- A terra de Gil Eanes

João Carlos Abreu Pimenta

Se existem dúvidas sobre o lugar de natalidade de alguns navegadores, tal não acontece com Gil Eanes, visto que Gomes Eanes de Zurara afirma várias vezes, na sua Crónica dos Feitos da Guiné que Gil Eanes era natural de Lagos. Fá-lo logo no título do Capítulo 9 e repete-o no Capítulo 55 e no Capítulo 88. E Zurara foi contemporâneo, embora tardio, dos acontecimentos, em que a vitória sobre o Bojador, cerca de vinte anos depois da conquista de Ceuta, foi o feito mais importante das Descobertas, que levaram os portugueses, no fim do século XV, à Índia.

Dúvidas sobre a origem de outros navegadores, sobre as quais se têm debruçado muitos historiadores, continuam ainda por esclarecer, como no caso, por exemplo, de Cristóvão Colombo. Houve até quem afirmasse que ele era português.

O facto de ser natural de Lagos contribuiu para a missão que lhe foi confiada pelo Infante, cuja importância no tempo era muito superior à que podemos imaginar hoje em dia. O Cabo Bojador não é um cabo difícil de passar, não é nenhum Cabo Horn, Cabo Vilain ou mesmo Cabo de São Vicente. Só que tem baixios e tem de ser passado ao largo. Isso acontece também com o Cabo Trafalgar. Nesse tempo, em que a navegação era feita muito próximo da costa, este facto podia ser um obstáculo. A vaga curta, desfazendo-se nos baixios dava a impressão de água a ferver. Mas não seria essa a principal dificuldade. Os homens têm menos medo daquilo que vêem, embora lhes pareça pavoroso, do que daquilo que não vêem e que lhes é sugerido através de mitos e lendas. Os monstros invisíveis, o fim do mundo, o calor que queimava os barcos, tudo isso, na crença dos marinheiros, eram os principais obstáculos. Só um espírito bem forte, como o do Infante e talvez melhor informado é que podia desfazer as crenças. E só a um homem especial é que podia confiar essa missão.

E não esqueçamos que, antes de 1434, ano em que depois de várias tentativas falhadas - há quem diga que foram doze - mas uma está documentada, o Bojador foi vencido, os portugueses já tinham ido por mar aberto aos Açores, em 1427, ao Porto Santo, em 1419, e até já tinham andado pelo Mar dos Sargaços, em data que se supõe ser anterior à descoberta dos Açores, visto que o Mar da Baga ou dos Sargaços já estava indicado na carta de André Bianco, datada de 1436. O que mostra que não foram problemas de navegação que impediram que o Cabo Tenebroso apresentasse tantas dificuldades, mas as grandes superstições desse tempo, que aliás ainda hoje se verificam em certas ocasiões e em certos meios.

Havia que encontrar o homem certo e o Infante buscou-o no meio certo, que era Lagos. Não bastava que fosse um bom capitão ou um bom piloto, teria que ser forte de corpo e de espírito. Houve quem dissesse que Gil Eanes dobrou o Bojador quando o medo do Infante ultrapassou o medo do Cabo. Mas, na realidade, o que aconteceu foi ter ultrapassado o seu próprio medo.

Afirmou o saudoso historiador algarvio, Dr. Alberto Iria que o Infante sabia muito bem que "só um marinheiro experimentado e da rija têmpera dos de Lagos, estaria à altura de tão singular façanha". De facto, se o Infante escolheu Lagos como porto de armamento dos seus barcos, foi devido a diversos factores, mas muito provavelmente o mais importante teria sido o factor humano. Aqui encontraria pilotos e calafates, marinheiros destemidos, endurecidos pelas lutas que tinham que travar amiúde com corsários e piratas, eles próprios praticando também o corso e a pirataria, além da pesca. Não encontrou só Gil Eanes mas muitos outros, Vicente Dias, Pero Alemão, Bicanço, Lançarote, Soeiro da Costa, alguns mais armadores ou capitães, outros mais pilotos, mas aquele que escolheu primeiro e a quem confiou a missão mais importante, foi Gil Eanes, natural e residente em Lagos, porque decerto apresentava as melhores condições para uma missão de tal importância. Por isso, o Dr. Alberto Iria afirma que não foi escolhido ao acaso, nem por ter ligações anteriores ao Infante e que não tem nada que ver com outros Gil Eanes que aparecem em documentos da época. Este continuou nas navegações ao serviço do Infante. Encontramo-lo logo a seguir na expedição de Afonso Baldaia e, mais tarde, a comandar uma das caravelas de Lançarote. Pena é que o lacobrigense mais importante da nossa História esteja representado numa pequena estátua envergonhada, no Jardim da Constituição e que na praça principal de Lagos, que tem o seu nome, esteja o Rei D. Sebastião, a quem Lagos deve de facto a sua elevação a cidade, mas que não colocou lagos na História Universal.