- A Grande Casa do Catalão

Não tendo sido possível indagar quem mandou construir essa casa agrícola que dista da cidade de Lagos em cerca de cinco quilómetros, outros dados e factos se podem, porém, reunir. Numa pedra lá existente grava-se a data de 1875, o que dá a perceber ter havido grandes obras, pois o que foi feito na data referida superioriza outras construções do conjunto.

O que se sabe é que os proprietários que lhe deram vida e benfeitorias eram da família Júdice, originária da Córsega italiana, terra de Napoleão Bonaparte.

Família abastada, proprietários, industriais, negociantes e exportadores com actividades em Estombar, Mexilhoeira da Carregação, Lagoa, enfim, por todo o Algarve (v. Monografia de Estombar de Athayde de Oliveira).

O último proprietário, conhecido das gerações actuais, foi o major David Rodrigues Neto e, hoje, são os seus descendentes.

Falar desta propriedade agrícola é também fazer um pouco a história da agricultura da nossa região. As instalações tinham que servir uma actividade rural diversificada e uma agricultura polivalente que exigiam armazéns para os cereais (celeiros), ramadas para os gados, tulhas para os figos e amêndoas, adegas e obviamente as residências do proprietário e do caseiro. A zona envolvente, formada por terrenos secos obrigou à construção de uma enorme cisterna para aproveitamento das águas pluviais, que uma rede de algerozes recuperam e encaminham a partir dos telhados. No celeiro principal ainda se pode observar o sino que badalava as ordens laborais, ecoando pela vasta propriedade.

O maior rendimento desta exploração adveio da cultura da figueira, da amendoeira e da vinha, sem contudo deixar de parte os cereais que sempre tiveram papel importante na economia do agregado rural. Grande, foi a quantidade de terreno desbravado nesta propriedade, tal como em vastas áreas das freguesias de Barão de S. João e Bensafrim. A pedra recolhida, calcária, foi aproveitada para o fabrico de cal, matéria de larga aplicação na construção civil – tal como nas fortificações, em tempos mais remotos da nossa história. Hoje, não resta um único forno de cal em actividade no concelho de Lagos, nem conheço nenhum em toda a zona do barrocal (do barro e da cal) algarvio.

Celeiro

O figo produzido nesta propriedade foi, em tempos, uma grande fonte de rendimento, sendo exportado para toda a parte. Hoje, é difícil encontrá-lo nos supermercados.

Os fumeiros para a preparação deste fruto seco são referenciados desde a época em que o Infante D. Henrique por cá andou.

Breve consulta à história do Algarve revela que esta província era um potentado na produção de passas, devido ao clima generoso - longos dias de sol e reduzido período de chuva.

A preparação dos frutos secos requeria uma atenção especial e mobilizava, nessa época, muita mão de obra. Até à sua expedição, em embalagens manufacturadas com folhas de palma (planta expontânea e abundante na região), o fruto percorria um circuito tão intrincado que deu azo ao dito "passar as passas do Algarve" referente a quem atravessa uma fase atribulada na vida.

Mas foi o vinho que deu fama à Casa Agrícola do Catalão e à sua história que caída no esquecimento merece, muito justamente, ser recordada.

Adega

Quando se afirma que o Algarve nunca foi uma região de grande produção vinícola, incorre-se num erro crasso que atesta total desconhecimento da nossa história, desde o período dos Descobrimentos. Que o Infante fosse abstémio é uma coisa, agora que as caravelas não levassem o seu aprovisionamento de vinho, é uma falácia. Aliás, esta cultura ocorreu ao longo da história em toda a orla mediterrânea europeia, mercê da doçura, e grau alcoólico, das uvas criadas neste clima soalheiro. Os vinhos da nossa região possuem essa preciosa propriedade que é o facto de ganharem qualidades com o seu envelhecimento. As uvas têm nomes portugueses mas a sua origem perde-se no tempo. Certo, é que as castas foram-se adaptando às condições geográficas e climatéricas, aperfeiçoando e ganhando resistência para a sua sobrevivência e continuidade.

Segundo a Enciclopédia de Aplicações Usuais ( João Bonança – 1903), as castas são as seguintes: para o vinho branco: manteúdo, boal, perrum, crato ou tamarez e moscatel; para o vinho tinto: pau-ferro, crato preto, bastardinho e trincadeira; para os rosados: negra mole. Estas castas ainda existem nas vinhas, conferindo alguma qualidade aos vinhos actuais não obstante a sua "adulteração regional" devido à introdução de castas exógenas. Uvas que acusam uma graduação alcoólica entre 15,5º e 21,4º certamente têm que sofrer uma redução de grau para poderem ser consumidos como vinhos de mesa. Das castas referidas destaca-se a tamarez de que a sabedoria popular referenciou a qualidade, através da seguinte quadra: Tamarez, não o vendas/ Não o dês/ Que para vinho/ Deus o fez. Há a distinguir ainda uma casta que não sendo filha de algo (fidalga), é verdadeiramente nobre pela excelente qualidade do vinho que produz, trata-se do bastardinho.

A Casa do Catalão produzia muita uva bastardinho e isso valeu-lhe notoriedade junto dos produtores nortenhos que aqui vinham comprar os vinhos desta e de outras castas mais ricas para depois lotearem com os seus de baixo teor alcoólico.

Após os grandes surtos da filoxera - insecto voraz que destruiu grande parte dos vinhedos do Alto Douro entre 1858 e 1863 - nas vinhas do Catalão (poupadas ao desastre) as reposições foram feitas com bacelos resistentes à praga, por precaução.

O bastardinho foi sempre preferido para vinhos abafados, ditos licorosos. Os proprietários do Catalão estabeleceram um contrato com um vinicultor do Norte para aqui vir preparar os vinhos segundo a metodologia da sua região, o acordo funcionava em regime de maquia. O êxito foi tal que o contrato manteve-se durante muito tempo.

Há anos atrás, o proprietário do Hotel Bela Vista, da Praia da Rocha, confidenciou a um seu empregado que possuía um lote de garrafas de vinho licoroso bastardinho que, quando participava em provas de qualidade ao lado de outros especiais, ficava sempre em lugar cimeiro (segundo cita o senhor António Júdice de Magalhães Barros).

A Casa do Catalão possuía vasilhame de madeira de grande capacidade que foi entregue à, então, recém criada Adega Cooperativa de Lagos. Porém, para retirar do local os imensos tonéis foi necessário alargar as portas da adega que os albergava. Posteriormente a Cooperativa mandou proceder às necessárias reparações (por tanoeiros nortenhos) e eis que, para surpresa do mestre tanoeiro este descobriu que alguns dos tonéis tinham os tampos em mogno de Cuba, madeira muito antiga pois que o arvoredo dessa ilha foi devastado, há muito, para dar lugar às extensas plantações de cana do açúcar e de tabaco.

O vinho bastardinho ganhou tal fama que quando uma pessoa se encontrava enfraquecida, dava-se-lhe a tomar uma mezinha ou uma espécie peitoral, preparadas a partir do dito néctar.

A adega do ilustre médico lacobrigense Dr. António Júdice Cabral também fabricou excelente vinho bastardinho, indo muita gente à Rua da Barroca comprá-lo para fazer as tais mezinhas.

Lagos é uma terra de grandes tradições, hoje bastante minguadas em favor das modernices das vagas de turismo que a assolam. Até a Rua da Barroca, ex-libris da cidade, já ostenta decoração original que identifica uma entrada – ou saída – de restaurante oriental.

Chinesices.

©JoséCarlosVasques/CEMAL