- Lagos, a Água e os Aguadeiros

Lagos, a Água e os Aguadeiros

Crónica da Água

Desde a antiguidade remota o problema da água sempre foi uma fonte de preocupações. Conta a história que “Quinto Cecílio Metelo Pio, cônsul Romano, no ano de 76 a.C. bloqueou esta cidade e conseguiria a sua conquista se Sertório, governador das Espanhas não lhe acudisse” [a Lagos]. “Quando o cônsul, depois de ter cortado as águas, julgava a praça vencida pela sede, pois que dentro da Lacóbriga só então havia um poço, Sertório animava e premiava 2.000 bravos cavaleiros da Lusitânia e África que trazendo cada um o seu odre d’água à garupa, tinham rompido o cerco e socorrido os sitiados... Com tanta facilidade conseguiram por esta forma o socorro da praça que Metello envergonhado se retirou para a Andaluzia” (in Paulo Rocha – Monografia de Lagos).

Sabemos hoje, em consequência de pesquisas arqueológicas há muito feitas, e por vestígios que o acaso revelou, que nos leitos das duas ribeiras, a dos Touros e a das Naus, se construíram pequenas barragens com a finalidade de reter as águas correntes durante o período chuvoso. Fizeram-se barragens na Boca do Rio, e na Luz. Para além do abastecimento para consumo doméstico, também o fornecimento de água às indústrias de salga de peixe, fabrico de ânforas e para as olarias em geral, constituíram as razões para edificar represas de água.

Uma das barragens mais conhecidas da antiguidade, porque bem à vista de todos, foi a da Fonte Coberta, que consta ter alimentado um aqueduto que conduzia o precioso líquido até à urbe. Diz-se ainda que essa água corria por manilhas de grez. O poço da Fonte Coberta que se julga ainda existir, aberto a jusante da barragem, era muito farto de água de excelente qualidade.

Houve sempre uma preocupação dos governantes em fornecer água potável aos governados constituindo esse factor uma incontornável obrigação e, simultaneamente, um incentivo ao progresso, além da satisfação de uma necessidade primária da comunidade.

Os Chafarizes d’El-Rei de inegável beleza arquitectónica e muito difundidos por todo o país em Lagos não existiram e mesmo os tradicionais que tivemos foram de traça muito modesta. Às iniciativas da coroa e das autarquias, obrigadas a acompanhar a força do desenvolvimento e do crescimento populacional, e colocar à disposição das comunidades os meios de sobrevivência juntavam-se as iniciativas populares (que hoje se diz privada), quer abrindo poços e fazendo minas quer aprisionando as águas correntes nas linhas de escoamento, com vista a minorar a situação de escassez, recorrente nas épocas estivais. E assim foi desde tempos remotos.

Dada a sua constituição geológica do subsolo (miocénico marinho) e ainda devido à proximidade do mar, a água dos poços tende, com raríssimas excepções, a ser salobra.

No reinado de D. João II, em 1490, iniciou-se uma grande obra: a construção do aqueduto para abastecimento da cidade com proveniência do Paul da Abedoeira onde a água era tanta que corria à superfície. Morreu o rei João e a obra não prosseguiu, até que já no reinado de D. Manuel o povo insistiu nas cortes de Évora, e a obra lá foi retomada e concluída no ano de 1521, pese embora o sacrifício financeiro que recaiu sobre as gentes de Lagos. E o Venturoso, resplandecente na sua glória de monarca invejado mandou avisar as nações que por aqui faziam rota marítima, que podiam fazer aguada em Lagos. Esta construção, feita de paragens e muitos revezes de toda a ordem durou 31 anos a ser concluída. Construção admirável com cerca de 4.430 metros de extensão e um desnível mínimo de escassos centímetros que obriga a água a um percurso de cerca de duas horas até chegar à Praça Gil Eanes. O primitivo fosso, com as bicas, construído no centro da praça e pronto em 12 de Julho de 1521 foi posteriormente relocalizado em frente ao edifício da Câmara, num novo fosso com 7 bicas de bronze, isto no ano de 1872. Em 1931 deu-se novo arranjo tendo o pavimento da praça subido para a cota que hoje apresenta e o fosso com as bicas foi destruído.

Não se conhece com exactidão o local onde os barcos faziam aguada mas a tradição oral refere a existência da calha para fornecimento das embarcações como proveniente de uma chafariz junto ao baluarte de S. Manuel (ou da Porta Nova), em frente às escadinhas da Rua Dr. Faria e Silva.

O aqueduto foi sempre alvo de agressões e roubos de água, ao longo do seu trajecto, por falta de fiscalização eficiente e de penalizações aos prevaricadores. Em 19 de Maio de 1840 a Câmara mandou proceder ao encanamento do aqueduto com ladrilhos.

As autarquias tiveram, e têm, um papel importante na defesa das populações no que toca ao fornecimento do líquido precioso que é a água, quer no que concerne à quantidade quer à qualidade, sendo primeira prioridade sobre todas as outras atribuições.

Nas regiões com grande irregularidade pluviosa os períodos de seca tornam-se frequentemente terrivelmente calamitosos que por vezes culminam numa sucessão de desgraças: fome, doenças, conflitualidade agravada, etc.

Por isto se compreende a importância das obras visando o aproveitamento da água e sua colocação ao serviço das populações. Também justificam a execução de marcos fontenários e tanques próprios para os animais beberem, pois todos os seres vivos necessitam dela. Nos campos, mais do que nos centros populacionais, a falta de água muito se fazia sentir. Os proprietários e as demais gentes ligadas ao mundo rural tomavam a iniciativa de abrir os conhecidos barreiros, charcos ou poções, nas linhas de água, retendo-a para abastecimento de gado e animais domésticos. Aí se observavam aves e outros animais bravios bebendo. E não havia entraves a essas construções temporárias, nem sentenciosos que desaconselhassem tais práticas.

Em Sagres, são célebres as maretas de beber e de lavar, que se dizem vindas do tempo do Infante D. Henrique, construídas para o aproveitamento das águas da chuva. O seu uso era importante nas fortificações militares: castelos, fortins, fortalezas e outras e, também, nas casas agrícolas, quando não havia possibilidade de obter água por outros meios.

A depuração das águas paradas foi sempre, e continua a ser, motivo de grande preocupação. Nos barreiros, o camponês espalhava pela superfície da água cal em pó e depois cisco de carvão vegetal matando assim os vermes que viviam na água. Também as águas das chuvas, antes de entrarem nas cisternas passavam por ampulhetas de cascalho miúdo para reter as impurezas.

Em Lagos, durante o século XIX e grande parte do XX, com a instalação das fábricas de conservas de peixe, tanto em salga como em molho de azeite, o problema crucial foi garantir a existência de água em condições. O abastecimento de água ao domicílio só foi implementado nos anos 30, embora parcialmente, pois só nos anos 60 foi concluído.

Durante quatro séculos as bicas da Parca do cano estiveram à disposição das gentes, que aí acorriam dia e noite. O povo vinha aí abastecer-se, bem como os aguadeiros. Não há memória do precioso líquido alguma vez ter faltado, mesmo durante os períodos de grandes secas, que os houve também.

O progresso impõe-se pela sua própria natureza, é apenas uma questão de tempo, umas vezes mais lento, outras mais rápido. Em 1927, com a construção da central eléctrica, com vista à iluminação pública e particular, e para proporcionar noutros domínios, o desenvolvimento da cidade, foi posto em execução um plano para a rede pública de água ao domicílio. Foi então feita uma estação de bombeamento da dita central, e construído no baluarte de S. Maria (ou Porta da Vila), cuja cota dominava toda a cidade, um reservatório com capacidade para 600 metros cúbicos de água. Porém, devido aos custos serem incomportáveis, para a cobertura total da rede domiciliária, até ao ano de 1932, construíram-se as casinhas da água em pontos estratégicos do acesso à cidade: Porta de Portugal, Porta dos Quartos e Arco da Praça de Armas. Hoje, pode admirar-se a casinha da água da Praça de Armas que constitui um monumento e marco de uma época. Sendo a única que chegou aos nossos dias e pelo requinte da sua traça cabe referir os seus obreiros, que foram: desenho – agente técnico Jaime Palhinha (func. da Câmara Municipal); construtor – mestre Augusto dos Santos Canelas.

A casinha da água tinha a seu lado um tanque, sempre cheio, para os animais beberem, uma torneira com um tubo exterior para encher os cântaros e um outro tubo exterior em curva, do qual pendia uma mangueira, para encher vasilhas de grande capacidade transportadas em carretas ou outras viaturas. Havia ainda um púcaro de esmalte, preso por uma corrente, para as pessoas poderem beber.

Depois de todo este empreendimento a água passou a ser paga, mas a preços baixos. As senhas podiam ser pré-pagas, constituindo uma receita da Câmara. Os aguadeiros compravam e vendiam água (ao domicilio), como já faziam antigamente.

Como já se referiu, na execução destas obras o fosso existente junto ao edifício das Câmara foi aterrado.

Com o desenvolvimento da indústria conserveira o peixe passou a ser cozido no vapor (nas primitivas fábricas, conhecidas por “fritos”, o peixe era frito em azeite ou óleo antes de ser enlatado). Ora a água que abastecia a cidade, sendo boa para beber, não era muito indicada para as caldeiras de produção de vapor, por ser muito calcária, dando origem a constantes reparações. Adoptaram então a recolha das águas das chuvas em cisternas, para esta utilização. E a da rede e de poços existentes é que se manteve para os demais usos.

Nesse tempo não se falava, como hoje, do negócio das águas, nem de sumos. Os únicos preparados existentes eram as gasosas e os pirolitos, que o povo classificava como bebidas “arrotativas”. As gasosas tinham a rolha presa por um cordel que se cortava para esta saltar. Os pirolitos tinham no interior uma esfera de vidro que, com a pressão contra um empanque de borracha, vedava a garrafa. Para beber, pressionava-se o berlinde para baixo, com um pauzinho.

Até à década de 50 os aguadeiros venderam água ao domicílio e tinham como grandes colaboradores os burros que se adaptavam muito bem a este trabalho. O Manuel aguadeiro, personagem muito conhecido, exercia a sua actividade na Freguesia de Santa Maria e deixou na memória de muita gente a imagem de um burro, que tinha, muito manso mas muito sensual e impetuoso também, pois mal lhe cheirava a burras nas proximidades logo se empinava sobre elas não respeitando sequer quem nelas estivesse montado. Muitos prejuízos causou ao dono, mas o povo divertia-se e adorava o triste animal, numa época muito difícil em que tudo era racionado, menos a água, claro.

Antes de 1960, o Estado construiu várias barragens para incentivar certas culturas, entre elas a da Bravura do Concelho de Lagos, com um perímetro de rega bastante vasto que ultrapassa os limites do concelho. Já há alguns anos que esta água serve para abastecimento público de Portimão primeiro, e de Lagos mais recentemente. No padrão evocativo da sua inauguração está esta frase “a água é o sangue da terra”. Mas a água de hoje é para beber, ou para regar campos de golfe, e a terra vai ficando sem esse sangue, e sem ele não há agricultura.

Em 1960, a Câmara de Lagos viu-se preocupada com o abastecimento de água visto o Turismo introduzir uma enorme procura, bem como devido ao crescimento da construção na periferia da cidade. O velho aqueduto estava muito arruinado (chegou a ter perdas de 50%) e o seu débito era insuficiente para as exigências da cidade, pelo que teve que ser muito reparado, e foram abertos novos furos para captação de mais água.

Entre 1960-1963 a autarquia desenvolveu uma obra importante e não se coibiu de publicitar essa acção através da publicação de um opúsculo intitulado “Quatro Anos na Câmara Municipal” que é um incontornável contributo para a história de Lagos nesse período das Comemorações Henriquinas”.

Este precioso líquido assume-se como um negócio apetecível para os investidores pois encontra-se no topo dos produtos mais essências à vida (logo a seguir ao ar que respiramos). As autarquias, favoráveis a esse comércio, vão-se esvaziando de compromissos e de competências. Li recentemente nos jornais: “Lei da Água – A nova lei quadro da água criou uma autoridade nacional, cinco administrações de recursos hídricos, e retira às ex-direcções regionais do ambiente a fiscalização da qualidade da água, que passa a ser feita pelo Instituto da Água...” E como é constituído esse Instituto da Água? Pois... é constituído pelas cinco administrações desses cinco organismos... privados (?!).

No dia 31 de Maio de 2005 realizou-se em Lagos uma Sessão Pública de Esclarecimento Sobre o Abastecimento de Água, promovida pela Empresa Águas do Algarve e pela Câmara Municipal de Lagos, e com o sub-título: Sensibilização para a Moderação do Consumo. Tratava-se chamar a atenção para a poupança da água a fim de minorar os efeitos da seca de há muitos meses. A reunião foi bem representativa a nível técnico, com vários e diferenciados profissionais do sector, destacando-se o representante da Águas do Algarve, S.A.

Vários técnicos falaram, expuseram as suas ideias, referiram algumas das obras por realizar, elaboraram sobre a qualidade da água fornecida e o seu controle rigoroso, apresentaram muitos gráficos e muito números, tudo verdadeiramente muito bonito e em projecção tecnicolor, mas muito é obra dessa “propaganda informática” que os computadores possibilitam hoje.

Seguiu-se a intervenção do público, com debate que espelhou algumas críticas, por vezes quase personalizadas mas, a questão mais importante não teve o necessário tratamento: E se as condições continuarem adversas e as obras (que tardam) não resolverem a situação do abastecimento de água, como vai ser?

No final, numa tirada peremptória o representante da AA referindo-se às preocupações fundamentais dessa empresa revela: “A Águas do Algarve, S.A. compra e vende água!”. Por entre o curto burburinho que se seguiu ao silêncio inicial ouviu-se, então: “Prontos! Temos aqui os aguadeiros do séc. XXI”.

Os aguadeiro constitui, em certa medida, um estereótipo de época, com a sua “viatura” (que transportava os cântaros de água, puxada pelo burro, às vezes por uma parelha em que o mais novo era “aprendiz”), e a esta condição de tipo social não será alheia a importância que temos vindo a atribuir, ao longo deste artigo, ao bem fundamental, primordial, e imprescindível que sempre foi a água.

Com a evolução natural os cântaros de barro foram sendo substituídos por outros em folha de ferro zincado, material mais leve, não quebradiço, mas menos “climatizado” pois que em tempo quente a água perdia a frescura que o barro preservava.