- Ao toque da Sirene, Apontamentos sobre a Indústria Conserveira em Lagos

No alvor do século XX (1908), Lagos liderava o arranque do processo de industrialização conserveira no Algarve com 10 unidades instaladas, contra 3 em Portimão, 1 em Albufeira, 2 em Faro, 7 em Olhão e 6 em Vila Real de Santo António. Em 1920 existiam em Lagos cerca de 32 fábricas, mas em 1938 o Anuário Comercial de Portugal referenciava apenas as seguintes: Algarve Exportador, Ltd; Aliança Fabril Lacobrigense, Ltd; Alpapito Murtinheira, Arez & C.ª; António da Silva Freitas; Établissements F. Delory; Fábrica de Conservas S. Gerardo, Ltd; João António Júdice Fialho (Viúva e Herdeiros de); Joaquim de Azevedo Santana; José Gonçalves Nunes; Luz Industrial Ltd; Paolo Cocco.

Lagos exportava peixe da sua costa, já desde a época romana. O garum, por exemplo, era envasilhado em ânforas de barro, depois de moído e curtido pelo sal, e embarcado nas galeras rumo aos mais importantes pontos do império. Com o tempo as vasilhas de madeira tomaram o lugar das de barro e barricas de várias dimensões transportavam atum, cavala e sardinha salgada para diversos destinos, sobretudo europeus. Da Idade Média à Época Moderna, assim se enviou o nosso pescado para as longínquas paragens da Europa e do Mundo que as caravelas portuguesas iam descobrindo.

Na segunda metade do século XIX o progresso tecnológico da nova vaga de industrialização traduz-se no aparecimento de um novo conceito, a fábrica. A instalação de centros industriais no Algarve, iniciada na década de oitenta desse século, veio operar uma enorme transformação social e económica, e a indústria conserveira foi um dos sectores que contribuiu para essa transformação. A primeira fábrica de conservas de atum em azeite, implantada em Portugal, surgiu em 1879, em Vila Real de Santo António.

Em Lagos, a primeira fábrica terá surgido em 1882 pela mão de uma grande empresa francesa, a "Établissements F. Delory" com sede em Lorient, na Bretanha, e que também se estabeleceu em Setúbal (1880) e em Olhão (1881).

Com o aparecimento da folha-de-flandres, passaram a fabricar-se embalagens nesse material, muito mais leve e versátil do que aqueles até aí utilizados. Em 1886 já existiam em Lagos cinco unidades fabris operando com latas.

Na fábrica, as operárias procediam às operações de descabeçar e esviscerar o peixe que seguia depois para os pios da salmoira onde ficava o tempo necessário. Seguidamente o peixe era frito em azeite ou óleo, enxugado, e embalado em latas cujo tampo era soldado.

A sirene da fábrica era o sinal esperado, anunciando a chegada de peixe fresco. Então, um exército de mulheres corria para a fábrica, na esperança de serem escolhidas para trabalhar; eram elas a principal força de trabalho desta indústria, desenvolvendo frequentemente a sua actividade em condições deploráveis.

Uma evolução importante na indústria das conservas consistiu na alteração do processo de fritura para o da cozedura em que o peixe passou a ser literalmente cozido no vapor. Depois de amanhado seguia em grelhas para os cozedores ou cofres onde era submetido ao vapor. No fim da linha de produção, após o enlatamento, as conservas eram esterilizadas a uma temperatura superior a 100ºC, em autoclaves de vapor alimentados por enormes caldeiras com fornalha de lenha.

Envolvidas neste processo surgiram actividades subsidiárias e sucedâneas das fábricas de conservas de peixe, como as fábricas de vazio que fabricavam as latas e os tampos, as fábricas de chaves para as latas, as litografias que imprimiam as caixas e os rótulos, e as fábricas de farinhas de peixe, entre muitas outras como as companhias de armadores de pesca. Quem frequenta a Meia Praia, numa parte do areal que antes correspondia à Praia de S. Roque, pode admirar as ruínas de uma antiga fábrica de farinha de peixe, propriedade de Francisco Brígido Gonçalves, que em Maio de 1956 obtém autorização da Direcção-Geral dos Serviços Industriais para aí instalar uma prensa hidráulica.

O início do declínio das pescas, a inexistência de uma rede funcional de frio e a diminuição da competitividade comercial das conservas nacionais nos mercados estrangeiros, foram os principais factores que no final dos anos 70 do século XX anunciaram o fim da epopeia das fábricas de conservas no Algarve. Porém, a queda desta indústria não teve o impacto negativo que seria natural noutras conjunturas, mercê do desenvolvimento de outra indústria, mais moderna, que vende o Sol em praias e piscinas e substituiu as velhas fábricas por modernos hotéis, villas e apartamentos: o Turismo, que despontou nos anos 60 e se alcandorou a actividade destacada da economia algarvia. Dessas fábricas resta a nostalgia da azáfama a que o toque da sirene dava início.

Consultas:

- VASQUEZ, José Carlos, “Contributos para as Memórias de Lagos” – Grupo Amigos de Lagos, 2008

- JUBILOT, Andreia - Guia Arquitectónico de Olhão - Universidade do Algarve, 2004

- ANDRADE SANCHO, Emanuel , “Traje do Algarve – Orla Marítima”, Museu Nacional do Traje, 2001

- APOS – Museu Fotográfico de Olhão, em linha http://www.olhao.web.pt/museu_fotografico_de_olhao.htm

- SILVA, Marco – “Lagos no Anuário Comercial de Portugal, Ano de 1938”, em linha http://www.fcastelo.net/cemal/marco.html

- Boletim da DGSI – Ano VIII – Nº 389 – 13 Junho 1956

- “Mulher – Operária Conserveira” – Catálogo da Exposição – Câmara Municipal de Lagos, 2005

A introdução da máquina de cravar tampas nas latas, a cravadeira, veio aumentar a capacidade produtiva embora tenha gerado grande perturbação e o desaparecimento dos soldadores, até então a profissão melhor remunerada desta indústria.

O processo de fabricação da conserva cumpre as seguintes fases: recepção do peixe; descabeço/evisceração; lavagem, salmoura; engrelhamento; secagem; cozedura; enlatamento; azeitamento; cravação; lavagem; verificação; embalagem; armazenamento.

Não era apenas o peixe que se enlatava. Em 1939, a Sociedade de Conservas Aldite, laborando no alto de Santo Amaro, perto do actual Mercado Municipal, fabricou e exportou berbigão em conserva, com rótulo em castelhano “berberechos”, destinado certamente ao mercado hispânico. Porém, o sucesso alcançado não foi duradouro, provavelmente devido à muita mão-de-obra envolvida.

Onde hoje se ergue, imponente e reabilitado, o Mercado Municipal da Avenida, edificado em 1924, funcionou uma fábrica de conservas de peixe. A afamada Fábrica da Porta de Portugal terminaria a sua actividade na sequência de um grande incêndio que por volta de 1915 a destruiu por completo.