da decisão.


5 — Para além de prevenir e reprimir os crimes de auxílio à imigração, o preceito também está predestinado a servir de travão ao crime de tráfico de pessoas, dada a conexão parcial dos seus elementos. É verdade que o crime de tráfico de seres humanos não está fatal e necessariamente relacionado com o crime de auxílio. Isto é, não depende de favorecimento e de facilitação à entrada de estrangeiros ilegais, pois que até ocorre com cidadãos nacionais, com outros residentes legais e até com visitantes de outras nacionalidades. Não podemos, contudo, esquecer que, não raras vezes, as pessoas vítimas deste auxílio (em inglês, "Human smuggling") acabam por se tornar concomitantemente vítimas do tráfico de seres humanos, para os mais diversos fins: exploração sexual de mulheres, trabalho e serviços forçados, pornografia infantil e pedofilia, etc, tudo isto em variadíssimas situações de fraude, servidão involuntária e escravatura, entre outras formas de atropelo à dignidade da condição humana.

É um tema que aumenta de actualidade em função do requinte com que os grupos organizados actuam em zonas do globo cada vez mais alargadas, não só pela supressão de fronteiras em determinados espaços, como pela facilidade concedida ao comércio e à livre circulação de pessoas entre países, à conta do discutidíssimo fenómeno da globalização. Fenómeno, aliás, que, pelos desequilíbrios que vem provocando em algumas economias, acaba por ser causal do estado de agravamento da situação material de muitas famílias em diversos países de menores recursos ou menos apetrechados para a competição e concorrência mundiais. Circunstância que representa, assim, um factor de aceleradas clivagens no desenvolvimento e bem-estar entre os povos e que leva tanto as pessoas a fluxos migratórios em larga escala, bem assim como a deslocações sob a influência do tráfico. Preocupação, pois, que esteve na génese da Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, realizada sob a égide das Nações Unidas na cidade de Palermo em 15-12-2000) e nos protocolos suplementares que se lhe seguiram (um deles, o Protocolo para a Prevenção, Supressão e Punição do Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres). E era, precisamente, este Protocolo que definia o tráfico como sendo o "Recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos" (art. 3.º, al. a); sobre o regime legal numa perspectiva comparada, vide “O Crime de Tráfico de Pessoas", in "Formação Jurídica e Judiciária - Colectânea", tomo I, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2006, pág. 17 e segs., de JÚLIO A. C. PEREIRA).

Entre nós, todavia, no plano criminal até há bem pouco tempo o tema era tratado como fenómeno restrito à prostituição e à prática de actos sexuais (art. 169.º do CP de 1982, na redacção introduzida pela Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto). Com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, nesta matéria o Código Penal sofreu alteração de tipologia, passando o crime de tráfico de pessoas, agora previsto no art. 160.º, a ter um alcance muito mais vasto, já que os fins da conduta ali reprimida não são apenas de exploração sexual, como também de exploração do trabalho e de extracção de órgãos (há outras diferenças dignas de registo, mas não as mencionaremos, por não ser este o âmbito do presente trabalho. Chama-se a atenção para o facto de a "escravidão" ter ficado ilicitamente autonomizada no art. 159.º).

Como dizíamos, em certa medida há pontos de contacto entre o crime de auxílio à imigração ilegal e o de tráfico de pessoas, sempre que a vítima seja cidadão estrangeiro em situação ilegal no nosso país e o fim da conduta se reveja nos propósitos tipificados no art. 160.º

De referir que o cidadão estrangeiro que vier a ser identificado como vítima do crime de tráfico de pessoas terá direito a autorização de residência e a protecção em condições especiais (cfr. anotações aos arts. 109.º, n.ºs 4 e 5, 111.º, n.º 2, da presente Lei; ver ainda DL n.º 368/2007, de 5 de Novembro).


Nota SEF: No domínio do auxílio à imigração ilegal/tráfico de seres humanos, a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro – Orçamento do Estado para 2021, prevê no seu artigo 203.º a implementação de um Projeto-piloto de diagnóstico, apoio e acompanhamento a pessoas em situação de prostituição, por meio do qual o "...Governo promove o lançamento de um projeto-piloto, através das entidades públicas responsáveis e em articulação com autarquias locais e organizações não governamentais, em particular associações de mulheres, para melhor conhecimento, compreensão e desenho de medidas de apoio e acompanhamento a pessoas em situação de prostituição, nomeadamente: a); … b) Análise dos sistemas de deteção e sinalização de situações de tráfico de seres humanos para exploração sexual em Portugal, tendo em vista a sua melhoria; c) Desenho e teste de sistemas de apoio nos domínios da proteção social e familiar, dos cuidados de saúde, do emprego, da regularização e documentação no caso de pessoas migrantes e do apoio a vítimas de violência sexual e de tráfico de seres humanos; d) Desenho e teste de fluxogramas de atuação intersetoriais para apoio a vítimas de tráfico de seres humanos para exploração sexual; e) Acompanhamento de pessoas estrangeiras no regresso ao país de origem, à regularização ou ao processo de asilo. O Governo deve promover ações de formação direcionadas a profissionais que intervenham nas áreas da prostituição e do tráfico de seres humanos para exploração sexual, que promovam uma abordagem que combata estereótipos associados a pessoas em situação de prostituição."


Nota SEF: A Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro (Orçamento do Estado para 2023), veio prever um “reforço de meios para a prevenção e combate ao tráfico de seres humanos”, no seu artigo 124.º: "Durante o ano de 2023, o Governo promove as diligências necessárias tendo em vista o reforço de meios para a prevenção e o combate ao tráfico de seres humanos, nomeadamente: a) Melhorar e intensificar os esforços para identificar proativamente as vítimas no País, incluindo portugueses, através de formação especializada sistemática de todos os agentes envolvidos, especialmente, magistrados, elementos das forças e serviços de segurança e inspetores da ACT; b) Promover ações de fiscalização e implementar orientações para a supervisão do trabalho de empresas de recrutamento, nomeadamente para explorações agrícolas; c) Promover campanhas de informação e ações de sensibilização dirigidas a cidadãos imigrantes recém-chegados a Portugal para os informar sobre os riscos de exploração de que podem ser vítimas.". Em matéria de trabalho sexual, o artigo 120.º: "Em 2023, o Governo encomenda, a uma entidade independente, um livro branco sobre trabalho sexual e prostituição que avalie as necessidades e caminhos de regulamentação, tendo por base o direito comparado e a auscultação a diversas entidades da sociedade civil, em particular as que representem as pessoas envolvidas nesta atividade.".


Nota SEF: A Lei n.º 13/2023, de 3 de abril (altera o Código do Trabalho e legislação conexa, no âmbito da agenda do trabalho digno), no seu artigo 19.º, aditou ao Decreto-Lei n.º 260/2009, de 25 de setembro (regime jurídico do exercício e licenciamento das agências privadas de colocação e das empresas de trabalho temporário), os artigos 28.º-B, 29.º-A e 29.º-B, com a seguinte redação:

«Artigo 28.º-B


Responsabilidade contraordenacional por intermediação laboral ilegal


Constitui contraordenação muito grave, imputável ao empregador e à agência privada de colocação, o recrutamento e colocação de trabalhadores por intermédio de agência que não tenha cumprido o disposto nos n.os 1, 2 ou 4 do artigo 16.º, punível com coima de 2800 (euro) a 6000 (euro) ou 12 000 (euro), consoante se trate de pessoa singular ou pessoa coletiva.


Artigo 29.º-A


Proibição do exercício de atividade em empresa de trabalho temporário ou agência privada de colocação


Pode ser condenado na proibição de exercício de atividade, no âmbito de empresa de trabalho temporário ou agência privada de colocação, incluindo de sócio, administrador ou trabalhador, por um período de entre 2 a 10 anos e atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, quem for punido:


a) Pelos crimes previstos no presente decreto-lei;


b) Pelos crimes previstos nos artigos 82.º, 83.º, 316.º, 407.º, 459.º, 543.º, 545.º e 547.º do Código do Trabalho;


c) Pelos crimes previstos nos artigos 159.º e 160.º do Código Penal;


d) Pelos crimes previstos nos artigos 183.º, 184.º, 185.º e 185.º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.



Artigo 29.º-B


Responsabilidade penal


O regime sancionatório constante do presente decreto-lei não prejudica eventual responsabilidade em matéria penal, prevista nos termos da lei.»



Jurisprudência


Em 2018, a Hungria alterou certas leis relativas às medidas contra a imigração irregular e adotou, nomeadamente, disposições que, por um lado, introduziram um novo fundamento de inadmissibilidade dos pedidos de asilo e, por outro, previram a criminalização das atividades de organização destinadas a facilitar a apresentação de pedidos de asilo por pessoas que não têm direito a asilo ao abrigo do direito húngaro, bem como restrições à liberdade de circulação das pessoas suspeitas da prática de tal infração.

Ao punir criminalmente a atividade de organização destinada a permitir a abertura de um procedimento de proteção internacional por pessoas que não preenchem os critérios nacionais de concessão desta proteção, a Hungria violou o direito da União. A criminalização desta atividade viola o exercício dos direitos garantidos pelo legislador da União em matéria de assistência aos requerentes de proteção internacional.

Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 16 de novembro de 2021, no Processo C-821/19



AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL. BEM JURÍDICO PROTEGIDO. TIPO OBJECTIVO. TIPO SUBJECTIVO. DOLO ESPECÍFICO. INTENÇÃO LUCRATIVA

I – Os bens jurídicos tutelados pelo tipo de crime de auxílio à imigração ilegal, são, simultaneamente, a protecção dos imigrantes, enquanto grupo social vulnerável, mais susceptível de se encontrar numa situação de precariedade social e económica, desde logo potenciada pela sua condição de ilegalidade, e a necessidade de prevenção de um elevado fluxo de imigrantes em condições irregulares, permitindo a regulação e controle desse movimento pelo Estado Português.

II – O artigo 183.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, com a redacção dada pela Lei n.º 29/2012, de 09-08, não exigindo que o agente favoreça a entrada ou trânsito de um cidadão estrangeiro no país – basta que a este tenha facilitado a permanência –, exige, adicionalmente ao n.º 1 do mesmo artigo, um dolo específico, traduzido na “intenção lucrativa”.

III – O lucro desejado pelo agente deve ser entendido num sentido comum e amplo, como equivalendo a qualquer vantagem material, intelectual, ou moral, que se pode retirar de uma determinada conjuntura.

IV – Assim, quando alguém procura, com a facilitação ou o favorecimento de um cidadão estrangeiro em situação ilegal, algum proveito ou vantagem, ainda que não sob a forma de lucro no sentido económico-financeiro, age com a intenção lucrativa prevista na referida norma.

V – Manifesta essa intenção o arguido que promete celebrar contratos de trabalho, no âmbito da actividade de futebol, com jogadores estrangeiros, sabendo que estes, em situação de ilegalidade, aceitam jogar a troco de baixos valores monetários, fazendo-os acreditar na (falsa) regularização da sua condição, tudo com a finalidade de o clube do qual é presidente da direcção ganhe títulos e prémios desportivos sem despender valores mais elevados decorrentes da contratação de outros jogadores, de valia semelhante, mas com a permanência em Portugal legalmente garantida.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de outubro de 2021, no Processo 15/17.0ZRCBR.C1



TRÁFICO DE PESSOAS. CRIME DE EXECUÇÃO VINCULADA

Do disposto no artº 160º nº 1 do C.Penal resulta que a acção típica do tráfico de pessoas adultas pode revestir várias modalidades tais como: oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte, alojamento ou acolhimento de uma pessoa.

Cada uma destas modalidades de acção típica têm de ser levadas a cabo através de uma das formas constantes de cada uma das alíneas do nº 1 do artº 160º: violência, rapto, ameaça grave; ardil ou manobra fraudulenta; abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica de trabalho ou familiar; aproveitamento de qualquer situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima. Estamos assim, perante um crime de execução vinculada dado que os meios de execução do crime estão tipificados. 

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08 de junho de 2021, no Processo 1107/17.0PBSTR.E1



Não julga inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal (lenocínio); revoga o Acórdão n.º 134/20. "Está em causa, nos presentes autos, a questão da inconstitucionalidade da norma incriminatória do lenocínio contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal (“[q]uem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer, ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.”)."

"...existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado (aqui referimo-nos ao resultado da atividade dos referidos movimentos organizados num plano superior ao de cada “empresário”), quase invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade comercial”.

Com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (criando redes ou procurando redes já estabelecidas, que lhe propiciem economias de escala, maximizando o controlo da atividade – insiste-se – fora de mecanismos de controlo efetivo, que pura e simplesmente não existem no nosso país), objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem.

Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal.

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/2021, de 27 de janeiro de 2021



1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A.  e recorrido o Ministério Público, o primeiro interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão daquele Tribunal datada de 18 de outubro de 2017 que manteve a decisão da 1.ª instância condenando-o na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática em coautoria material e na forma consumada de um crime de lenocínio, p. e p. pelo disposto no n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal e de um crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo disposto no n.º 2 do artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.

2. O recorrente pretende ver fiscalizada a constitucionalidade da norma constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, que criminaliza o lenocínio na sua forma simples ou fundamental…

…decide-se: a) Julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.o 1, do Código Penal, por violação do artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição...; 

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 134/2020, de 3 de março de 2020



I – Não padece de inconstitucionalidade material a norma constante do artigo 169.º, n.º 1, do CP, na redacção conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09.

II – A diferença específica entre o lenocínio simples (artigo 169.º, n.º 1, do CP) e o lenocínio agravado (artigo 169.º, n.º 2, do CP) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado.

III – Hodiernamente, o tipo de lenocínio simples tutela uma determinada concepção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição.

IV – Evidenciando a matéria de facto provada várias resoluções criminosas da arguida, dirigidas ao propósito de lucro com a prostituição, ocorrem tantos crimes de lenocínio quanto as ofendidas envolvidas.

V – Em relação a cada uma das ofendidas que, durante todo o tempo da cedência onerosa, pela arguida, do espaço onde a prostituição era exercida, renovaram a prática dessa actividade, à luz de um juízo baseado nas normas de experiência de vida, a continuidade verificada corresponde a uma unidade de resolução volitiva, verificando-se, deste modo, tão só, um crime de lenocínio.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de fevereiro de 2018, no Processo 6/13.0 ZRCBR.C1



I - Os crimes de tráfico de pessoas são crimes consubstanciados numa prática reiterada de atos, que, por isso, se consumam com a prática do último ato de execução.

II – Tendo o último ato de execução dos crimes ocorrido em Portugal, os tribunais portugueses são competentes para o conhecimento dos mesmos, incluindo os atos praticados no estrangeiro.

III – Tem de ser qualificada como “substancial” a alteração fáctica operada no decurso da audiência de discussão e julgamento, pois com o acervo factíco constante da acusação/pronúncia não era possível proceder à qualificação jurídica, de consequências mais gravosas para os arguidos, feita no acórdão recorrido.

"...Alega o arguido S. GURUNG que os tribunais portugueses são incompetentes para julgar os factos ocorridos fora do território português (artigos 4º e 5º do Código Penal). Cumpre decidir.

Estabelece o artigo 19º, nº 1, do C. P. Penal, que “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”. Por sua vez, dispõe o nº 3 do mesmo artigo: “para conhecer de crime que se consuma por atos sucessivos ou reiterados, ou por um só ato suscetível de se prolongar no tempo, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último ato ou tiver cessado a consumação”. Por último, preceitua ainda o artigo 22º, nº 2, do C. P. Penal: “se o crime for cometido em parte no estrangeiro, é competente para dele conhecer o tribunal da área nacional onde tiver sido praticado o último ato relevante (…)”. Revertendo ao caso em apreço, facilmente se verifica que os factos delitivos ocorridos no estrangeiro (no Nepal, por exemplo) não são autonomizáveis, integrando-se, isso sim, numa conduta global, composta por diversos atos sucessivos, praticados pelo arguido S. GURUNG, que culminou com atos perpetrados em território português.

É que, e ao contrário do que parece entender o recorrente S. GURUNG, os crimes de tráfico de pessoas, pelos quais tal recorrente vem condenado em primeira instância, são crimes consubstanciados numa prática reiterada de atos, crimes que, por isso, se consumam com a prática do último ato de execução. O mesmo é dizer que os factos ocorridos em países estrangeiros integram a prática dos mesmos crimes de tráfico de pessoas, crimes que se consumaram em território português. Assim, o local onde os factos foram cometidos (onde terminou a execução dos mesmos) foi o território português, sendo aqui aplicável o disposto no artigo 7º do Código Penal (preceito que nos diz que o local da prática de um facto é aquele onde o agente atuou ou aquele em que o resultado típico foi produzido).

Ora, se os crimes de tráfico de pessoas em discussão nos presentes autos acabaram a respetiva execução em Portugal, é evidente que os tribunais portugueses são competentes para conhecer dos mesmos, porquanto tais tribunais são competentes para apreciar e decidir sobre crimes que forem praticados em território nacional. Por isso, o tribunal a quo é competente para julgar todos os factos, mesmo aqueles que foram perpetrados pelo arguido S. GURUNG no estrangeiro (ao contrário do que alega esse recorrente, não é aqui aplicável o disposto nos artigos 4º e 5º do Código Penal, porquanto tais dispositivos legais se prendem com a competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria penal, ou seja, e dito de modo simplificado, respeitam a situações nas quais está em causa a defesa dos interesses nacionais e nas quais é ineficaz o princípio da territorialidade para salvaguardar tais interesses).

Em jeito de síntese: o tribunal de primeira instância (bem como este tribunal ad quem) é competente para apreciar a responsabilidade criminal do arguido S. GURUNG pela prática dos crimes de tráfico de pessoas em discussão nos presentes autos, traduzidos em diversos comportamentos singulares e parciais do arguido, muitos deles localizados em países estrangeiros, mas cuja consumação ocorreu em território português (onde foi praticado o último ato de execução). ...". 

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-02-2019, no Processo 576/14.5GEALR.E1



TRÁFICO DE PESSOAS - IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO - DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA - CRIME CONTINUADO - MEDIDA DA PENA

I - Reunidos os pressupostos processualmente exigidos para a respetiva produção, as declarações para memória futura constituem um modo de produção de prova pessoal submetido a regras específicas, visando acautelar, bem vistas as coisas, o respeito pelos princípios estruturantes do processo penal, designadamente (e sobretudo) pelo princípio do contraditório, não se impondo a sua leitura em audiência de julgamento para que possam ser valoradas.

II – No crime de tráfico de pessoas, com diversidade de vítimas, está afastada a figura do crime continuado, por estarem em causa bens eminentemente pessoais.

"...O artigo 160º do Código Penal prevê (e pune) o crime de tráfico de pessoas nos seguintes termos: “1 - Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas: a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave; b) Através de ardil ou manobra fraudulenta; c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos, a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas. 3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do nº 1 ou atuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos. 4 - As penas previstas nos números anteriores são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a conduta neles referida: a) Tiver colocado em perigo a vida da vítima; b) Tiver sido cometida com especial violência ou tenha causado à vítima danos particularmente graves; c) Tiver sido cometida por um funcionário no exercício das suas funções; d) Tiver sido cometida no quadro de uma associação criminosa; ou e) Tiver como resultado o suicídio da vítima. 5 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adoção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos. 6 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos nºs 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 7 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos nºs 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 8 - O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto”.

Com o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente UP, tendo ficado provado, relativamente aos 23 trabalhadores em causa (de nacionalidade nepalesa), que tal recorrente tratou (em conjunto com outro arguido) da sua angariação e “contratação”, que providenciou pelo respetivo transporte e alimentação, que esses trabalhadores desconheciam a língua portuguesa, que lhes foi prometido, falsamente, a obtenção de autorizações de residência em Portugal, que, dos seus salários, o arguido UP (em conjunto com outro arguido) retirava parcelas significativas e indevidas, das quais se apropriava, atuando com dolo e sabendo a sua conduta proibida, não nos restam dúvidas de que incorreu na prática do crime de tráfico de pessoas pelo qual vem condenado.

É que, em face dos factos dados como provados, de nada servem as alegações do ora recorrente segundo as quais os trabalhadores nepaleses em questão podiam deixar de trabalhar quando bem entendessem (ninguém os impedia disso, ou os retinha contra a sua vontade), em momento algum lhes foi retido qualquer tipo de documentação pessoal, e nunca houve qualquer ameaça de represálias (ou do que quer que seja).

Na verdade, o crime verificou-se, sem necessidade da existência de tais requisitos, quando o arguido UP (agindo em coautoria), mediante ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência económica, e aproveitando-se de uma situação de especial vulnerabilidade das vítimas, explorou o trabalho dos aludidos cidadãos nepaleses, retendo parte significativa do seu salário e apropriando-se dela (ainda que como forma de pagamento de supostas dívidas, ou de garantir supostas condições de alojamento e de alimentação).

Subscreve-se, assim, inteiramente, a propósito da questão que agora nos ocupa, o que se deixou escrito no acórdão revidendo: “a ação típica do tráfico de pessoas adultas pode revestir várias modalidades, segundo a previsão normativa contida no art. 160º, nº 1, do CP: oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte (por meio próprio do agente ou de terceiro, mas custeado pelo agente), alojamento ou acolhimento de uma pessoa. (…) As modalidades de ação executiva - recrutar, aliciar, transportar, alojar ou acolher - não revestem qualquer dificuldade interpretativa, pois estão aqui mencionadas em conformidade com o sentido literal dos correspondentes verbos. Trata-se de um delito de intenção (“para fins de”), na medida em que visa a realização de um resultado que não faz parte do tipo, justamente, a exploração sexual, a exploração do trabalho, a extração de órgãos, ou outras atividades desumanas ou degradantes. (…) O tráfico de seres humanos é, não obstante, um crime de execução vinculada, porquanto cada uma destas modalidades de ação típica tem, forçosamente, de ser levada a cabo através de violência, rapto ou ameaça grave, de ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar, mediante o aproveitamento da incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, ou através da obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima. O tipo subjetivo exige o dolo, em conformidade com o princípio geral da excecionalidade da punição a título negligente, consagrada no art. 13º do CP”. (…) Nenhuma dúvida se suscita, na matéria de facto provada, no que concerne ao modo como todos estes vinte e três trabalhadores foram contratados pela E..., Lda., através dos arguidos NB e UP, para prestarem serviços agrícolas, na exploração de morangos sita em Paço dos Negros em Almeirim, explorada pelos arguidos PSV e HM, Lda. e, sobretudo, ao modo como foi executada a relação laboral e como estas pessoas viveram naquela exploração, que estão consumados os vinte e três crimes de tráfico de seres humanos. Com efeito, além da celebração de contratos de trabalho redigidos em língua portuguesa, que estes cidadãos nepaleses outorgaram e assinaram sem que dominassem o português e que soubessem qual o conteúdo correspondente, a retenção abusiva e ilegal de quantias monetárias dos salários dos trabalhadores e do desconto ilegal de outras, como é o caso das que alegadamente seriam necessárias para efetuar as inscrições na Segurança Social, bem assim dos montantes cobrados pelo alojamento e pela alimentação, apesar da remuneração mensal ilíquida prometida e exarada nos contratos de trabalho de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), sujeita aos descontos legais e acrescida da quantia de € 1,70 (a título de subsídio de refeição), quantias que nunca foram pagas, na totalidade e que eram entregues aos trabalhadores em montantes variáveis, de mês para mês, segundo o que o arguido NB, em seu livre arbítrio entendia pagar, a ponto de os trabalhadores nunca saberem, afinal, qual iria ser o seu salário, no final de cada mês, nem conseguirem prever qual seria esse valor, circunstâncias estas que, conjugadas com a situação irregular em que esta pessoas se encontravam em Portugal e com a vontade que todos tinham em estabelecer residência em Portugal, constituem, outros tantos indícios empíricos de especial vulnerabilidade, de acordo com a Convenção nº 29 da OIT e no Human Trafficking and Forced Labour Exploitation: Guidance for Legislation and Law Enforcement, Genebra, 2005, págs. 107 a 110. Também as condições em que os arguidos forçaram estes trabalhadores a viver, enquanto se mantiveram ao serviço da E..., Lda. e da HM, Lda., por tão desumanas e degradantes, são claramente ofensivas dos direitos fundamentais destas pessoas ao sossego, à intimidade, à sua liberdade pessoal, até, à sua saúde, em suma, da sua dignidade enquanto seres humanos”.

Ao contrário do que alega o recorrente UP, não releva, a nosso ver, o facto de o mesmo ser, tão-só, funcionário da arguida “E..., Ldª”, e trabalhar sob os poderes de direção do arguido NB (sócio único e gerente de tal empresa).

Não é isso que retira ao arguido UP a ilicitude, a culpa, ou a qualidade de coautor.

É que, tal arguido, muito embora não recebesse diretamente os proventos da exploração exercida sobre os cidadãos nepaleses, agia, profissionalmente, para a prossecução da atividade mediante a qual se materializava essa exploração, sendo, a final, pago pela estrutura empresarial que explorava essa mesma atividade.

E, tal como os demais arguidos/recorrentes, tinha o domínio do facto, porquanto ele próprio fez contratações, efetuou pagamentos, e fez falsas promessas de legalização aos aludidos cidadãos nepaleses, mediante a condição de estes se sujeitarem a trabalhar em condições degradantes e desumanas.

Questiona o recorrente UP, sobretudo, a existência, in casu, de um “ardil ou manobra fraudulenta”, por si utilizado (no entender de tal recorrente, “ardil ou manobra fraudulenta” é a ação pela qual o agente engana outrem sobre o significado, o propósito e as consequências da sua ação, o que não aconteceu no caso destes autos).

Com o devido respeito, tal alegação carece de sentido, porquanto, sendo o arguido UP conhecedor das “fragilidades” dos seus concidadãos nepaleses, do desconhecimento, por banda dos mesmos, da língua portuguesa, da precariedade económica de tais cidadãos nepaleses, do seu desenraizamento, e da evidente predisposição para aceitarem condições de trabalho como aquelas que lhes foram oferecidas e que encontraram, fez, a tais concidadãos seus, promessas falsas, de legalização em Portugal, e de, com adequadas condições de vida e de trabalho, se instalarem no nosso país.

Face ao exposto, é de improceder, também neste segmento, o recurso do arguido... 

Da impugnação alargada da matéria de facto.

Numa visão niilista da decisão fáctica tomada em primeira instância, o recorrente PSV impugna toda a factualidade dada como provada no acórdão revidendo, e relevante para o preenchimento dos elementos dos tipos legais de crime pelos quais foi condenado, como se o julgamento em primeira instância não tivesse existido e como se este tribunal de recurso estivesse obrigado a levar a cabo um novo (e integral) julgamento fáctico, com ponderação, bem vistas as coisas, de toda a prova produzida.

Ora, os recursos são legalmente definidos como juízos de censura crítica (sobre concretos pontos de facto e matéria de direito de que conheceu ou deveria ter conhecido a decisão impugnada), e não como “novos julgamentos”. Mais: lendo a motivação do recurso interposto pelo arguido PSV, dela decorre, claramente, que o recorrente apenas questiona, naquilo que é essencial, a circunstância de o tribunal a quo ter seguido um processo de convicção diferente do do recorrente, pedindo-se, em conformidade, a reapreciação da prova na (quase) totalidade desta. Aquilo que o recorrente PSV pretende, no fundo, é que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento, analisando toda a prova produzida na primeira instância, e, é óbvio, fixando depois a matéria de facto de acordo com uma convicção que o recorrente pretende seja idêntica à dele próprio.

Aliás, e seguindo de perto a motivação de recurso, o recorrente pretende até que este tribunal ad quem acredite nas suas próprias declarações (negatórias e “explicativas” dos factos delitivos em apreço) - cujo teor transcreveu, na íntegra, em anexo à motivação do recurso - não dando crédito aos demais elementos de prova, designadamente às declarações para memória futura e aos elementos documentais juntos ao processo.

Esquece o recorrente, desde logo, que as suas declarações, transcritas em anexo à motivação do recurso, devem ser valoradas conjugadamente com a restante prova, tendo de ser sopesados, nessa valoração, outros elementos de prova, objetivos e inequívocos, que permitam atribuir, ou não, credibilidade a tais declarações. Ora, lendo as aludidas transcritas declarações (transcrição constante de fls. 3579 a 3625 dos autos), constatamos, sem hesitações, que as mesmas não nos merecem credibilidade, já que, com o devido respeito, é nítida a permanente inconsistência das mesmas, estando, manifestamente, afastadas da lógica normal das coisas (ou seja, a versão dada pelo arguido desrespeita as elementares regras da experiência comum e contraria a demais prova produzida - o que analisaremos já de seguida -). Por outro lado, esquece ainda o recorrente PSV que, na valoração da prova pessoal, é decisiva a imediação e a oralidade, pois a perceção da postura e do modo como tal arguido prestou declarações é fundamental para a formação da convicção do juiz. 

À luz dos anteriores considerandos, e revertendo ao caso sub judice, verifica-se: - Não havia água canalizada, potável e bebível, o que decorre, claramente, das declarações para memória futura, prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses, sem embargo das declarações, em sentido contrário, do arguido PSV (e, bem assim, do coarguido NB). - E eletricidade, nas instalações onde pernoitavam os 23 cidadãos nepaleses, era desligada, todos os dias, à mesma hora (cerca das 22 horas), e as condições de acomodação dos referidos cidadãos nepaleses eram, nos seus precisos termos, as tidas como provadas em primeira instância, o que decorre, nitidamente, das declarações para memória futura, prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses, sem embargo das declarações, em sentido contrário, dos arguidos e de algumas testemunhas que, baldadamente, vieram à audiência de discussão e julgamento tentar fazer valer a versão dos arguidos. - O pagamento das horas de trabalho, os termos em que o trabalho era prestado, e a participação do arguido PSV em tudo isso, nos termos tidos como assentes no acórdão recorrido, resulta do teor das declarações para memória futura, prestadas pelos 23 cidadãos nepaleses, sem embargo das declarações, em sentido contrário, dos arguidos. - O conhecimento e a intenção com que o arguido PSV cometeu os factos delitivos em questão resultam provados, a nosso ver, por legítimo e adequado uso das presunções judiciais. Aliás, é aqui - no uso de presunções judiciais - que incide a tónica dominante do recurso interposto pelo arguido PSV, discordando o recorrente do modo como o tribunal a quo formulou tais presunções.

Contudo, nenhuma razão assiste ao recorrente nessas suas alegações. Na verdade, através de raciocínios presuntivos inequívocos, baseados na lógica normal das coisas (isto é, sustentados na experiência comum), é possível, de forma segura e imediata, e com base nos factos conhecidos, dar como assentes, sem margem para dúvidas, os factos agora em apreço (questionados pelo recorrente). Senão vejamos: - O arguido PSV, como qualquer cidadão de média formação colocado na sua posição, sabia, perfeitamente, que aqueles cidadãos nepaleses estavam ilegalmente em Portugal (quer pela sua quantidade, quer pelas pessoas que lhos “angariaram”, quer pelas demais circunstâncias inerentes aos mesmos e à situação em que estavam, esta nossa conclusão, coincidente com a conclusão do tribunal de primeira instância, afigura-se-nos inteiramente correta). - Assim, o arguido PSV sabia, como sabe qualquer cidadão português de média formação, que os trabalhadores em causa tinham vontade e esperança de obter uma autorização de residência em Portugal, bem como sabia que, para serem deslocados do Nepal para Portugal, lhes havia sido prometida a sua “legalização” no nosso país, contra a verdade, pois que a imigração dos mesmos para Portugal contornava a legislação nacional e europeia, e que tudo isso, como sempre sucede neste tipo de situações, tinha de ser “iludido” das autoridades de fiscalização portuguesas. Não são as previsíveis declarações, em sentido contrário, do recorrente PSV, ou do coarguido NB, ou de uma qualquer testemunha (a testemunha OR) - que tentou “fazer passar” em tribunal a versão dos arguidos -, que, minimamente, beliscam a validade de tais presunções judiciais. - A experiência comum não nos diz que, se alguém labora com trabalhadores ilegais e é alvo duma inspeção do SEF, os “manda imediatamente embora” (como se alega na motivação do recurso). Bem pelo contrário: muitos “empregadores” do sector agrícola (senão mesmo a maioria dos mesmos), na necessidade premente de mão-de-obra e na ânsia do lucro, não “mandam embora”, em circunstância alguma, os trabalhadores. - A experiência comum também não nos diz que, se alguém contrata trabalhadores numa “empresa de trabalho”, siga princípios de boa-fé contratual e pense que os trabalhadores estão “legais”. Bem pelo contrário: atendendo à natureza e às características de muitas dessas “empresas de trabalho”, um cidadão de média formação duvida sempre, legitimamente, que os trabalhadores que tal “empresa” forneça tenham a sua situação “regularizada”. - À luz do que vem de dizer-se, é de presumir, sem margem para dúvidas, que existiu um plano prévio (expresso, ou meramente tácito), traçado entre o arguido PSV e os demais coarguidos, para que o primeiro acolhesse, nos anexos às suas estufas, os cidadãos nepaleses, com vista a explorar o trabalho de tais cidadãos. São irrelevantes, não possuindo qualquer consistência nem aderência à realidade das coisas, as declarações do arguido PSV em sentido contrário (na versão de tal arguido, acolheu os cidadãos nepaleses, nas referidas instalações, apenas porque constatou que estes não tinham onde pernoitar e para não os deixar ao relento, acedendo a tal provisoriamente - até que a “empresa de trabalho” arranjasse uma solução definitiva para os mesmos -). - Não obsta às anteriores conclusões a circunstância de os cidadãos nepaleses poderem abandonar a herdade do arguido PSV quando quisessem, podendo ir trabalhar para outros locais. - Não obsta às anteriores conclusões a circunstância de não ter sido perguntado aos cidadãos nepaleses, quando ouvidos para memória futura, se aceitaram ou não ficar nos aludidos anexos (além do mais, essa questão é irrelevante para a decisão da causa, pois que o consentimento das vítimas, no tipo legal de crime em análise, não exclui, em caso algum, a ilicitude dos factos - cfr. o disposto no artigo 160º, nº 8, do Código Penal). - O tribunal recorrido não tinha de ir “mais fundo” no esclarecimento dessa matéria, até porque as declarações do arguido PSV e do coarguido NB são totalmente inverosímeis. - O tribunal a quo não violou, nesta ou noutras matérias, o princípio in dubio pro reo, porquanto não ficou em aberto uma qualquer hipótese factual alternativa à dada como provada. - As declarações do arguido PSV são, todas elas, absolutamente inconsistentes e inverosímeis, não merecendo a mínima credibilidade, designadamente quando afirmou que tentou contratar trabalhadores através do Centro de Emprego. - O tribunal a quo não omitiu a realização de quaisquer diligências probatórias, necessárias para alcançar a verdade material, nos termos do disposto no artigo 340º do C. P. Penal, nomeadamente oficiado ao Instituto de Emprego e Formação Profissional. - Os trabalhadores nepaleses, pela remuneração que auferiam e pelas condições em que estavam alojados e prestavam trabalho, eram mão-de-obra barata. - A experiência comum diz-nos, sem dúvida e sem margem mínima para hipóteses alternativas, que o arguido PSV sabia qual era o vencimento, contratado e efetivamente recebido, dos cidadãos nepaleses. - A experiência comum também nos diz, inequivocamente, que o arguido PSV (como, aliás, qualquer cidadão de média formação e de são entendimento) sabia que os cidadãos nepaleses, por motivos de necessidade económica, estavam, na prática, obrigados a permanecer na sua herdade. - Nada nos diz, a não ser as inverosímeis declarações do próprio arguido PSV (e dos demais coarguidos) - que não nos merecem qualquer credibilidade -, que os anexos em causa, onde estavam “instalados” os cidadãos nepaleses, fossem provisórios. - Do mesmo modo, é, para nós, absolutamente evidente (com o devido respeito pela opinião contrária), que o arguido PSV se alheou da situação e das condições de vida dos cidadãos nepaleses na sua herdade. - De igual forma, é de presumir, direta e necessariamente, a partir de toda a materialidade fáctica objetiva apurada, que o arguido PSV sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. - Esta nossa última conclusão é a única possível face às regras da lógica e da experiência comuns, não restando nenhuma hipótese (verosímil) alternativa, pelo que o tribunal de primeira instância, ao formular também idêntica conclusão, não desrespeitou qualquer regra relativa ao uso de presunções judiciais, nem violou o princípio in dubio pro reo.

Em suma: não ocorreu qualquer erro de julgamento, nem há nada a apontar ou a corrigir à decisão fáctica tomada em primeira instância.

- É irrelevante saber (cfr. facto 37) se era o próprio arguido PSV quem desligava a eletricidade, ou se esta se “desligava automaticamente” - obviamente, por instruções ou prévio comando de tal arguido (ou seja, o arguido era, de qualquer forma, o “autor moral” de tal facto). - O mesmo se diz relativamente ao funcionamento das casas de banho (cuja reparação competia ao arguido em causa), e, bem assim, ao fornecimento de água (o modo de fornecimento e a qualidade da água eram, evidentemente, da responsabilidade do arguido PSV). - A água fornecida aos trabalhadores nepaleses não era água potável, mas sim água “depositada” e não analisada, que servia o sistema de rega, como decorre, inequivocamente, dos depoimentos para memória futura que foram prestados nestes autos, e, ainda, dos depoimentos dos inspetores do S.E.F. que foram ouvidos na audiência de discussão e julgamento.

Assim, também nestas matérias não ocorreu qualquer erro de julgamento, nem há nada a apontar ou a corrigir à decisão fáctica tomada em primeira instância.

- Quanto ao registo das horas de trabalho prestadas pelos cidadãos nepaleses, quanto ao controlo de tais horas, e quanto ao tratamento “burocrático” de tudo isso, além de ser matéria, essencialmente, instrumental, nada há a apontar também à decisão fáctica revidenda, que está baseada na prova (direta) produzida e na utilização das elementares regras da experiência (como se nos afigura evidente, o arguido PSV, que era quem pagava as horas de trabalho em questão, controlava, de um modo ou de outro, as mesmas). - Como é também evidente (a nosso ver), e não deixa margem para hipóteses factuais alternativas, os cidadãos nepaleses só depararam com as condições em que iriam viver (de forma definitiva, e não provisória) quando chegaram à herdade do arguido PSV. Por conseguinte, e ainda nestas matérias não ocorreu qualquer erro de julgamento, nem há nada a apontar ou a corrigir à decisão fáctica tomada em primeira instância.

Em conclusão: a impugnação da matéria de facto efetuada na motivação do recurso do arguido PSV é totalmente de improceder, não merecendo provimento, em toda esta vertente, esse mesmo recurso."...

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18-10-2018, no Processo 14/16.9ZCLSB.E1



AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL; ELEMENTOS TÍPICOS

1 - ... 2 – O crime de auxílio à imigração ilegal define-se pelos seguintes requisitos objectivos e subjectivos: A acção material criminosa reside no “favorecimento” e na “facilitação” da entrada, da permanência ou do trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional; Quanto ao modo de acção, não estando definido, qualquer um é idóneo; O objecto da acção é a “entrada”, o “trânsito” [n.º 1 do artigo 183.º da Lei 23/2007, de 04-07] e a “permanência” [n.º 2 do mesmo artigo] ilegais, consoante os casos, noções cuja verificação casuística há-de encontrar-se no disposto no artigo 181.º do referido diploma; O sujeito activo é qualquer pessoa, enquanto o sujeito passivo é um cidadão estrangeiro; O elemento subjectivo consiste na consciência de prestar ilicitamente ajuda a cidadão estrangeiro para entrar, permanecer ou transitar de forma ilegal no nosso país, não sendo essencial para a prática do crime a obtenção de um ganho ou benefício económico; exige, todavia, o n.º 2 do artigo 183.º a concorrência de uma intenção lucrativa, que funciona como elemento subjectivo agravante da moldura penal abstracta.

3 – A necessidade da existência de contrato de trabalho e, bem assim, da inscrição na segurança social, para a concessão de autorização de residência - sem prejuízo da verificação dos requisitos gerais a que se reporta o artigo 88.º da Lei 23/2007 - não impede que com a sua celebração, muito menos que com o começo de execução da prestação de trabalho subordinado - numa ocasião em que o mesmo ainda não foi formalizado -, o crime de auxílio à imigração ilegal haja sido cometido."

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-06-2018, no Processo 7/11.2ZRCBR.C1



CRIME DE AUXÍLIO À EMIGRAÇÃO ILEGAL - CRIME DE FALSIDADE INFORMÁTICA - BUSCAS - ESCRITÓRIO DE ADVOGADO - REQUISITOS - NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE

1 - As buscas mostram-se necessárias, muito embora alguns dos crimes se encontrem já suficientemente indiciados face ao confronto entre a prova decorrente das próprias manifestações de interesse inseridas nas bases de dados e a prova testemunhal (e mesmo alguma documental), pois que é sabido que a prova testemunhal é mutável, influenciável e genericamente falível; por outro lado, o objectivo expresso das buscas não é apenas (ou nem é sobretudo) o da apreensão de dados informáticos ou documentos em suporte digital, mas também, a apreensão de documentos em arquivo físico (analógico) ou de papel, que não é possível (ou viável) efectuar por ouro meio.

2 - As buscas mostram-se proporcionais, para o que há que atentar ao conflito de direitos/deveres constitucional e legalmente consagrados- mormente o dever de exercício da acção penal por parte do MP e o dever de sigilo profissional dos advogados e imunidade de que goza a advogada visada - cujo sacrifício, de qualquer modo, deve ser limitado, na medida do possível, nos termos conjugados dos artigos 135.º, 177.º/5, 179.º e 180.º C P Penal e 75.º a 77.º do EOA.

3 - Nem se pode invocar para justificar a não autorização das buscas, para que ao interesse da investigação e punição fosse sacrificado o dever de sigilo profissional inerente à função social e jurídica do patrocínio forense, a falta de ressonância ética ou da suficiente gravidade dos crimes em causa, que apesar de se inserirem no chamado direito penal secundário, têm molduras penais abstractas de prisão de 1 a 5 anos.

"...Não obstante o assinalável esforço argumentativo desenvolvido pelo Tribunal recorrido na sustentação da sua tese de que os factos indicados pelo Ministério Público – e, em boa medida, indiciados pela investigação prévia do SEF – não preencherão os requisitos dos dois tipos legais de crime apontados na promoção indeferida, afigura-se-nos que tal interpretação não é a mais correta.

Com efeito, não sendo postos verdadeiramente em causa os indícios de que a Ex.ma Advogada visada introduziu no “sítio do SEF na Internet” (designado por SAPA), em nome dos seus clientes e com intuito lucrativo, – pelo menos nos casos expressamente mencionados na investigação – dados sobre as respetivas datas de entrada no território nacional e até sobre a sua nacionalidade que, consabidamente, não correspondiam aos reais, como meio de não verem as suas declarações de interesse automaticamente indeferidas, não vemos como se não mostrem preenchidos os requisitos típicos do crime de auxílio à emigração ilegal do nº 2 do artigo 188º da Lei nº 23/2007, de 2/7.

É certo que dos autos não resultam indícios de qualquer intervenção da advogada no recrutamento destes trabalhadores estrangeiros, designadamente no auxílio à sua entrada ou mesmo à sua circulação no território nacional. 

Porém, é também insofismável que o âmbito de abrangência do tipo de ilícito ora em causa não se limita a tais comportamentos de maior visibilidade ou de maior proatividade, estendendo-se também ao auxílio, “por qualquer meio”, à “permanência” ilegal de imigrantes.

Nem se diga que – como o faz o Tribunal recorrido – uma conduta de auxílio (neste caso, jurídico) só seria tipicamente relevante se se destinasse diretamente à produção de um ato administrativo e já não a efeitos alegadamente pré-decisórios, automáticos, não definitivos.

Na verdade, o âmbito de atuação da visada encontra o seu enquadramento e explicação no contexto do alegado pelo recorrente e que aqui se reproduz:

«Segundo a Informação de Serviço n.º 64/GJ/09 do Gabinete Jurídico do SEF – Direção Regional do Norte (cfr. fls. 9 a 11 do Apenso A), foi determinado que o “SAPA” passasse a emitir parecer negativo automático quando constata uma manifestação de interesse apresentada por cidadão estrangeiro cuja entrada em território nacional tenha ocorrido entre 1-180 dias antes daquela apresentação. 

Acontece que parte relevante destes imigrantes ilegais não reunia, à data do recrutamento, as condições para se regularizar em território nacional, designadamente porque apresentavam períodos de permanência em território português inferiores a cento e oitenta dias, constrangimentos objetivos que, indiciariamente, eram do conhecimento da advogada (cfr. auto informativo de fls. 500 a 505). 

Existem fortes indícios de que estamos perante um procedimento consciente e sub-reptício: para contornar um dos requisitos previstos para a aceitação das manifestações de interesse no mecanismo de regularização extraordinária que verte do n.º 2, do artigo 88.º da Lei 23/2007, terão sido propositadamente alteradas, pela advogada B..., as datas de entrada de cidadãos estrangeiros inseridas no Portal "SAPA". Assim, ludibriada quanto ao real período de permanência em território português, a Administração emitiu pareceres positivos nestas manifestações de interesse quando, se fosse conhecida a verdadeira data de entrada, o parecer teria sido automático e negativo (cfr. auto informativo de fls. 411).

Após consulta aos registos no Portal "SAPA" promovidos pela advogada B... (tendo como critério de entrada o respetivo telemóvel ........., o contacto declarado - foram sinalizados cerca de duzentos e setenta pedidos associados a imigrantes, na sua maioria de aparente origem indostânica cuja nacionalidade carreada na plataforma online foi a brasileira (cfr. listagem de fls. 506 a 513). 

A título de exemplo, note-se o procedimento adotado pela advogada no registo promovido em nome do imigrante ilegal Q...: no campo “nacionalidade do interessado” foi carreada a nacionalidade brasileira, mas no campo destinado às observações fez-se constar: "o CE (cidadão estrangeiro) é nacional do Bangladesh, mas, por não possuir visto de entrada, inseriu a sua nacionalidade como brasileiro, de forma a ser apresentada esta mi (manifestação de interesse) – requerendo desde já a retificação da sua nacionalidade" - (cfr. registo de fls. 515). Ao inserir no Portal "SAPA" um registo incorreto associado a uma nacionalidade isenta de visto – a brasileira – em detrimento da autêntica – a do Bangladesh – é contornada a obrigatoriedade da especificação do visto de entrada que pende sobre os cidadãos de origem indostânica. Este logro permitiu ao imigrante ilegal Q... permanecer no que se poderá chamar de "limbo documental", já que, sendo inviável a emissão de qualquer título de residência, com a inserção de uma manifestação de interesse no Portal "SAPA", este cidadão estrangeiro protelou o provável procedimento tendente ao afastamento coercivo de território nacional e impediu a instauração à respetiva entidade patronal da consequente contraordenação por emprego de mão-de-obra ilegal. Um subterfúgio que se mostrou eficiente e assegurou o prolongar desta estada irregular em Portugal. 

Resulta, assim, indiciado que a advogada B..., com intenção lucrativa, não obstante a consciência jurídica inerente à profissão, não se coibiu de promover manifestações de interesse que sabia inviáveis e adotou procedimentos sub-reptícios que permitiram a um conjunto relevante de imigrantes ilegais contornarem os pareceres automáticos emitidos pela plataforma ‘on line’ por incumprimento dos requisitos prévios basilares: prova de entrada legal em território nacional e/ou período de permanência em Portugal superior a cento e oitenta dias.».

A invocação (a nosso ver descontextualizada e inócua) do parecer administrativo referido no despacho recorrido – proferido no âmbito de outros autos e a propósito de uma questão diversa – não modifica ou afeta, de modo algum, a tipicidade da conduta indiciada, como crime de auxílio à imigração ilegal.

Encontra-se, desta forma, suficientemente indiciada a prática, pela advogada B..., do crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183°, n.º 2, da Lei 23/2007, de 4 de julho, na redação dada pela Lei n.º 29/2012, de 9 de agosto...

Quanto à alegada carência de ressonância ética dos crimes em causa, embora reconheçamos estar – designadamente quanto ao crime de auxílio à imigração ilegal – face a exemplos do chamado ‘direito penal secundário’, não podemos deixar de entender que a respetiva gravidade se deve aferir em função das penas que o legislador estatuiu para a sua punição [6]. Ora, ambos os tipos legais de crime em investigação preveem punições com penas de 1 a 5 anos de prisão, não podendo ser, de modo algum, considerados bagatelas penais.

Não se nos afigura, assim, que a autorização das promovidas buscas/apreensões possa ser considerada, no âmbito da ponderação de direitos constitucional e legalmente protegidos, como desproporcionada face ao sacrifício das imunidades de que goza a Ex.ma Advogada visada. De resto, tal sacrifício, na medida do possível, deverá ser limitado, nos termos conjugados dos artigos 177º, nº 5, 180º, 179º e 135º do Código de Processo Penal e 75º a 77º do Estatuto da Ordem dos Advogados.".

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-05-2018, no Processo 79/12.2ZRPRT-A.P1



Princípio da retroatividade da lei penal mais favorável — Nacionais italianos que organizaram a entrada ilegal de nacionais romenos em território italiano — Factos praticados antes da adesão da Roménia à União — Efeito da adesão da Roménia no crime de auxílio à imigração ilegal — Aplicação do direito da União — Competência do Tribunal de Justiça»

"...O considerando 2 da Diretiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2002, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares (JO 2002, L 328, p. 17) enuncia: «Por conseguinte, há que combater o auxílio à imigração clandestina, não só no caso de esse auxílio se traduzir na passagem irregular da fronteira stricto sensu, mas também quando for praticado com o objetivo de alimentar redes de exploração de seres humanos.» ... Decorre da decisão de reenvio que, através da criação em Itália de uma sociedade que era uma sucursal fictícia da sociedade romena Api Construction SRL, sociedade de direito romeno, os acusados no processo principal obtiveram da direzione provinciale del lavoro di Pescara (direção provincial do trabalho de Pescara, Itália), durante os anos de 2004 e 2005, autorizações de trabalho, e, posteriormente, autorizações de residência, em território italiano, para 30 nacionais romenos. Estas autorizações foram concedidas com base no artigo 27.°, alínea g), do Decreto Legislativo n.° 286/1998, que permite a admissão temporária, a pedido do empregador e para além do contingente de trabalhadores estrangeiros, de trabalhadores empregados por empresas com atividade em Itália. Também decorre da decisão de reenvio que os acusados no processo principal são acusados de terem organizado a entrada ilegal dos referidos nacionais romenos durante um período anterior à adesão da Roménia à União «para tirarem proveito da exploração intensiva e contínua de mão‑de‑obra barata»"...

"... o Tribunal de Justiça declara: O artigo 6.º TUE e o artigo 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia devem ser interpretados no sentido de que a adesão de um Estado à União não obsta a que outro Estado‑Membro possa aplicar uma sanção penal a pessoas que cometeram, antes dessa adesão, o crime de auxílio à imigração ilegal de nacionais do primeiro Estado."

Acórdão do Tribunal de Justiça, de 6 de outubro de 2016, no Processo C-218/15



LENOCÍNIO SIMPLES - BEM JURÍDICO PROTEGIDO - UNIDADE DE CRIMES - PLURALIDADE DE CRIMES - LENOCÍNIO AGRAVADO - AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL

I - A diferença específica entre o lenocínio simples (artigo 169.º, n.º 1, do CP) e o lenocínio agravado (artigo 169.º, n.º 2, do mesmo diploma) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostitui, isto é, na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado.

II - O tipo de lenocínio simples tutela uma determinada concepção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição.

III - Resultando do acervo factológico provado uma intensa e única resolução criminosa do arguido visando a obtenção de lucro com a prostituição, mesmo sendo dez as vítimas, ocorre tão só um único crime de lenocínio simples.

IV - Ao preenchimento do tipo legal de auxílio à emigração ilegal previsto no n.º 2 do artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, basta a permissão - com intenção lucrativa -, do agente de a(s) cidadã(s) estrangeira(s) trabalhar(em) em estabelecimento comercial seu, na actividade de alterne e prostituição, porquanto, por essa via, obtém rendimentos e, em simultâneo, surge facilitada a permanência daquelas em território nacional.

"...Do elenco dos factos provados resulta que a materialidade fáctica apurada se mostra suficiente para a sua subsunção ao crime de auxílio à imigração ilegal. Dispõe o art 183º da Lei n.º 23/2007 de 4 de Julho Dec Lei sob a epígrafe “Auxílio à imigração ilegal”:( redacção em vigor à data dos factos) 1 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até 3 anos. 2 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.

Em conformidade, constituem elementos típicos do crime de auxílio à emigração ilegal nos termos do nº 2 do artigo 183º: - o favorecimento ou o facilitar da entrada, da permanência ou do trânsito ilegal; - De cidadão estrangeiro; - Em território nacional; - Agindo o agente com intenção lucrativa.

Além desses pressupostos, o agente deverá ter necessariamente conhecimento da situação ilegal e da nacionalidade do sujeito que entra ou transita no território nacional, devendo o agente ter ainda conhecimento que se trata de território nacional.

"Considera-se ilegal a entrada de cidadãos estrangeiros em território português em violação do disposto nos artigos 6°, 9° e 10° e nos nºs 1 e 2 do artigo 32° (artigo 181º, nº 1, da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho). Assim, será ilegal a entrada de cidadão estrangeiro em território nacional se feita por local distinto dos postos de fronteira qualificados para esse efeito durante as respectivas horas de funcionamento, bem como a entrada de cidadão estrangeiro que não esteja munido de documento de viagem válido - ressalvadas as legais excepções - e de visto válido, e ainda a entrada daquele a quem a mesma tenha sido recusada.

Finalmente, considera-se ilegal o trânsito de cidadãos estrangeiros em território português quando estes, estando apenas de passagem, não tenham garantida a sua admissão no país de destino.

O tipo legal contém duas diferenças marcantes em relação ao tipo previsto no nº 1 do artigo 183º da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, constituindo uma delas uma restrição do tipo e a outra um seu alargamento. Efectivamente, no nº 1 o favorecimento ou o facilitar da permanência de cidadão ilegal em território nacional não é punido, sendo o tipo legal mais restritivo nessa parte. Mas, por outro lado, o nº 1 não exige que o agente tenha intenção lucrativa, o que implica um alargamento do tipo. Estas diferenças estão interligadas e auxiliam na delimitação do tipo legal.

Na verdade, se o auxílio à permanência ilegal fosse punível sem a existência de intenção lucrativa do agente, as condutas de mero auxílio humanitário seriam puníveis (por exemplo, a conduta do cidadão nacional que recebe em sua casa e fornece uma refeição ao cidadão estrangeiro em situação ilegal no país), o que seria manifestamente injusto e injustificado. Daí a restrição operada no tipo legal do artigo 183º, nº 1, da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho.

Já se justifica plenamente a criminalização da conduta daquele que auxilia o cidadão estrangeiro em situação ilegal a permanecer em Portugal nessa situação visando obter um lucro com essa conduta. Lucro obviamente incompatível com razões humanitárias que justifiquem a não criminalização da conduta. Os arguidos respondem apenas pelo auxílio à permanência ilegal de cidadãs estrangeiras, conforme resulta da conformação do elemento subjectivo. Assim, a prática pelo agente de actos que, por qualquer forma, constituam um auxílio à permanência constitui crime de auxílio à emigração ilegal desde que o agente actue com intenção lucrativa, mesmo que se trate de actos da vida normal, isto é, actos que estejam despidos de intrínseca ilicitude (empregar o cidadão estrangeiro em situação ilegal; transportá-lo ao local de trabalho, assim lhe permitindo exercer uma profissão; fornecer-lhe alojamento, etc.).

Ora, no caso vertente provou-se que os arguidos A... e B... , sabendo que algumas das mulheres, se encontravam em situação ilegal, colocaram-nas a prestar serviço sexual, proporcionando-lhes a possibilidade de angariarem rendimentos, para além daqueles que os próprios arguidos recebiam, e assim facilitando a permanência em Portugal das mulheres que estavam em situação ilegal. Acresce que os arguidos agiram com intenção lucrativa, beneficiando economicamente com a actividade exercida pelas mulheres em situação ilegal. Inexistem, por isso, dúvidas quanto ao preenchimento dos elementos típicos do crime de auxílio à imigração ilegal p. e p. pelo nº 2 do artigo 183º da Lei nº 23/2007 de 4/7.

Aliás, conforme Ac. do TRP, de 11.09.2013, in www.dgsi.pt, relator Ernesto Nascimento, citado no Parecer do MP, o tipo legal basta-se com a permissão - lucrativa - das cidadãs estrangeiras “trabalharem” no estabelecimento comercial do arguido na actividade de alterne e prostituição, auferindo desse modo rendimentos para o seu sustento ao mesmo tempo que lhes facilita a permanência no país – cfr. sumário do referido Acórdão, que se transcreve: “Comete um único crime de auxílio à imigração ilegal o arguido que permite que várias cidadãs estrangeiras “trabalhem” no seu estabelecimento comercial na actividade de alterne e prostituição, auferindo desse modo rendimentos para o seu sustento ao mesmo tempo que lhes facilita a permanência no país”.

Sobre a evolução do núcleo do crime em questão “auxílio à imigração ilegal” cfr. ac. Rel. Coimbra de 11-10-2006, relator Des. Belmiro Andrade.

Perfectibilizados, assim, seja o tipo objectivo seja o tipo subjectivo do crime previsto no artigo, não pode deixar de concluir-se que os arguidos A... e B... se constituíram co-autores materiais do referido crime. E, como tal, devem ser punidos devendo ter-se em conta que a moldura penal abstracta para o crime de auxílio à imigração ilegal é de pena de prisão até 3 anos, nº 1 do art. 183 da Lei nº 23/07 de 04.07, e no seu nº 2, com pena de prisão de um a quatro anos. A Lei n.º 29/2012, de 09/08, veio dar nova redacção ao nº 2 do art. 183º, passando a pena de prisão de um a cinco anos. Ora, a redacção do art. 183, aplicável nos autos é a redacção dada pela Lei nº 23/07 de 04.07, por ser o regime mais favorável, de acordo com o estabelecido no nº 2 do C.Penal, e não a actual redacção, dada pela Lei 29/2012.".

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-11-2015, no Processo 7/08.0GBCTB.C1



ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO - ACUSAÇÃO - PROVA DE FACTOS - AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL - CO-AUTORIA

1. Tendo o MP proferido, findo o inquérito, um despacho simultaneamente de arquivamento e de acusação, os factos e as provas dos factos pelos quais o MP arquivou, não podem sustentar depois, em julgamento, a prova (como factos instrumentais dos factos principais) dos factos da acusação e justificar então a condenação do arguido pelo crime da acusação.

2. Age como co-autor e, não, como cúmplice (do crime de auxílio à emigração ilegal do artº 183º, nº 1 e 2 da Lei nº 23/07), o arguido que requer e obtém, nas Finanças a atribuição de NIF a cidadãos estrangeiros, mas que o faz conhecendo e querendo toda a actividade desenvolvida pelos restantes arguidos (de elaboração e uso de contratos de trabalho falsos e de inscrição desses cidadãos na Segurança Social), na prossecução de um objectivo comum visado e querido também por todos, com a intenção concretizada de facilitar e favorecer a permanência (ilegal) de cidadãos estrangeiros em Portugal.

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22-09-2015, no Processo 124/10.6ZRFAR.E1



AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL - CRIME DE PERIGO - CONSUMAÇÃO - TENTATIVA

1. O crime de auxílio à imigração ilegal do artigo 183º/2 da Lei n.º 23/2007 é um crime de perigo quanto ao bem jurídico e um crime material ou de resultado quanto ao objecto da acção.

2. Embora não se exija, para a consumação, que o imigrante chegue ao concreto local de destino nacional acordado com o agente ou que o nosso país o aceite, o tipo compreende a efectiva introdução ou penetração do estrangeiro em Portugal. 

3. Se o agente facilita ou favorece a entrada, o trânsito ou a permanência do estrangeiro no território nacional, mas a entrada não chega a ocorrer, há apenas “tentativa”.

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-01-2015, no Processo 294/07.0TAEVR.E1



"...XVII - O tipo legal de crime de angariação de mão de obra ilegal tem como objecto de protecção a tutela do controle dos fluxos migratórios, mas também a defesa dos direitos próprios e característicos fundamentais do trabalhador em geral extensivos ao estrangeiro, da sua própria dignidade enquanto pessoas trabalhadoras. O controle dos fluxos migratórios tem, ainda, a vantagem de evitar os excessos da concorrência laboral, potenciadores de uma pluralidade de inconvenientes, como o desemprego, redução de salários entre os imigrantes, diminuição da produtividade, inibição no processo de desenvolvimento tecnológico, concorrência desleal nomeadamente pela redução dos custos de mão de obra, dos salários dos trabalhadores locais, com o consequente aumento dos custos sociais (neste sentido, cf. A. Morais Pinto, in Comentário às Leis Penais Extravagantes, compiladas por Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, Vol. I , ed. UCP. pág. 119.

XVIII - O arguido, ao instruir, ao convencer, terceiros a conseguirem o recrutamento de mulheres para praticarem actos relacionados com a exploração de actividade de striptease e o erotismo nas sociedades de que era dono – e outras – sem autorização das competentes autoridades nacionais, sob promessa de benefícios económicos e com intenção lucrativa, fornecendo-lhes, adquiridos pelas sociedades que integrava, os bilhetes de passagem aérea indicando-lhes cautelas que deveriam observar à chegada a território nacional para não levantarem suspeitas às autoridades de controle de estrangeiros, aconselhando-lhes o estabelecimento dos itinerários mais adequados para a entrada e por forma a que a mesma se efectuasse por outros países do espaço «Shengen» onde o controle é menos apertado ao trânsito de pessoas, a não revelarem com quem viajaram, para além do acolhimento posteriormente dispensado, incentivando, ainda, a que as renovações não ultrapassassem, em regra, os 90 dias permitidos de permanência na situação de turistas e fosse, assim, reforçada a ideia enganosa, perante as autoridades, de que elas se deslocavam a Portugal nessa situação, fornecendo-lhes, por vezes, uma «carta para visita», procurando, assim, dar credibilidade às afirmações que produzissem sobre a sua deslocação turística, obviar, para evitarem igualmente quaisquer suspeitas sobre a finalidade das deslocações, ocupando a cúpula da organização, incorreu na prática dos crimes de angariação de mão de obra ilegal e de auxílio à imigração ilegal, ambos em forma continuada, sendo este último agravado..."

"O tipo legal de crime de angariação de mão de obra ilegal tem como objecto de protecção a tutela do controle dos fluxos migratórios , mas também a defesa dos direitos próprios e característicos fundamentais do trabalhador em geral extensivos ao estrangeiro, da sua própria dignidade enquanto pessoas trabalhadoras.

O controle dos fluxos migratórios tem, ainda , a vantagem de evitar os excessos da concorrência laboral , potenciadores de uma pluralidade de inconvenientes , como o desemprego , redução de salários entre os imigrantes , diminuição da produtividade , inibição no processo de desenvolvimento tecnológico , concorrência desleal nomeadamente pela redução dos custos de mão de obra , dos salários dos trabalhadores locais , com o consequente aumento dos custos sociais , neste sentido , cfr. A. Morais Pinto , in Comentário às Leis Penais Extravagantes , compiladas por Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco , I , ed da UCP , ao art.º 185 , da Lei n.º 23/2007 , de 4/7,  a págs. 119.

As normas de punição visam , ainda , obstar à sua exploração , põ-los a salvo de exploradores sem escrúpulo que se aproveitem da sua inferioridade, por pobreza , e(ou ) irregularidade , para enriquecerem à sua custa , garantindo a sua igualdade com os nacionais ou estrangeiros em condições legais , segundo Samuel Fernandez e Elena Garcia Moreno, in Revista General de Legislación y jurisprudência , 2004 , 4 –Octobre –Diciembre , pág. 686.

O arguido AA , neste âmbito , deu instruções a terceiros residentes no estrangeiro , mas muito especialmente no Brasil a uma tal III e outra de nome JJJ  , a um  indivíduo conhecido por HHH , de seu verdadeiro nome WFN , no sentido de recrutar para si mulheres para trabalharem nos seus estabelecimentos , exigindo  “ qualidade “  , evidente beleza , dotes físicos e aptidões para a dança , sob promessa de serem bem remuneradas e de as percentagens a receber serem superiores à comissão a pagar-lhes , como igualmente e para o mesmo fim deu instruções , pelo menos,  a um indivíduo de nacionalidade russa conhecido por «Aleksandr», dispondo também no Leste da Europa, de outro conhecido por “ Josef “.

Para a selecção das mulheres a entrar em Portugal eram, por vezes, enviadas fotografias das mesmas,  tiradas, pelos apontados indivíduos, enviadas para os “escritórios centrais “ , da Rua ... , em Lisboa.

O processo de escolha era realizado pelo arguido AA, com a opinião, por vezes, da arguida EE, seu braço direito , que, uma vez efectuada a selecção, a comunicava para aprovação àquele arguido , a quem incumbia sempre a última palavra.

O HHH , actuando de conformidade com tais instruções prévias e específicas e concordância do arguido , introduziu em Portugal , 13 mulheres brasileiras –cfr. fls 24468-e tentou , ainda , uma outra , de nome S... da S... , mas sem êxito , por impedimento das autoridades fronteiriças , ou seja conseguiu para a organização do arguido aquelas mulheres , o que significa , na semântica , angariar , enquanto que aliciar tem o alcance de provocar , seduzir , atrair a si.

O arguido AA teve o domínio do facto , instrumentalizando terceira pessoa a diligenciar pela introdução em Portugal de mulheres para trabalharem em condições por si queridas e pensadas e que sabia serem ilegais por falta de visto de permanência , trabalho ou residência concedido pelas nossas autoridades . ; a decisão de assim proceder desses terceiros é o resultado final do desígnio concorde do AAe do entrelaçamento de múltiplas vontades, com proeminência da própria.

Comprova-se , ainda , que o arguido AA, pelo menos , introduziu em Portugal , 175 mulheres, (ponto de facto n.º 1694 ) -acrescendo ainda algumas dezenas mais , visto o referido nos demais antecedentes pontos de facto provados , todas igualmente para desempenharem, como desempenharam, actividades laborais, sob a direcção dos representantes das sociedades arguidas , sociedades essas que procederam ao pagamento das viagens de vinda e de retorno ao país de onde eram nacionais àquelas 175. 

Essas mulheres que praticaram os actos referidos no ponto de facto provado 6b) eram na esmagadora maioria de nacionalidade brasileira, mas também em número muito insignificante , (uma ) de nacionalidade canadiana e as restantes  senegalesa , mexicana , venezuelana , romena , húngara , letã , checa , cabo verdeana e etíope e que o arguido fez entrar em condições ilegais e trabalhar daquela forma , neste país , nas sociedades de que era sócio ou gerente , ou ainda em sociedades alheias , para onde , com os mesmos fins as disponibilizava ,  e sempre  lucrativamente, não possuíndo autorização das nossas autoridades para o efeito ou seja sem deterem visto de trabalho e residência a que se faz exigência no art.º 27.º d) e f) , do citado Dec-Lei n.º 34/2003 , de 25/2 , sabendo que permaneciam em condições de reiterado afrontamento à lei. 

Dogmaticamente o crime não é de mão própria , que é aquele que só pode ser imputado a quem realiza corporal e directamente a acção proibida , excluindo a co autoria ou a autoria mediata , aquele que só pode ser praticado por quem reúna qualidades especiais ,incomunicáveis a terceiros, “ não impedindo,  como a Relação afirmou a fls . 24470 , que possa ser cometido por terceiro, “por nela ter participado como instigador ou cúmplice".

O preceito do art.º 134.º -A, do Dec.º-Lei n.º 34/2003 , de 25/2 , pune o auxílio à imigração ilegal , com prisão até 3 anos , quem favorecer ou facilitar , por qualquer forma , a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional , funcionando como agravante o intuito de lucro ,  fundante –n.º 2 –de uma pena de prisão de 1 a 4 anos.

Basta o favorecimento, o possibilitar , dar ajuda , apoio ou protecção , à entrada no nosso país , a oferta de condições de permanência , sejam elas quais forem , desde o remover de dificuldades ou cooperar nesse sentido , para que o tipo de ilícito se consume ; não sendo elemento constitutivo do crime a intenção lucrativa , mas , apenas , e diferentemente , do que sucede com o crime de angariação de mão de obra ilegal , uma agravante da responsabilidade criminal.

O critério de distinção entre a unidade e pluralidade de infracções radica, repousa , teoriza o Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infracções –Caso Julgado , pág. 91, na possibilidade de subsunção de uma relação da vida a um ou vários tipos legais de crime , enquanto portadores, interposto de valoração jurídico criminal.

Sempre que entre os preceitos aparentemente aplicáveis à mesma conduta existam relações de subordinação tais que tornam impossível a sua aplicação à mesma conduta , sendo a acumulação meramente aparente , em que a eficácia de um mesmo preceito exclui a eficácia normal de outros e não seja caso de concurso ideal ou formal , mas de um simples caso de concurso legal , de leis , aparente ou impuro , costumando a colisão remover-se pelo recurso às regras da consumpção  , alternatividade , subsidariedade e especialidade.

Entre os dois crimes em referência, nos termos legais, considerou , com acerto , a Relação uma situação de concurso real , por serem dois e distintos os bens jurídicos a tutelar , apelando ao critério normativo previsto no art.º 30.º n.º 1 , do CP , por serem diferentes as mulheres angariadas e auxiliadas e além disso poder existir angariação sem auxílio subsequente , e auxílio à permanência sem angariação prévia –págs. 24474, reconduzindo-se a dois o número de tipos efectivamente infringidos.

O Estado Português não havia concedido permissão para o exercício de qualquer trabalho, nomeadamente, por conta daquelas sociedades , sequer foram apresentados, junto das entidades competentes para se pronunciarem sobre a concessão, nomeadamente, de vistos de trabalho, contratos de trabalho ou promessas de contrato de trabalho em que as referidas  sociedades e as indicadas mulheres fossem intervenientes.

O arguido AA sabia que ao custear  as viagens daquelas mulheres, fornecer-lhes alojamento, transporte , alimentação e colocação nos estabelecimentos que geria e (ou) nos que lhes indicava  tudo para a realização dos actos referidos em 6.b, estava a facilitar-lhes, num País diferente do seu, as condições necessárias para esta realização, e, simultaneamente, a tornar –lhes menos dificultosa a sua entrada e posterior permanência em descontrole do Estado Português.

As mulheres ficavam na inteira dependência do arguido , que começava por predefinir as que tinha interesse para os seu negócio , cujo objecto era a prática lucrativa de alguns inquestionáveis actos sexuais de relevo, significativos , porque respeitam ao sexo , à excitação genésica , da líbido  de terceiros , com conotação sexual , que podendo , aparentemente , não atentar contra a sua livre autodeterminação sexual , sendo ele que as alimentava , alojava , deslocava , remunerava e fazia retornar  ao seu país de origem , atento o seu muito superior poder económico , delas podendo dispor , estando , como estavam, em terra alheia e em situação económica difícil , naturalmente desprotegidas.

Na Convenção de Palermo a que Portugal aderiu , ratificando-a em 15.12 .2000, faz-se apelo à condenação firme do recrutamento , transferências , alojamento , acolhimento de pessoas mediante recurso à coacção , ameaça , rapto , fraude , engano , aceitação de pessoas , mediante benefícios , em vista da obtenção da autoridade sobre outra para fins de exploração.

O conselho de Tampere fez apelo à necessidade de regular os fluxos migratários , a deslocação , sem mais , de seres humanos , sendo o consentimento irrelevante , mesmo sendo maior a vítima , por se achar numa posição de vulnerabilidade , com mais dificuldade em afirmar a sua autonomia –Decisão-Quadro do Conselho , de 2002 , 629 JAP.

Não admira que os imigrantes sejam reputados os novos escravos do séc. XXI , e que convenções internacionais se lhes refiram a reclamar protecção e um tratamento justo , não menos favorável àquele que é concedido aos nacionais do Estado de emprego , referimo-nos , por ex.º , à Convenção n.º 143, da OIT , relativa às Migrações em Condições Abusivas e à Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes , ratificada pela Lei n.º 52/78 , de 25/7.

As mulheres introduzidas no nosso país , em regra, eram oriundas de  meios sociais e económicos baixos, por isso lhes pagava as suas deslocações por via aérea , de outras despesas essenciais à sua deslocação para Portugal, tudo a ser, posteriormente, liquidado com pagamentos pontuais da parte destas com a prestação das referidas actividades e o desconto de uma percentagem no que recebessem como remuneração , pagamentos garantidos, em alguns casos, restritos , é certo , pela apreensão dos passaportes.

O arguido , ao instruir , ao convencer , terceiros a conseguirem o recrutamento de mulheres para praticarem os actos aludidos em 6 b) , dos factos provados nas sociedades de que era dono –e outras , caso da CCC , Glamour e Show Girls- sem autorização das competentes autoridades nacionais , sob promessa de benefícios económicos e com intenção lucrativa, fornecendo-lhes , adquiridos pelas sociedades que integrava , os bilhetes de passagem aérea , indicando-lhes  cautelas que deveriam observar à chegada a território nacional para não levantarem suspeitas às autoridades de controle de estrangeiros , aconselhando-lhes o estabelecimento dos itinerários mais adequados para a entrada e por forma  a que a mesma se efectuasse por outros países do espaço «Shengen»  onde o controle é menos apertado ao trânsito de pessoas , sobretudo, Espanha, França, Alemanha e Holanda, a não revelarem com quem viajaram, para além do acolhimento posteriormente dispensado , incentivando, ainda ,  a que as renovações, não passassem, em regra, os 90 dias permitidos de permanência na situação de turistas e fosse, assim, reforçada a ideia enganosa , nomeadamente, perante as autoridades, de que elas se deslocavam a Portugal nessa situação , fornecendo-lhes , por vezes, uma «carta para visita», procurando, assim, dar credibilidade às  afirmações que produzissem sobre a sua deslocação turística , obviar, para evitarem igualmente quaisquer suspeitas sobre a finalidade das deslocações, ocupando a cúpula da organização , incorreu na prática dos crimes de angariação de mão de obra ilegal e de auxílio à imigração ilegal , sendo este último agravado , porém ambos em forma continuada.

A partir do preciso momento em que  se induza  outrém , com propósito lucrativo , a penetrar no mercado de trabalho, estrangeiro não habilitado com autorização de residência , de permanência ou visto de trabalho ; a partir do momento em que se torne mais fácil , se removam dificuldades , qualquer que seja a respectiva modalidade , com vista à entrada ou ao trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional há uma irrebatível presunção de prejuízo -cfr. O Perigo em Direito Penal de José Francisco Faria e Costa , pág. 620 e segs . –pelo risco de criação de condições desfavoráveis de trabalho e à permanência ao estrangeiro , para a pessoa do aliciado ou  daquele a quem se propicie a entrada ilegal , por isso que os dois delitos são crimes  de perigo abstracto.

O preceito do art.º 134.º -A , n.º 2 , do Dec.º-Lei 34/2003 , de 25/2 , aproxima-se da definição de  redes de imigração clandestina , à luz da Convenção Europol, que são as acções destinadas a facilitar deliberadamente , com fins lucrativos , a entrada , a estada ou o emprego ,no território dos Estados –Membros da União Europeia , contrariamente aos regulamentos respectivos , distinguindo-se o  crime de imigração de imigração clandestina do de tráfico de pessoas porque neste o agente se propõe submeter a pessoa ao poder real e ilegal de outrem mediante recurso à violência ou a ameaças , abuso de autoridade , ou o uso de subterfúgios mormente como o objectivo de as  dedicar à prostituição , a outras formas de exploração e a violências sexuais em relação a menores ou ao comércio ligado ao abandono de crianças ( Cfr. ainda , Comentário às Leis Penais Extravagantes , I , pág. 69 ).

Trata-se o crime de imigração ilegal de crime contra a soberania e a segurança do Estado , bens jurídicos de titularidade colectiva , assim o entende Paulo Sousa , Rev. CEJ ., 1.º semestre 2008 , n.º 8 , já que , de acordo com esta concepção utilitarista ou funcional a entrada livre de cidadãos estrangeiros sem meios económicos para além de perturbar a capacidade de trabalho é sempre possível de levar à perda da identidade cultural da sociedade , fonte de graves problemas sociais , como a delinquência e marginalidade , face aos naturais limites assistenciais e financeiros do Estado. 

Segundo outros , visa-se disciplinar a entrada dos fluxos migratórios face aos compromissos internacionais a que o país se vinculou , mas também obstar à  fragilidade e a precariedade a que se acham sujeitos os imigrantes , procurando-se evitar que sejam tratados como mero objecto , em ofensa à sua dignidade moral , no dizer deste STJ , no seu Ac.de 3/12/2009 , P.º n.º 187/09.7YREVR.S1.

Numa outra posição se situam os autores espanhóis  entre eles Fernando Navaro Cardoso , in Observaciones , pág. 41 e segs ., que encaram  a emigração ilegal apenas do ponto de vista do cidadão , da pessoa humana , afirmando que a protecção reside , apenas , no direito à integração social  dos estrangeiros ( cfr, ainda , Comentário das Leis Penais Extravagantes , citadas , I e aí a eslarecedora e extensa anotação  de A. Morais Pinto ,  pág. 74.

Por fim outros autores defendem que o bem jurídico é protecção da dignidade humana , dada a vulnerabilidade em que se acham , merecedora  de protecção especial. A imigração ilegal “ atinge indiscutivelmente a sua dignidade como seres humanos , na medida em que os coisificam com as suas condutas , os reduzem a meros objectos ou coisas susceptíveis de proporcionarem , apenas , proventos económicos”(…) –cfr.op.loc. pág. 76. 

É numa concepção mista que protegendo o direito do Estado a não ver perturbada a capacidade de oferta de trabalho, por ser sempre possível de levar à perda da identidade cultural da sociedade , fonte de graves problemas sociais , como a delinquência e marginalidade , face aos naturais limites assistenciais e financeiros do Estado ,mas que  ressalve, tutelando o concomitante direito do imigrante a ser tratado como ser humano , com a sua carga de dignidade , que deve ser focalizado o duplo bem jurídico a proteger. 

E é este objectivo que , sem se reduzir apenas à visão pragmática da tutela da soberania e segurança do Estado e dos fluxos migratórios , indo mais longe,  que o legislador intenta conseguir com a publicação daquele Decreto-Lei n.º 34/2003 , de 25/2 , fazendo salientar a necessidade de criar  “ mecanismos legais de gestão de fluxos migratórios de forma realista através de um controle rigoroso de entrada e permanência de cidadãos estrangeiros nos países de acolhimento , estabelecendo , ao mesmo tempo , condições para aqueles que o  façam nos termos da lei possam esperar uma integração real e humanista". 

E continua o legislador a salientar que sendo Portugal um país de emigração enquanto signatário da CEDH , “ deve assumir políticas de carácter humanista ao nível do acolhimento e da integração dos imigrantes residentes no nosso país “ , em conformidade com as “ possibilidades reais do país , integração efectiva dos seus imigrantes e combate firme à imigração ilegal “ , em nome do respeito pela dignidade humana , que produz o inestimável efeito de afastar o homem do fascínio da violência , da subjugação e da desigualdade de direitos; enquanto proposição incontestável , de alcance apriorístico ,no dizer de Mário Reis Marques , in BFDUC , Ano 2010 , Vol.IV , pág. 565 , e conduz a um “ objecto irreal , inestimável que reside num ente real ( homem ). 

O arguido foi condenado penalmente por si e como representante das sociedades  a que pertencia , a par com estas.

O arguido à data dos factos  dispunha de treze estabelecimentos comerciais, três dos quais de restauração, e uma gráfica, que prestava sobretudo apoio logístico aos restantes estabelecimentos. 

Actualmente, AA mantém-se proprietário da gráfica e de três estabelecimentos de diversão nocturna ("Passerelle I e II e "Photus") situados na zona de Lisboa, sendo sócio de outros. 

A responsabilidade penal das pessoas colectivas está hoje prevista no art.º 11 .º , do CP , mas no que respeita aos delitos fiscais o direito penal tributário socorre-se de normas especiais , decorre desde logo do art.º 6.º , n.º 1 , do RGIT , quanto àqueles que actuam em nome , representação de “ pessoa colectiva , sociedade , ainda que irregularmente constituída ou de mera associação de facto , ou ainda em representação legal ou voluntária de outrém ( ..) , mesmo que -n.º 2-,  “ seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes “ , com o que se alcança , pela latitude do preceito “ uma infiltração  do direito penal em áreas extremamente sensíveis e cuja criminalidade cai normalmente em zonas de “cifras negras “ no comentário ao preceito pelos Cons.ºs  Lopes de Sousa e Simas Santos, RGIT , 2010 , pág. 73. 

Saliente-se , a propósito dessa especialidade normativa , ditada pelos especiais interesses a acautelar , que , nos termos do art.º 14.º , do RGIT , a suspensão da execução da pena está condicionada sempre ao pagamento das prestações em débito e acréscimos legais , em prazo a fixar até 5 anos seguintes à condenação e , caso o juiz o entenda , ao pagamento de quantia até ao limite estabelecido para a pena de multa , preceito especial que , atenta a sua “ ratio “de máxima obtenção de receitas , não pode impedir  que a regra de que a duração da suspensão no direito penal comum coincida com a da prisão aplicada seja inaplicável enquanto lei geral ao direito penal especial tributário, isto sem embargo de se suscitarem problemas de conformidade constitucional particularmente quando a condição de pagamento seja limitada ao pagamento do imposto e acréscimos legais , de cumprimento difícil ou quase impossível , pela sua exorbitância pecuniária , obstáculo a que o TC tem respondido pela positiva , como também se alcança dos Acs . deste STJ , desta 3.ª Sec. , P.ºs n.ºs de 4632/07-3.ª , de 9.1.2008 e 31.5.2006 , acessível in www.dgsi.pt/jstj. 

Por força do art.º  7.º , do RGIT , e seu n.º 3 , não se exclui “ a responsabilidade individual dos respectivos agentes “ que é assim , uma responsabilidade cumulativa integral , porém diferenciada , quanto às sanções , sem se confundir com a comparticipação criminosa , o que significa , na concepção adoptada no direito português , que a pessoa colectiva só é responsável por crimes fiscais quando um titular de um seu órgão ou um seu representante o seja também , independentemente de as sanções a aplicar a uma e outro serem diferenciadas pela natureza das coisas –cfr. Responsabilidade fiscal de Isabel Marques da Silva , pág. 52 , ed . da UCP , 2000. 

As pessoas colectivas são um produto  da actividade humana , uma criação jurídica ,  “ um real construido “ , vivendo de uma  “ interna alteridade “  na expressiva linguagem de José de Faria Costa , in Responsabilidade Jurídico Penal da Empresa e dos seus Órgãos , RPCC , Ano 2 , n.º 4 , 1992 , pág. 555, citado por Isabel Marques da Silva , op cit ., pág. 126 , notas 307 e 308,  e podem ser objecto de censura ético-penal , mas não por facto de outrem , mas por virtude de uma verdadeira responsabilidade autónoma e distinta da responsabilidade dos seres singulares que a compõem. 

A categoria da culpa é , pois , aplicada por analogia às pessoas colectivas e entidades equiparadas , não excluindo aquela a responsabilidade individual dos seus agentes. 

E a este respeito o art.º 8.º n.º 1 a) e b ) , do CP , responsabiliza as pessoas colectivas sempre que os crimes sejam cometidos em nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem posições de liderança ou por quem aja em nome delas por violação de deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbam. 

No plano doutrinário essa responsabilidade do dirigente da pessoa colectiva tem sido objecto de larga controvérsia , havendo quem a situe no âmbito da autoria mediata , por domínio da organização , daquilo que ficou conhecido por serem “ aparelhos organizados de poder “  , expressão que tem origem em Roxin ; o representante, o autor  está no “ centro do acontecimento “  , que toma sobre as suas mãos. 

Roxin abandonou esse modo de ver o problema , atenta a contestação de que a a empresa moderna se reconduza àquela figura hierarquizada, antes descentrada , numa organização por áreas ou departamentos, para fundar a responsabilidade numa posição de garante , enquanto outros autores descortinam uma relação de co-autoria entre o representante e a empresa ou outra modalidade de relação em que o homem de trás detém ainda o domínio do facto influenciando a decisão do homem da frente ( Assim Figueiredo Dias , Direito Penal , 773 , nota 13 ). 

A titularidade do domínio social do facto justifica a qualificação de “ intraneus “ do homem de trás, como autor mediato , responsável pela actuação de um instrumento ainda que doloso, não qualificado , relativamente ao homem da frente. 

A esta concepção sobrepõe-se a de Tiedmann , menos seguida , ao considerar a empresa como fonte de perigos tanto objectivos como subjectivos , cabendo ao titular do poder assegurar que não ocorram , havendo como que um espaço de responsabilidade entre o quadro de competências atribuído ao dirigente e o domínio do controle dos riscos, susceptível de fazer repousar a responsabilidade penal do agente ; há como que uma relação proximal e de influência e de presença  no exercício de funções , da pessoa colectiva  , mercê de fundamentos materiais e pessoais que concorrem no agente , de onde se dever fazer derivar aquela sua responsabilidade , neste sentido Suzana Aires de Sousa , in A Responsabilidade Criminal do Dirigente , BFDUC , Ano 2009 , 1011 a 1013 , 1015 , 1017 , 1024 , 1028 , 1029 e 1037. 

Como do antecedente se disse só a pena unitária será objecto de reponderação  e esta é uma resultante da avaliação global dos factos e da personalidade do agente –art.º 77.º n.ºs 1 e 2 , do CP.

Este STJ , ao conhecer , apenas de direito , e sujeito à limitação imposta pela decisão da reclamação , deixa intacta a matéria de facto que é fixada pelas instâncias , atinente às penas parcelares e também  não coloca em crise a responsabilidade civil assinalada ao arguido , responsabilidade essa solidária, por força das regras que regem a responsabilidade civil extracontratual , por facto o não pagamento de impostos , ao abrigo dos art.ºs 483.º e  497.º , do CC.

A personalidade do agente , elemento a que as teorias criminalistas dão crescente relevo na explicação criminológica , pode definir-se como correlato do comportamento singular de cada um , relativamente duradouro e estável , enquanto particularidade pessoal do agente , segundo Mezger , citado in Estudos de Homenagem ao Professor Figueiredo Dias , BFDUC , 2009 , I , págs. 76 e 77 , nota 174 , da autoria de Susana Aires de Sousa , sendo o facto ilícito expressão inadequada da personalidade do autor do crime , que só no decurso da vida se torna no que é , segundo Exner , op. cit ., pág. 77.

A personalidade do arguido está caracterizada no relatório social descrito sob o ponto de facto n.º 2154 , mas não pode quedar-se por esse descritivo pessoal , pois ela ressalta complementada por um rol extenso de factos provados e documentados, que permitiram ao douto acórdão recorrido apreendê-la ,configurá-la e sintetizá-la.

É à evidência o que resulta da definição pessoal final ,  a fls . 839 ( págs . 22.649) do arguido , como “co-cabecilha “ , o cérebro , de uma organização , verdadeiramente estruturada , com distribuição de funções entre os cooperadores directos do arguido , que lhe obedecem, temporalmente perdurantes, que cometeu graves crimes e para esse objectivo teve existência , muito embora as instâncias hajam excluído a configuração de uma associação criminosa , que se basta , esse  sendo o entendimento deste STJ , seguindo uma concepção muito menos “refinada “, próxima da realidade, pois que a exigência daquela outra torna o preceito incriminatório quase letra morta , antes bastando, apenas , e só , uma associação de pessoas , no mínimo três ( art.º 299.º n.ºs 1 e 5 , do CP) , com alguma estabilidade , organização perdurante no tempo , que se propõe “ ab ovo “ praticar crimes , assim definida e consagrada, também, nos crimes tributários no art.º 89.º , do RGIT.

O arguido , di-lo o relatório social, é audaz e empreendedor , mas vivendo , essencialmente , do e para os negócios de diversão nocturna, que lhe  asseguraram lucros muito elevados , como era seu inabdicável desígnio , praticados nos seus estabelecimentos e naqueles em que é sócio e, até, de terceiros, para onde , sempre com esse fim,  encaminhava as bailarinas. 

Era ele quem pontificava na organização e todo o esquema de funcionamento ,  em condições ilegais, estando as mulheres  necessariamente  fragilizadas,  pensado ao pormenor para que nada falhasse , tudo rodando  em seu torno, supervisão e hierarquia. 

Deste modo a sua condução de vida é norteada, em vista de vantagem económica , que a sociedade não credencia e a quem causa reprovação e censura , pelo significado de  grave inferioridade  da mulher, que se submete à prática reiterada  de tais actos para melhoria da sua condição económica e familiar –algumas sobretudo as brasileiras sem capacidade económicas , desempregadas, sem dinheiro no seu país, condição de sua família –ponto de facto n.º 875 -deixando o seu país natal, prática essa num clima draconiano , em que o custo das passagens desses países para Portugal e vice-versa , era descontado pelo arguido a partir dos ganhos,  as faltas ao trabalho penalizadas , em que de cada acto o arguido recebia uma percentagem , o mesmo sucedendo com as bebidas oferecidas pelos clientes às bailarinas , deslocadas de estabelecimento de 45 em 45 dias , como regra, confiadas , por vezes , a estabelecimentos à margem do “ Grupo AA“ ou seja , inevitável e indubitavelmente, até pela reiteração,  num ambiente de visível constrangimento, levando, até, agravando-o por algumas vezes (5) à retenção dos passaportes. 

Os imigrantes , como as crianças , as mulheres , os idosos , os doentes mentais, são pessoas vulneráveis, em situação de merecerem protecção à escala mundial , objectivada em Convenções e Acordos internacionais , porque a dignidade da pessoa humana se tornou num direito “ transepocal “ , sendo a pessoa humana elevada a fundamento da sociedade , do Estado e do direito, contendem com a dignidade e o valor da pessoa humana , princípio estrutural da nossa República , consagrado no art.º 1.º, da CRP , e repetidamente afirmado pelo TC ( cfr. A dignidade humana como prius axiomático , de Mário Reis Marques , BFDUC , , 2010 , Vol. Iv , pág. , 548 , nota 29 e 560).

Por seu turno o  arguido eximiu-se ao pagamento ao Estado , ao longo de anos , de um valor muito elevado de impostos , no total de € 1.541.891 , 30 a título de IRS , bem como dos devidos pelos rendimentos auferidos a título de IVA e IRC pelas sociedades em nome das quais agiu.

O conjunto dos factos dá-nos–nos uma imagem global negativa  do arguido , pelo tempo em que perdurou o seu auxílio à emigração clandestina e angariação de bailarinas  mantendo uma vontade criminosa ( dolo )  firme e perdurante no tempo ,um grau de ilicitude elevado , ou seja de desvalor da acção e resultado , tendo em vista o móbil, os  lucros proporcionados pela actuação das mulheres ali deslocadas, o elevado volume de impostos sonegados ao pagamento devido ao Estado e forma ardilosa de o conseguir, os sentimentos revelados, enraízam um uma certa propensão para os crimes preditos , que não é descaracterizada pelo facto de deter um espírito laborioso e audaz e se mostrar inserido socialmente, exercendo uma profissão, a que o facto de não ter antecedentes criminais sem significar comportamento pretérito sem mácula, não obstou ...".

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-11-2013, no Processo 33/05.0JBLSB.C1.S2



Comete um único crime de auxílio à imigração ilegal o arguido que permite que várias cidadãs estrangeiras “trabalhem” no seu estabelecimento comercial na actividade de alterne e prostituição, auferindo desse modo rendimentos para o seu sustento ao mesmo tempo que lhes facilita a permanência no país.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-09-2013, no Processo 68/09.4JAPRT.P1



1 - Quem, por meio de ardil ou manobra fraudulenta levar outra pessoa à prática em país estrangeiro da prostituição ou de actos sexuais de relevo, explorando a sua situação de necessidade, comete o crime de tráfico de pessoas, previsto e punido no artigo 169 do novo Código Penal.

2 - Na aplicação intemporal da lei penal há que optar pelo regime que seja concretamente mais favorável ao arguido (artigo 2, n. 4 do Código Penal).

3 - Quem favorecer a entrada irregular de cidadãos estrangeiros no País, comete o crime de auxílio à emigração clandestina.

Acórdão do STJ de 22-11-1995 - Processo n.º 047502



1 - São co-autores materiais de um crime de auxilio à imigração ilegal os arguidos que em conjugação de esforços, receberam cidadãos da Moldávia munidos apenas de vistos de turistas e os colocaram no mercado do trabalho em Portugal com violação dos Acordos de Schengen, obtendo dessa actividade proventos económicos.

2 - Não constitui qualquer nulidade (insanável ou não) a circunstância de uma das sessões de julgamento ter decorrido sem a presença dos arguidos (que o Serviços Prisionais não apresentaram) e do seu defensor (substituído por defensor oficioso), uma vez que o juiz não considerou indispensável a presença daqueles, sendo certo ainda que já tinham sido interrogados em sessões anteriores.

3 - O perdão, na pena de prisão, concedido ao abrigo da Lei nº 29/99 de 12/5 em nada interfere com a pena de expulsão aplicada aos arguidos.

4 - É de declarar perdida a favor do Estado a viatura em que se fizeram transportar 20 cidadãos da Moldávia para trabalharem ilegalmente na "Expo/98" ainda que tal viatura pertencia terceiros que para tal efeito a alugaram, conhecendo a ilicitude do acto e dele retirando proventos económicos.

Acórdão da RL de 08-06-2000 - Processo n.º 0021065



O crime de auxílio à emigração clandestina, enquanto definido como favorecimento ou facilitação da entrada irregular de cidadãos estrangeiros em território nacional, cinge-se ao auxílio na própria transposição da linha de fronteira a estrangeiros indocumentados, não abrangendo, por isso, os casos de ajuda aos imigrantes ilegais que já vivem em Portugal.

Acórdão do STJ de 27-06-2011 - Processo n.º 01P1915



1 - Quer antes das alterações ao Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, decorrentes do Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro, relativas à expulsão de estrangeiros, quer depois destas, e sem ressalva para residentes ou não residentes - recorrente encontrava-se em situação irregular - ao estrangeiro expulso é vedada a entrada em território nacional por período não inferior a cinco anos (artigo 106º).

2 - Pelos factos praticados e pela irregularidade da situação justifica-se a determinação de expulsão, que nem sequer vem impugnada, fixando-se, porém, o período da mesma em 8 anos - cfr. alínea c) do n.º 1, do artigo 116º do citado Decreto-Lei n.º 244/98 - regime que se considera mais favorável ao recorrente do que o da não fixação de qualquer prazo.

Acórdão do STJ de 23-10-2002 - Processo n.º 02P1890



1 - O DL nº 34/2003, de 25 de Fevereiro, que criminaliza o auxílio à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional, respeitou os limites da Lei de Autorização nº 22/2002, de 21 de Agosto, não havendo aí por isso qualquer inconstitucionalidade orgânica.

2 - A cidadã brasileira que pretende entrar em território nacional, para aqui exercer a prostituição, não está isenta de visto.

3 - Não é inconstitucional a criminalização, no artigo 170, nº 1, do CP95, do lenocínio simples.

Acórdão da RP de 15-02-2006 - Processo n.º 0545889



1 - Dos preceitos legais referentes ao auxílio à emigração ilegal resulta que o legislador, quer no regime definido em 1998 quer no regime definido em 2003, distingue claramente entre a entrada em território nacional e a permanência.

2 - A punição do auxílio à permanência em Portugal foi introduzida só pelo D.L. 34/03.

3 - Se os factos dados como provados se referirem a uma dessas situações e os dados como não provados se referirem à outra, não haverá qualquer contradição.

4 - O art.º 26º do C. Penal consagra o conceito extensivo de autoria cujo fulcro gira à volta da teoria da causalidade adequada.

Acórdão da RC de 11-10-2006 - Processo n.º 8/00.6ZRCBR.C1


Informação adicional


I MULTIMÉDIA - RETORNO, CRIME E CONTRAORDENAÇÕES - Legispédia SEF I DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA - Imigração ilegal e tráfico de seres humanos, Legispédia SEF I DIRETIVA 2002/90/CE do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares I DECISÃO-QUADRO DO CONSELHO DE 28 DE NOVEMBRO DE 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares I PLANO DE AÇÃO DA UE CONTRA O TRÁFICO DE MIGRANTES (2015 - 2020) - Comunicação da Comissão de 27 de maio de 2015 I PROTOCOL AGAINST THE SMUGGLING OF MIGRANTS BY LAND, SEA AND AIR, SUPPLEMENTING THE UNITED NATIONS CONVENTION AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME - Nações Unidas I RESOLUÇÃO DO PARLAMENTO EUROPEU 2013/C 131 E/08 – Sobre a criminalidade organizada na União Europeia, de 8 de maio de 2013 I ORIENTAÇÕES DA COMISSÃO sobre a aplicação das regras da UE em matéria de definição e prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares (2020/C 323/01) - publicadas a 01 de outubro de 2020


I ESTRANGEIROS E DIREITO PENAL – NOTAS: A DELIMITAÇÃO ENTRE OS CRIMES DE TRÁFICO DE PESSOAS, LENOCÍNIO AGRAVADO E ESCRAVIDÃOPedro Maria, Godinho Vaz Patto, Centro de Estudos Judiciários, novembro de 2018 I IMIGRAÇÃO ILEGAL E TRÁFICO DE SERES HUMANOS: INVESTIGAÇÃO, PROVA, ENQUADRAMENTO JURÍDICO E SANÇÕES – Coleção Ações de Formação, Centro de Estudos Judiciários I UNIDADE ANTI-TRÁFICO DE PESSOAS Serviço de Estrangeiros e Fronteiras


Origem do texto


Direito comunitário

Reproduz, com adaptações, o preceituado nos artigos 1.º e 2.º da Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, bem como o artigo 1.º da Decisão-quadro do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares.  O disposto na norma dá ainda cumprimento ao cominado no n.º 1 do artigo 27.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985.



Direito nacional                                    

A tipificação da ilicitude do auxílio à imigração ilegal tem origem no Decreto-lei 59/93, de 3 de Março, à luz do disposto no seu artigo 93.º, sem determinar os seus pressupostos, fazendo referência apenas à entrada irregular e prevendo uma moldura penal inferior. O Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto, nos termos do seu artigo 134.º, faria aumentar a moldura penal, precedendo à introdução da referência à ilicitude do auxílio quando operado “por qualquer forma”. O Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto, na sua última redacção, introduzida pelo Decreto-Lei 34/2003, de 25 de Fevereiro, acrescentou, por via do artigo 134.º-A, a referência às penas aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas, actualmente no n.º 5 da norma.

A norma reproduz, na íntegra, o texto do artigo 134.º-A, da última redacção do anterior diploma, à excepção do n.º 3, que passa a cominar um importante agravamento da moldura penal quando o auxílio seja prestado em condições desumanas ou degradantes ou fazendo perigar a vida ou a integridade física do cidadão estrangeiro.


Procedimento legislativo


Proposta de Lei 93/X do Governo (2006)       

Artigo 183.º - Auxílio à imigração ilegal

1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até três anos.

2 - Se a conduta prevista no número anterior for praticada com intenção lucrativa, o agente é punido com pena de prisão de um a quatro anos.

3 - Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão estrangeiro em condições desumanas ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é punido com pena de prisão de dois  a oito anos.

4 - A tentativa é punível.

5 - As penas aplicáveis às entidades referidas no n.º 1 do artigo 182.º são as de multa, cujos limites mínimo e máximo são elevados ao dobro, ou de interdição do exercício da actividade de um a cinco anos.

Discussão e votação indiciária: proposta apresentada pelo PS de substituição do n.º 2 do artigo 183.º da proposta de lei n.º 93/X — aprovada por unanimidade, registando-se a ausência de Os Verdes, ficando consequentemente prejudicada a redacção da proposta de lei n.º 93/X para este número; Proposta de substituição; O n.º 2 do artigo 183.º da proposta de lei n.º 93/X passa a ter a seguinte redacção: Artigo 183.º (Auxílio à imigração ilegal) 1 — (…) 2 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a quatro anos. 3 — (…) 4 — (…) 5 — (…). Artigo 183.º da proposta de lei n.º 93/X, restantes números, não prejudicados pela votação anterior — aprovados por unanimidade, registando-se a ausência de Os Verdes.




Proposta de Lei 50/XII do Governo (Lei n.º 29/2012)       

Artigo 183.º – Auxílio à imigração ilegal

1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até 3 anos.

2 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.

3 - Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão estrangeiro em condições desumanas ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.

4 - A tentativa é punível.

5 - As penas aplicáveis às entidades referidas no n.º 1 do artigo 182.º são as de multa, cujos limites mínimo e máximo são elevados ao dobro, ou de interdição do exercício da atividade de um a cinco anos.

Discussão e votação na especialidade: artigo 183.º da Lei n.º 23/2007 – A Sr.ª Deputada Ana Catarina Mendes (PS) justificou a alteração as molduras penais em relação às propostas de alteração inicialmente apresentadas pelo PS para as compatibilizar com a revisão do Código de Processo Penal de 2007. Proposta de alteração ao n.º 2, apresentada pelo PS, na versão de substituição – aprovada com os votos a favor do PSD, do PS do CDS-PP e do PEV e a abstenção do BE; Proposta de alteração: 2 — Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos. 3. (…). 4. (…). 5. (…). PPL 50/XII – prejudicada. Redação original da Lei n.º 23/2007:    

Artigo 183.º - Auxílio à imigração ilegal

1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até 3 anos.

2 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.

3 - Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão estrangeiro em condições desumanas ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.

4 - A tentativa é punível.

5 - As penas aplicáveis às entidades referidas no n.º 1 do artigo 182.º são as de multa, cujos limites mínimo e máximo são elevados ao dobro, ou de interdição do exercício da actividade de um a cinco anos.