- Lagos e a Instabilidade Sísmica

por José Carlos Vasques

(Setembro de 2002)

Em 31 de Maio e 1 de Junho do corrente ano (2002) teve lugar no Auditório da Biblioteca Dr. Júlio Dantas uma reunião técnico/científica subordinada ao tema “Estudo do Risco Sísmico no Centro Histórico de Lagos”. A assistência de tão importante reunião era constituída por convidados. O auditório encontrava-se quase cheio, assinalando-se, como era de esperar, a presença do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lagos, do senhor Arquitecto do Gabinete do Centro Histórico de Lagos e os conferencistas Prof. Doutor Luís Alberto Mendes Victor, do Instituto de Ciência da Terra e do espaço; Prof. Sérgio Lagomarsino, da Universidade de Génova; Doutor Herculano Caetano da LP6, Paris; Prof. Veja Perez, da Universidade da Catalunha e o Prof. Francisco Garcia, da Universidade Politécnica de Valência.

A assistência compunha-se de técnicos relacionados com os assuntos dos temas a tratar, alguns funcionários dos serviços camarários e estudantes universitários. Embora a entrada estivesse condicionada a convidados foi permitida a um cidadão de Lagos, perante a convincente argumentação de se tratar de um assunto tão caro à sua sensibilidade e apego à história da sua terra. Parece que os jornais estiveram ausentes, por não terem recebido convite.

Assistiu-se a uma preciosa lição. Um misto de ensinamentos técnico/científicos e uma chamada de atenção para os gravíssimos erros que sucessivamente se vão consentindo e que deviam ser levados ao conhecimento de toda a gente.

Rememorou-se as desgraças ocasionadas pelo terramoto de 1755 quando o mar, em ondas gigantes, galgou a muralha que defendia a cidade destruindo tudo na sua passagem. Essas ondas entraram pelo estuário da Ribeira de Bensafrim arrastando tudo com extrema violência, quer no fluxo, quer no refluxo das águas do mar. Imaginemos o que seria hoje um fenómeno idêntico ao de 1755. Tudo o que está construído nesse terreno seria destruído: a Marina, a Escola Secundária e todas as outras construções e mais que tudo as vidas humanas que não há dinheiro que pague.

Lembremo-nos um pouco da nossa história

Que na praia de S. Roque existia uma Ermida cujo orago era S. Roque e que foi dado depois o nome a esse espaço de praia. Construída com grande solidez a custas de genoveses e sicilianos e em acção de graças pelas boas pescarias que aqui fizeram no reinado de D. João II. As ondas gigantes arrasaram-na por completo, restando hoje somente um aglomerado de alvenaria da sua torre num dos barracões existentes na praia. Todo o arraial das armações que pescavam na Baía e estaleiros navais tiveram o mesmo triste destino. As vagas que subiram pelo vale da Ribeira acima, cerca de quatro quilómetros, destruíram a ermida de S. João Baptista, o mais antigo monumento cristão de Lagos, que se diz ter sido da Ordem de Malta, segundo configuração de duas cruzes da porta que o distingue. Este templo só foi reedificado em 1805.

A Reconstrução

A reconstrução das habitações da cidade reutilizaram os velhos alicerces pelo que a traça urbana manteve o desenho anterior ao terramoto. Mantiveram-se alguns topónimos mas outros foram alterados. Mantiveram-se a Rua dos Tanoeiros, Rua da Vedoria, Rua de S. José, entre outros. A reconstrução da cidade estendeu-se por muitos anos atendendo à condição de miséria económica. A perda dos haveres da população constituiu um rude golpe na economia doméstica das famílias que não receberam qualquer tipo de apoio do governo. Esta situação verificou-se por todo o Sul do País.

A Pesca, em Lagos, ficou inoperacional pois o maremoto (hoje também se diz Tsunami) destruiu as artes existentes. A única esperança de sobrevivência residia na agricultura mas considerando que o cataclismo ocorrera na altura das sementeiras e que os apoios agrícolas também tinham sofrido gravemente os seus efeitos (inúmeras casas rurais destruídas, alfaias soterradas, etc.), estava-se perante uma situação muito crítica que envolvia todas as classes sociais. Inevitavelmente, tudo teria que ser reconstruído e, nisso, foram empregues os maiores esforços, ainda que fossem demasiados os escolhos que juncavam o caminho: subida do preço dos géneros de primeira necessidade, subida da mão-de-obra (devido à falta de pessoal já que faleceram mais de 400 pessoas, não contabilizando os que ficaram inutilizados).

A própria Câmara Municipal só pôde desempenhar as suas funções em casa própria, cerca de 80 anos depois do terramoto.

A única salvação para o País residia nas riquezas que advinham das colónias, sobretudo do Brasil. Lagos, nessa época, não usufruía directamente dessas carreiras marítimas pois todo o trato marítimo estava já sedeado em Lisboa. Lagos entrara já no período de decadência pois o seu porto não comportava embarcações de maior calado. A sua maior fonte de rendimento continuaria a ser a Pesca. Só a partir de finais do séc. XVIII, mas sobretudo no séc. XIX é que Lagos viria a conhecer um sopro de recuperação com a instalação da indústria conserveira, as salgas de peixe primeiro e depois as conservas em azeite. Estas actividades ficaram a dever-se, em grande parte, à vinda de industriais estrangeiros: gregos, italianos e franceses. Esta actividade veio incrementar o surgimento de mais armações de pesca que a alimentavam. Hoje, no ano 2000, encontra-se totalmente extinta.

A exportação também, em certa medida, contribuiu para fazer face às dificuldades do meio rural, com o incremento do plantio de figueiras e amendoeiras destinando-se os seus frutos a mercados exteriores. Toda esta actividade envolvia muita mão-de-obra distribuída por várias indústrias subsidiárias que davam resposta às exigências da actividade exportadora. Oficinas de carpintaria, serralharia e tanoaria e outras que a cidade nessa altura possuiu. Se olharmos com atenção para algumas ruas da cidade, sobretudo na parte interna do amuralhado verificamos que a construção daquela época reflecte uma certa prosperidade. Impera a estética pombalina desde o traço arquitectónico das fachadas até à aplicação do ferro trabalhado, produto de artífices locais. É isto uma boa parte do Centro Histórico da cidade, pelo que o mais antigo, o anterior ao terramoto cinge-se ao próprio amuralhado e pouco mais. Do que foi construído a partir de 1960, sob o signo da Era Turística, avoluma-se o mau gosto resultante de critérios de urbanistas e historiadores que descaracterizaram o tecido urbano da cidade, como se verifica na Praça Gil Eanes.

Voltando ao referido Estudo do Risco Sísmico no Centro Histórico de Lagos, parece pretender salvar o que resta desse núcleo urbano, indicando as medidas a tomar. E isto é importante se considerarmos a degradação da maior parte dos nossos monumentos, situação evidente no dia-a-dia.

De um livro existente na Biblioteca Municipal de Lagos, Dr. Júlio Dantas, sobre o Terramoto de 1755, onde se faz referencia aos estragos que Lagos sofreu também se extraiu a relação de outros sismos ocorridos: no ano de 382 ocasionou o desaparecimento de uma ilha defronte do Cabo de S. Vicente; em 22/02 de 1309 não houve estragos de grande monta; em 24/08 de 1356 foi muito forte, semelhante ao de 1531; em 05/04 de 1504 violento e com várias réplicas, provocando a fuga de muita gente para os campos; em 26/01 de 1531 fez grandes estragos em Lisboa, caíram 1.500 casas; em Novembro de 1587 foi muito forte, em Loulé morreram 170 pessoas; em 06/03 de 1719 foi muito intenso, fez prejuízos em Mexilhoeira da Carregação, Estombar, Lagoa, Alvor e em Lagos arruinou muitos edifícios; em 09/03 de 1719, pelas 5 horas, teve longa duração mas sem efeitos destruidores; em 27/12 de 1722 entre as 17 e as 18 horas, fez vários estragos em templos de todo o Algarve; em 01/04 de 1748 na Ilha da Madeira caíram várias casas e morreram várias pessoas; em 01/11 de 1755, o mais violento de todos, destruiu Lisboa e Lagos de que se fez uma parte do descritivo; em 12/01 de 1858 foi muito sentido em Loulé mas menos do que aquele de 1587; em 11/11 de 1858 foi menos intenso do que o anterior; em 23/03 de 1909, conhecido pelo Terramoto de Benavente e Salvaterra teve efeitos muito destrutivos.

O Sismo de 28 de Fevereiro de 1969

O último sismo do nosso tempo, pode-se assim dizer, ocorreu a 28 de Fevereiro de 1969, pelas 3horas e 30 minutos aproximadamente. O abalo sentido foi muito violento e se a sua duração se prolongasse os prejuízos seriam incalculáveis. Seguiram-se várias réplicas com destaque especial para uma que sobressaltou toda a gente. Algumas pessoas mais amedrontadas utilizaram os seus meios de transporte para, rapidamente, se colocarem a salvo na zona de Santo Amaro à imagem daquilo que muitos habitantes já haviam feito em 1755. Na cidade houve a lamentar a perda de uma vida devido a desabamento de uma das paredes da habitação degradada onde vivia. Foram várias as zonas atingidas nomeadamente as povoações de Bensafrim e Barão de S. João. Na primeira destas localidades caíram mais de 20 casas. Na Vila do Bispo e em todas as povoações deste concelho os prejuízos foram avultados, com muitas casas derrubadas e outras gravemente arruinadas. Em Lagos muitos edifícios ficaram danificados e as rachas apresentadas obrigaram a escorar alguns nomeadamente na Rua Afonso de Almeida e na Rua Direita. Todo o Algarve teve avultados prejuízos o que obrigou o então Presidente do Conselho de Ministros, Professor Marcelo Caetano a deslocar-se às zonas afectadas para verificar os estragos, tendo percorrido parte do concelho de Lagos. O edifício da Câmara Municipal ficou danificado com o piso superior fendido e em risco de derrocada a ponto do juiz da Comarca ordenar que se retirasse o Tribunal, que aí funcionava, para o Palácio da Justiça que ainda estava em construção e que só viria a ser inaugurado em 11 de Maio desse ano.

Calcula-se, segundo pessoa que andou nesse inquérito, que foram cerca de 400 as casas derrubadas ou arruinadas. O Estado disponibilizou verbas para resolver as situações mais urgentes e terão sido gastos aproximadamente 24 mil contos. Foram também concedidos subsídios reembolsáveis a juros baixos, com vista a serem consertadas as casas de pessoas com bens próprios, depois de devidamente inquiridas.

Esta gravura de Lagos do séc XVII, apresenta a ermida de S. Roque

edificada em 1490 e destruída pelo terramoto de 1755

As actuais igrejas ficaram arruinadas e foram depois reparadas, tendo a Igreja de Santa Maria da Graça, no sítio da Porta da Vila, ficado totalmente demolida e nunca foi reedificada. Os conventos, os cinco existentes em Lagos: (muito arruinados) Santo António, Santíssima Trindade, Irmãs Carmelitas, São Francisco ou Nossa Senhora da Glória e S. João de Deus, este demolido, passando a sua acção hospitaleira para o sítio hoje com o seu nome. Os paços do Concelho e a torre do relógio, tudo ficou demolido pelo sismo ficando a Câmara privada de edifício onde reunir, andando depois em casas emprestadas e outras de aluguer, em parte como hoje está. A Câmara, a torre do relógio e o convento de S. João de Deus situavam-se onde está hoje a Messe Militar.

Lagos tinha dois núcleos religiosos distintos: um situado no Rossio da Trindade com as igrejas de São Brás e a de Porto Salvo as quais foram totalmente destruídas e o Convento da SS. Trindade muito arruinado. O outro núcleo, na Praça do Município, hoje do Infante, com as Igrejas de S. Pedro, Senhora da Graça e convento de S. João de Deus e a igreja de Sta. Maria de Misericórdia ficando tudo muito arruinado, sendo esta última inteiramente reparada a expensas da Santa Casa, sendo depois emprestada à colegiada da igreja de Sta. Maria da Graça totalmente destruída pelo terramoto. Hoje a igreja da Misericórdia dizem pertencer à paróquia de Sta. Maria por uma inexplicável e indevida apropriação lesiva do património da Santa Casa da Misericórdia.

Os relatos do cataclismo, em grande parte saídos da pena do clero, dão especial relevo aos danos verificados nos templos e às estatísticas de fiéis vitimados. Pela tragédia que houve, os mortos tanto em terra como no mar, certamente ultrapassaram largamente a estatística elaborada na altura.

A cidade ficou privada de bens essenciais visto os produtos enceleirados terem ficado soterrados nos escombros das casas. Parece que o vinho, produto importante na economia da região, estava ainda na sua grande parte envasilhado e por vender, bem como os figos secos, as amêndoas e todos os demais géneros. A água para consumo tornou-se escassa devido aos danos causados no aqueduto de abastecimento.

Para termos, hoje, uma ideia da ruína em que a cidade ficou, basta olharmos para o cunhal do armazém regimental, na Praça do Infante, e vermos a profusão de vergas e umbrais das pedras trabalhadas das casas que caíram. A reconstrução foi outro gravíssimo problema. Não houve tempo de remover os escombros, tendo sido aterrados os sítios mais baixos como o caso da Praça do Infante que aumentou em cerca de um metro o seu nível anterior. Ficou soterrado o poço situado no Armazém Regimental, por baixo da pedra com o fac-símile da assinatura do Conde de Avintes. Este poço dava serventia ao dito armazém e à população, estando para isso dividido pela parede do edifício. O passeio do poço estava ladrilhado. Isto foi observado quando o fundador do Museu Municipal de Lagos, o Dr. José Pimenta Formosinho andou a pesquisar o que podia restar do Pelourinho.

O cais conhecido pelo “cais velho” desceu abaixo do seu nível obrigando os alicerces das portas do cais e da Alfândega a acompanhar esse desnível, forçando a reconstrução de novas soleiras das portas sobre as anteriores. Há bem poucos anos houve no local uma intervenção arqueológica que deu conta desse facto.

Neste trabalho foi estendida uma tela plástica para isolar o local e permitir o aterro onde seria posteriormente colocada a relva, porém os operários que procederam a esse trabalho, achando mal empregado o plástico nesse fim retiraram-no e aterraram o local.

Poucos edifícios de habitação foram, de imediato, reconstruídos. Foi dada prioridade aos edifícios propriedade de instituições religiosas e aos militares. O Forte do Pinhão que se diz ser o monumento militar mais antigo de Lagos, por ter sido completamente destruído, ficando uma parte separada de terra, não foi reparado, ficando ao abandono.

A ermida de Santo Amaro, edifício muito antigo, ficou incólume por estar construída num maciço rochoso geologicamente bem estruturado. Por ter sido o único templo que não sofreu danos, nele se realizaram os ofícios religiosos durante algum tempo. Hoje, é um monte de ruínas. Aquilo que o sismo não conseguiu fazer, faz a incúria dos homens. Toda a zona se Santo Amaro foi refúgio para as gentes de Lagos que ali construíram barracas para se abrigarem até serem reconstruídas as casas na cidade.

Fazer todo este relato, que não é mais do que uma repetição do que está escrito, serve sobretudo para recordar aquilo que se vai esquecendo, esperando que semelhante catástrofe não se venha a repetir.

Descrição: Acção do sismo de 1969, deslocação de terreno

Localização: Algarve

Autor: C. Teixeira

Durante alguns anos ainda se viam casas escoradas um pouco por todo o Algarve, tal foi o caso na baixa de Portimão. Em muitas casas que apresentavam rachas foram colocados esticadores de ferro e tapadas as fendas com argamassa. Consta que o Governo terá oficiado a Câmara Municipal pedindo uma relação dos prejuízos no edifício dos Paços do Concelho e que esta terá respondido que estava nas suas intenções construir um novo edifício, e tudo ficou por aqui. Só em 1982 é que se procedeu à reparação do edifício.

A magnitude do sismo de 1969 atingiu os 6 graus e alguns décimos na escala de Richter. Os sismógrafos norte americanos assinalaram com preocupação temendo um grande desastre na Península Ibérica. Era o que se disse na altura.

Dos fenómenos naturais conhecidos o mais pavoroso é o terramoto pois é sempre inesperado. De todos os outros se fazem previsões mais ou menos exactas. Este aspecto tem preocupado o mundo científico, e nem sequer o facto de reconhecermos que os animais detectam este perigo com alguma antecipação nos permite decifrar esse enigma. Uma pista aponta para a sensibilidade dos animais aos ultra-sons gerados pelas massas da crosta terrestre em movimento.

Pelo que se retirou desta lição/estudo apresentada na Biblioteca Municipal, há uma complexidade de fenómenos resultantes dos sismos destacando-se os tsunamis ou maremotos, extremamente destrutivos para as zonas litorais, tal como o exemplificou o maremoto de 1755.

Outro fenómeno apontado refere-se à ressonância provocada pelas ondas sísmicas ao embaterem contra as diferentes estruturas da terra de que resultam ondas de picos elevados e de grande destruição em zonas diferentes e imprevistas.

Quanto ao lugar em que vivemos é inegável a sua exposição elevada a este fenómeno pelo que se justifica plenamente o alerta lançado: é imperioso corrigir os factores relacionados com a estabilidade dos edifícios e não permitir a edificação superior a três andares. As construções encontram-se muitas vezes fragilizadas por deficientes impermeabilizações e utilização de materiais inadequados à edificação, acrescendo ainda uma má localização geográfica com violação dos leitos de cheia de importantes linhas de água e implantações em terrenos sedimentares.

Estiveram de parabéns os organizadores deste Estudo mas devem procurar ir, ainda, mais longe e, sobretudo, transformar estes conhecimentos, consciência, e bom-senso em posturas e regras que conduzam à diminuição do impacto de cataclismos deste tipo.