- Rua da Porta de Portugal

Rua da Porta de Portugal

- Quatro Séculos de História -

por José Carlos Vasques

Antes de D. Sebastião ter visitado Lagos já existia esta rua com o nome de Rua Nova. Se era nova certamente teria sido aberta na altura da construção do baluarte da Porta de Portugal, baluarte que terá tido, também, outro nome. A porta, por ficar voltada a Norte, para o interior do Reino, não podia fugir à regra toponímica que lhe determinava o nome "Porta de Portugal", como era uso naquele tempo.

Ao ser fechado o amuralhado urbano (cerca nova), a Porta de Portugal não podia deixar de ostentar um certo aparato, que um historiador descreve assim, referindo-se à porta: "...tinha duas majestosas colunas de pedra".

A Rua Nova teria nascido a partir dessa Porta para o interior da cidade. Várias indicações permitem-nos admitir que no ano de 1503 (reinado de D. Manuel), a Cerca Nova estaria concluída. D. Sebastião, numa das suas visitas a Lagos, em 1573, terá entrado por essa porta.1

Com o decurso do tempo a rua deixou de ser nova, mas o facto de por ela passar a conduta que abastecia a cidade de água outorgou-lhe nova toponímia passando a chamar-se Rua do Cano.

D. Sebastião, de triste história, cercado de aduladores e espiões de Espanha, monarca jovem e inexperiente, de educação profundamente religiosa ministrada por um membro de uma ordem religiosa criada em Espanha e fortemente implantada por toda a Península, dificilmente dava um passo sem o conhecimento da Corte de Espanha. Urdia-se, com todos os pormenores, a união dinástica, e a coroa dupla para uma só cabeça, a de Filipe II. Alcácer Kibir foi o fim trágico de um rei e de um sonho, e o povo de Lagos chorou por aquele que lhe outorgara o estatuto de cidade, e que das suas areias douradas partira para não mais voltar.

Ficou registado, para a História de Lagos, a passagem do rei menino por essa Rua Nova, hoje Rua da Porta de Portugal.

Ao lado da Porta de Portugal erguia-se, em parte sobre o mar em parte sobre a terra, o baluarte do mesmo nome, defendendo uma posição estratégica num ângulo do amuralhado voltado a Norte e Este.

A antiga Câmara situada onde hoje se encontra a Messe Militar (antigo Hospital Militar), caiu com o terramoto de 1755 obrigando a sua translação para sucessivas instalações provisórias até à sua instalação no edifício actual.

Após a demolição da Porta de S. Roque, foi aberta a Porta Nova em frente à Travessa das Escadinhas, facilitando assim o acesso à beira rio, do pessoal ligado à faina marítima e residentes na Freguesia de S. Sebastião.

A venda do peixe para consumo público era efectuada na lota, em pequenos lotes de pescado, ou na forma ambulante pelos peixeiros (mais concentrados na Freguesia e S. Sebastião, na Rua dos Peixeiros). A Câmara mandou, então, construir uma arcada para a venda de peixe, próximo do edifício dos Paços do Concelho.

Até aos confrontos entre liberais e miguelistas o sistema defensivo de Lagos esteve sempre operacional e, nesta altura, terá evitado um banho de sangue visto estar preparado o assalto à cidade pelos guerrilheiros do Remexido, em colaboração com alguns traidores dentro da praça. O ataque foi repelido com pesadas perdas da parte dos assaltantes.

Dos baluartes desta rua, foram demolidos o de S. Manuel ou da Porta Nova, para construção de um novo mercado de venda de peixe e respectivo acesso a um chafariz, e o da Porta de Portugal e a sua porta, para alargamento da rua ou estrada. O terreno restante foi destinado a um mini jardim que o povo logo baptizou de Jardim dos Amuados devido à disposição dos bancos aí instalados obrigar às pessoas a sentarem-se de costas umas para as outras.

Nesta rua esteve instalada uma das mais antigas fábricas de conservas de peixe, a famosa fábrica da Porta de Portugal. Em 1515 (?) um incêndio que durou oito dias destruiu-a completamente. A violência do fogo foi tal que estalou o lancil de pedra do outro lado da rua.

Um relato da altura, atribui a causa do incidente a um operário que terá entornado junto a uma caldeira um recipiente de combustível que transportava e que logo se inflamou, propagando-se as chamas por todo o edifício. E assim desapareceu uma boa unidade fabril que terá sido também uma das melhores escolas da época, para os soldadores. No espaço até aí ocupado pela fábrica foi edificado o actual mercado municipal. Corria o ano de 1924, assim o atesta a inscrição da sua fachada.

A Câmara Municipal dessa época terá sido, sem dúvida, das mais dinâmicas que este Concelho teve. São dessa altura inúmeras obras de pavimentação de ruas, o Mercado Municipal e o Caminho de Ferro, devendo-se este último à forte insistência junto do Governo. Os autarcas de então possuíam um apurado sentido municipalista que, após a queda da 1ª República, infelizmente se foi perdendo. Para além do executivo camarário existia ainda o Senado, composto por um alargado número de indivíduos representativos das várias classes sociais e das diferentes tendências políticas. À Administração do Concelho, órgão administrativo com algumas funções jurídicas e directamente dependente do Presidente da Câmara competia: disciplinar a cidade na preservação dos bons costumes, na resolução dos pequenos delitos, e velar pelo cumprimento das posturas municipais. Para isso possuía um corpo de funcionários próprio que podia, em caso de necessidade, articular a sua actuação com as autoridades policiais e judiciais.

Com a queda da 1ª República toda a autoridade administrativa das Câmaras se foi esvaindo, culminando o processo de desintegração do poder municipalista com a alteração do Código Administrativo preconizada pelo Estado Novo, um Estado centralista e ditatorial.

A rua continuou a ser movimentada, por ser uma via de acesso ao Caminho de Ferro, Praça da Verdura e Praça do Peixe, sendo ainda a saída da cidade mais utilizada. De aspecto radicalmente diferente do actual, a fisionomia desta zona apresentava edifícios baixos, abundando as tabernas do peixe frito além de uma variedade de outros modestos estabelecimentos, incluindo um pequeno hotel.

Com a construção da Avenida dos Descobrimentos, ou marginal, a Praça do Peixe foi demolida. O Mercado Municipal foi adaptado às novas exigências do abastecimento público e muitos dos estabelecimentos comerciais desta rua mudaram de ramo, e de proprietário, sofrendo adaptações para a actividade do turismo. Hoje, o suporte económico desta cidade.

Extinguiram-se as indústrias que, em tempos, fizeram a prosperidade desta terra. Desapareceram as fábricas de conservas de peixe, a pesca, e uma variedade de actividades correlacionadas. Desta forma, os sectores primários da Economia perderam expressão, dando lugar à indústria do turismo que, não obstante a definição nada tem a ver com actividade industrial mas sim e apenas com o Sector Terciário ou dos Serviços.

Nesta rua, em 1904 (?), junto à antiga Praça do Peixe, foi colocada, pela mão do Rei D. Carlos, a primeira pedra para a construção dum porto interior. Obra que nunca foi realizada. Quando foi demolida a Praça do Peixe ainda se procurou a caixa de lata com as moedas aí deixadas na altura do lançamento dessa primeira pedra. A pobreza do metal das moedas era tal,que não se encontrou mais do que uma amálgama metálica dificilmente identificável.

Aqui, sempre se situaram os mercados

de abastecimento público: junto à Câmara, a arcada de que existe gravura da época atestando a sua localização; na antiga praça do poço, hoje Praça Luís de Camões, funcionou ao ar livre o mercado das verduras. Demolidos os antigos mercados desta rua tudo se concentrou no actual mercado. Devido à sua dinâmica, era nesta rua que se exercia o comércio ambulante, conferindo ao local um ar típico e pitoresco.

A venda da batata doce, cozida no local, em grandes panelões segundo um sistema de cozedura pelo vapor, já que os recipientes possuíam uma grade com furos que evitava o contacto do fruto com a água. Inesquecível, a textura macia da batata e o aroma adocicado da erva doce utilizada como condimento, logo ao raiar do sol, à laia de "mata bicho" para os trabalhadores da madrugada. A acompanhar, uns copos de aguardente de medronho.

Após a construção da avenida marginal, foi construída a Estação dos Correios que, segundo os entendidos, é exemplo de uma arquitectura pobre. Projecto imposto, não se sabe por quem, que o terá acolhido após rejeitado noutro município.

A Norte do baluarte existiam os estaleiros navais, que até 1960 ainda aí funcionaram, e a Este, do outro lado do rio, o arraial das armações que pescavam na baía ou nas proximidades. Merece relevo a importância deste baluarte não só sob o ponto de vista militar como pela defesa que permite dessa importante zona de actividade económica da cidade.

Não se sabe, com exactidão, como seria o estuário da Ribeira de Bensafrim nessa época, elemento fundamental para avaliar a real importância da rua. Sabe-se que o estuário, ou estuário-laguna, foi sofrendo ao longo dos tempos um processo de assoreamento gradual, com períodos de maior amplitude do fenómeno, consoante a intensidade das chuvas. A Serra do Espinhaço de Cão, como o seu nome indica, deve a sua configuração à semelhança com a espinha de um cão de estrema magreza. Aí, a erosão do solo, provocada pelas chuvas, agravada pela falta de conveniente arborização, proporcionou a deslocação de enormes massas de terra barrenta e detritos que vieram depositar-se no estuário da Ribeira, aliando-se às areias trazidas pelas marés, diminuindo a profundidade e comprometendo a sua navegabilidade, constituindo-se, por outro lado, um fundo lodoso.

Hoje, quando as chuvas são mais intensas a água barrenta tinge toda a ribeira e estende-se várias milhas pelo mar. Não há, em léguas em redor, outro curso de água onde o fenómeno assuma esta intensidade. Uma contrariedade da Natureza a esta nossa terra, que com o decorrer do tempo, tornou cada vez mais inoperante o seu porto interior.

Quanto à arborização ou reflorestação da zona serrana, que tanta madeira deu para a construção naval, esta nunca aconteceu, nem tão pouco constituiu preocupação das autoridades que, acredito, nem sequer tiveram consciência do prejuízo que daí adviria no futuro. Todavia, num documento resgatado à fúria destruidora de um Vereador da Câmara Municipal de Lagos, que nos finais dos anos 70 ordenou a destruição de grande parte dos arquivos municipais, documento esse datado de 1849, e que constitui quase um tratado de ecologia, são evidenciadas as enormes vantagens da arborização.

Quando da estadia de D. Sebastião em Lagos a rua já tinha várias moradias, dum só lado, pois do outro existia uma alta muralha que unia os baluartes ribeirinhos, o da Porta de Portugal ao de S. Manuel e este à Porta de S. Roque. Assim, na rua, não muito distantes um do outro, existiam os dois baluartes, o da Porta de Portugal e o de S. Manuel sendo este mais tarde nomeado da Porta Nova quando esta foi aberta para o rio, após a demolição da Porta de S. Roque.

Muitas embarcações vinham fazer aguada à bica existente nesta rua, depois de concluído o aqueduto do Paúl da Abedoeira, construído por ordem do rei D. Manuel para prover a cidade de água potável. Tratou-se de uma obra de grande valor para a cidade e não só, pois o rei mandou informar todas as nações amigas que se dedicavam ao trato mercantil e à navegação na nossa costa, deste benefício ao seu dispor.

É notável como obra de engenharia, para aquela época, atendendo a algumas particularidades da sua concepção: extensão de 4.430 metros; desnível de dois centímetros por cada cem metros; 4 horas para a água percorrer esta distância, o que atesta a fraca aceleração do caudal.

Iniciada em 1490, no reinado de D. João II e concluída em 1521, no de D. Manuel, esta obra que durou 31 longos anos, esteve parada no reinado de D. Manuel obrigando o povo a "bater o pé" ao monarca nas Cortes de Évora, para que a sua conclusão se realizasse. Este bem público veio beneficiar extraordinariamente a cidade que possuía apenas poços intra-muralhas de água salobra. Logo que a água chegou à cidade foram construídas as bicas para a população se abastecer e os bebedouros para os animais. Os aguadeiros passaram a desenvolver a sua actividade de distribuição ao domicílio com maior comodidade e rapidez e todas as habitações estariam providas, por certo, com a sua cantareira.

A rua desembocava no Largo da Ribeira das Naus, não existindo ainda o actual edifício dos Paços do Concelho, e a Câmara Municipal situava-se no Largo da Ribeira dos Touros, hoje Praça da República ou do Infante, tendo á sua frente a Igreja da Misericórdia, de Santa Maria, possivelmente capela nessa altura, pois dizem ter funcionado como tal no Palácio dos Governadores.

Ao invés, o nosso Mercado Municipal é um edifício que marca uma época de arquitectura simples, bonita e funcional. As portas, com ferro trabalhado, têm sido motivo de elogios por parte de entendidos e deverão integrar o património da arquitectura do ferro forjado, actividade bem representativa da nossa cidade.

A rua de hoje tem um aspecto diferente de outrora, perdeu a identificação de uma cidade de pescadores e conserveiros. É uma zona de lazer, quer diurna, quer nocturna. Muito iluminada, com a sua sementeira de globos de vidro que, de uma vista mais elevada, parece um céu estrelado. Tudo se vai modificando e até a luz que outrora iluminava o chão, agora é para ser apreciada das alturas. As gaivotas, com tanta iluminação, alteraram os seus costumes e num frenesim de gritos e pios vão acompanhado os noctívagos frequentadores de boites e bares, estrangeirismos que vieram substituir as nossas tabernas.

Umas fontes com repuxos puxam e esguicham a água em "circuito fechado", equipamento disponibilizado para os noctívagos suavizarem a ressaca, a altas horas da madrugada, é o "curtir".

Um quadro electrónico, em duplicado, vai dando conta das horas e das temperaturas, e outras utilidades, advertindo os munícipes dos seus direitos e deveres mas, com tantas intermitências, que as pessoas, sobretudo os mais vividos, vão duvidando desta era da electrónica.

Espero que tenham apreciado este pequeno passeio. A rua, essa, merece muitos mais passeios, muitas mais histórias e... muito mais atenção.

1 - Itinerário de El-Rei D.Sebastião - p.268

A Porta de S. Roque, onde hoje se encontra o edifício da Câmara, dava passagem aos marítimos e outros trabalhadores que no outro lado do rio davam assistência às armações. Esta porta ficava em frente à Ermida de S. Roque, situada na outra margem do rio e cuja fundação é atribuída a milaneses e sicilianos que desde o reinado de D. Afonso III vinham pescando na nossa costa. Tendo sido erigida na outra margem do rio, a ermida atesta a dinâmica da ocupação dessa área, havendo, por outro lado, provas da existência de um estaleiro naval que aí laborou até 1930. Num armazém aí situado, ainda podemos observar vestígios dessa ermida.

Da descrição efectuada resulta uma imagem inequívoca de uma rua bastante animada, ao longo de toda a sua história, mesmo antes da construção do edifício da Câmara que ostenta uma data errada na verga de pedra da sua porta principal, pois é certo que a demolição da Porta de S. Roque foi efectuada em 24 de Abril de 1832 e só depois desta data poderia ter sido construído, nesse local, o edifício da Câmara.

Os tempos mudaram, os problemas de trânsito e outros foram surgindo e as soluções, não sendo as melhores,

permitiram as agressões ao património edificado.