- Ó Porto de Mós, o que foste e o que és!

Por vezes chegam ao nosso conhecimento casos tão insólitos que produzem grande turbulência na nossa mente. Um desses casos refere-se à destruição das casinhas e do alvo da carreira de tiro que existiam na praia do Porto de Mós. Foram destruídas.

Coisas há que, por banais que pareçam, hão-de ser-nos sempre queridas, quer por fazerem parte do nosso quotidiano quer por emoldurarem momentos especiais de ócio que a elas nos ligam. As mais importantes integram o património edificado cuja memória histórica e colectiva urge preservar. Os mandatários dessa e de outras destruições escondem-se sempre no anonimato, como diz acertadamente o nosso povo: “o mal feito nunca tem dono”.

Não se sabe ao certo se essas pequenas casas de um só piso serviram para guardar aprestos das armações do Porto de Mós, ou se foram apenas arrecadações de munições da carreira de tiro. A segunda hipótese é menos viável dado o isolamento do local e os cuidados que esse tipo de material requer. Talvez tivesse tal serventia apenas como apoio nas alturas em que se praticavam os exercícios de tiro.

Toda essa estrutura edificada fazia parte da memória colectiva e daí a sua destruição constituir acto condenável.

A zona do Porto de Mós sempre se mostrou rica, mormente pelos contrastes que apresenta: falésia, arribas, praias de areia, seixos rolados, grande quantidade de fósseis, laredos...

As arribas vão desde o sítio do alvo da dita carreira de tiro até à Rocha Negra, numa extensão de aproximadamente dois mil metros. Ao longo desse percurso pode-se observar nos cortes das arribas, as diferentes camadas geológicas estratificadas, como páginas de um livro que contam a história da formação da Terra. Tudo é grandioso. Dos 109 m de altura máxima o morro desce a pique vários metros e depois segue em declive para Sul, até ao mar. No cimo, o planalto da Atalaia que também foi conhecido por planalto de Santo Estêvão, nome que adveio de uma ermida que existiu na vertente Oeste, debruçada sobre a povoação da Luz e hoje completamente arruinada e de culto olvidado.

Quem caminhar na baixa-mar pelo laredo até à Rocha Negra ficará extasiado com a grande quantidade de aves que nesses rochedos nidificam. Os pombos bravos ou pombos da rocha, que aí abundavam, têm sido dizimados pelos caçadores. A todo aquele afloramento rochoso acodem inúmeras aves, durante todo o ano, por ali encontrarem água para matar a sede. São minúsculas fontes que brotam da encosta e suportam caniços que verdejam junto delas. Em anos de chuvas abundantes formam-se pequenas cascatas que correm para o mar.

Nos interstícios das pedras afloram uns veios de argila de cor cinzento azulado, muito procurada para uso terapêutico e de propriedades afamadas que levam a abundante colheita e a aplicação sobre a pele, na busca de cura para os mais variados achaques. E nisto se acham naturais da região mas também turistas e outros visitantes. As propriedades medicinais das argilas de há muito se conhecem e já em 1896 o abade Sebastian Kneipp cita as virtudes da sua aplicação no seu livro “A cura pela água”.

No laredo da praia do Porto de Mós algumas lontras fazem, ainda, criação. Animais esquivos, escondem-se mal sentem a aproximação humana.

Lagos tem topónimos interessantes que carregam consigo histórias ricas e integram a própria História do concelho. Tal é o caso do Cerro das Mós e do Porto de Mós. No Cerro das Mós era feita a extracção de pedras para mós, quer de azenhas quer de moinhos de vento, trabalho iniciado e concluído no local. Na praia do Porto de Mós, pela mesma razão, todavia as mós aí produzidas eram mais pequenas e destinavam-se à moenda de cereais em uso doméstico.

Quando, na baixa-mar, a praia desassoreia pode-se observar, em certo sítio, os sinais de tentativas de extracção de mós. Trabalho inacabado. A pedra destinada para as mós é em tudo semelhante em ambos os locais. Trata-se de uma rocha de conchas fossilizadas (calcário conquífero) e de grande dureza.

A praia do Porto de Mós está ligada à cidade de Lagos por laços que se escondem na tradição, nas actividades militares, nos momentos lúdicos e também nas ocorrências trágicas.

O dia 1º de Maio foi, durante muitos anos, o feriado municipal e mesmo quando o deixou de ser (passou para dia 27 de Outubro) a tradição manteve-se. Nesse dia despovoava-se a cidade. Nela permaneciam, apenas, os doentes acamados e os seus enfermeiros. Os demais partiam para o Porto de Mós, que se enchia de gente provida de farnel para o dia e papagaios de papel - feitos de tiras de cana e papel de seda de cores vistosas e grandes rabos - que ondeavam ao vento. Parecia um concurso de papagaios em despique de volteios e curvas caprichosas. Se o vento era mais forte, as comidas guardavam-se nas casinhas (as tais que foram destruídas), ao abrigo das areias que o vento levantava.

Durante alguns anos habitou em casa junto à praia um indivíduo já idoso, conhecia a praia e todos os seus recantos como mais ninguém. Vivia com grandes dificuldades mas, naquele ambiente saudável, não sofria de grandes maleitas e subsistia pescando e mariscando. Pobre, engenhava no que podia para vencer as dificuldades. Fumava, e tinha no seu cachimbo um companheiro de pensamentos e recordações mas, como não ganhava o suficiente para se abastecer com as necessárias onças “Duque” juntava ao tabaco uma planta que colhia à beira dos valados. As candeoulas (salva brava) eram secas à sombra e depois de cortadas, misturadas com o tabaco. Até a limpeza do cachimbo assumia foros de verdadeiro ritual diário. Um dia, este senhor João Raposo, encontrando-se a mariscar, teve uma grande surpresa. Fisgou um polvo que se encontrava num buraco de rocha e ao puxá-lo para fora verificou que este trazia umas coisas amarelas, de brilho intenso, agarradas às ventosas. Eram moedas de oiro. Vasculhado o buraco, retirou mais umas poucas. O polvo, para se defender da sua arqui-inimiga moreia arrasta consigo conchas, pedras e toda a sorte de objectos que lhe permitam construir um escudo eficaz. Já com o tesouro no bolso dirigiu-se à cidade a fim de indagar que moedas eram aquelas, ao que um entendido lhe terá dito que eram dobrões espanhóis. Trocou-os por moeda corrente a um e outro, conhecidos e amigos e... continuou pobre. Depois do polvo morto acabou-se o tesouro. Certamente o Raposo nunca ouvira falar da fábula da galinha dos ovos de oiro. Este episódio aconteceu em finais dos anos 40.

A praia do Porto de Mós foi sempre um retiro ideal para os que buscavam isolamento e tranquilidade, a beleza da sua panorâmica convidava à meditação e à contemplação da Natureza. Outro aspecto interessante é a sua constante mutação, resultado das correntes marítimas que ora a invadem de areia até às falésias, ora a desnudam deixando à vista o fundo rochoso ou milhões de calhaus que se entrechocam sugerindo alguma música endiabrada dos famosos Rolling Stones.

Quando olhamos para o morro da Atalaia perdemo-nos em interrogações e conjecturas. Em tempos, deveria ter entrado pelo mar: como seria então a sua configuração, quantas décadas ou séculos se passaram desde então?

A falésia surpreende pelos seus contrastes. No trajecto até à praia encontram-se duas formações rochosas que saltam à vista por parecerem deslocadas do contexto geológico, e tal deve-se quer à sua coloração quer à configuração em forma de cunha, entrosada, a toda a altura, na rocha dominante. De acordo com os geólogos, estas formas parecendo chaminés, são pequenas crateras de antigos vulcões. Na sua génese estará um fenómeno de arrefecimento lento de que terá resultado uma rocha tão dura. A conhecida Rocha Negra, da Praia da Luz, de origem vulcânica teve, ao invés, um processo de arrefecimento mais rápido de que resultou uma rocha com pouca consistência.

O senhor Joaquim Correia Valarinho, que foi chefe dos antigos Serviços Municipalizados de Lagos trocou a vida citadina pela tranquilidade e isolamento da praia. Contava algumas histórias das suas pescarias, seu passatempo preferido e da sua companheira. Os aparelhos eram lançados na praia durante a baixa-mar e levantados na maré seguinte, dando lugar a alguns sucessos, quando o mar permitia. Há um caso insólito que merece ser contado. Certa vez, de todo o peixe preso nos anzóis só restava as cabeças. Tudo o mais havia sido comido, bem como parte dos aparelhos. Repetindo-se o caso, houve que reforçar tudo, com recurso a cabos de aço (dos travões das bicicletas), com anzóis soldados, na expectativa de apanhar o autor de tais danos. Na maré baixa, ao levantar o aparelho, a surpresa: um enorme cação ficara preso. Puxado para terra, ainda com vida, se verificou que tinha uma alheta quase decepada em consequência do esforço para se libertar e espanto maior, mesmo em seco começou a parir pequenos cações que instintivamente, e com grandes dificuldades, se arrastavam em direcção ao mar. A pesca foi adiada por uns tempos, aguardando o esquecimento do caso.

O mar de vez em quando arroja à praia, além de limos, os mais estranhos objectos. Contou o senhor Vilarinho que um dia encontrou um boião de vidro contendo um maço de cigarros, uma caixa de fósforos, uma pilha eléctrica e uma mensagem que esclarecia tratar-se de uma oferta e pedindo ao achador que comunicasse a recepção de tão singular encomenda. Apresentava endereço do remetente e solicitava as informações sobre data e local do achamento e informava ainda que o dito boião tinha sido lançado no Atlântico Norte, em navegação entre Inglaterra e os Estados Unidos. Tendo sido achado em Lagos, em Fevereiro do ano seguinte, lá seguiu a missiva dando conta de tal facto.

O Porto de Mós fez parte das fortificações militares dependentes da Praça de Lagos. A Bateria do Porto de Mós teve a sua história. A sua construção terá sido proposta a Martim Afonso de Melo, Governador e Capitão General do Reino do Algarve (1642 – 1646) e os seus trabalhos terão ficado concluídos em 1712. Tratava-se de uma plataforma voltada ao mar com pequenas construções na retaguarda e na ala direita. Uma servia de armazém e a outra de aquartelamento. Estava munida de duas peças de artilharia de calibre 6 - isto depois do terramoto de 1755, já que o que antes existia foi destruído. Hoje, o que resta e é visível fez parte do apoio à carreira de tiro que funcionava na praia e foi moradia do encarregado e guarda da mesma, o Cabo Barbosa e a sua conhecida família.

A maior parte das fortificações, além das habitações da guarnição, tinham uma cisterna que recolhia as águas da chuva (dos telhados e pavimentos) para gasto do pessoal.

As duas pequenas casinhas existentes na praia e que se dizem de apoio à carreira de tiro faziam, já, parte – por direito próprio – do património histórico e paisagístico para além de constituírem oportuno resguardo no caso das intempéries. Como atrás se denuncia, a sua destruição assume contornos de acto de vandalismo, abuso notório contra o nosso património colectivo.

O Porto de Mós tem, para além da conhecida e apreciada praia, uma vasta área antigamente agricultada e arborizada, com espécies da região em que dominavam as figueiras, amendoeiras e a vinha. Os acessos ao local eram constituídos por duas estradas: a da Torralta e a do Barranco. O Barranco do Porto de Mós é o esteio de uma linha de água com início na Ladeira Branca e términus no areal da praia. Os seus combros, povoados de amendoeiras, criavam uma paisagem muito bela, especialmente quando as árvores floriam, proporcionando motivo imperioso para longos e agradáveis passeios.

Os terrenos eram cultivados e havia grande abundância e variedade de aves, desde as migratórias às permanentes. Havia grande quantidade de alimentos e as condições geomorfológicas eram evidentes (proximidade do altiplano da Atalaia que proporcionava excelente plataforma de voo). O ambiente era saudável, em particular devido ao intenso coberto arbóreo e vegetal. As casas de campo, de apoio à agricultura encontravam-se dispersas e os seus habitantes partilhavam uma vida de campo e de mar. Com o surto turístico a paisagem descaracterizou-se, introduzindo-se novos relacionamentos com o espaço e com o ambiente. Promoveu-se, e promove-se ainda hoje, um desequilíbrio, em matéria de ocupação territorial, que resulta numa manifesta agressão ecológica e numa anarquia urbanista e ambiental. Até há bem pouco tempo o barranco do Porto de Mós não passava de um esgoto, a céu aberto, sendo utilizado pelas mais recentes construções aí instaladas.

Os organismos com responsabilidades ambientais estão, inexplicavelmente, alheios a estas questões. Para estes, e outros atentados no género, terá que haver uma voz troante que diga NÃO!

A praia do Porto de Mós deverá continuar a ser um lugar de lazer de eleição, integrada numa área de trabalho e com um ambiente que proporcione a meditação, o estudo ou a simples contemplação das suas belezas naturais.

A notícia do achado dos dobrões divulgou-se e muitos foram os pesquisadores que, na praia, andaram em busca de um galeão espanhol que aí tivesse naufragado 400 ou 500 anos antes. Porém, não consta que alguém tenho encontrado o quer que fosse, nem há registo de qualquer naufrágio desse tipo.

Em finais dos anos 20 banhavam-se uns jovens na praia do Porto de Mós, num mar um pouco agitado e eis que uma vaga maior arrebatou dois irmãos que mal sabiam nadar e assim perderam a vida à vista dos outros companheiros, que nada puderam fazer. Eram filhos de um Capitão do exército, de nome Varela. Enquanto perdurou a consternação geral e a memória do trágico acidente a praia ganhou fama de insegura e reduziu-se consideravelmente a sua utilização como praia de banhos.