Filosofia da Libertação

CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO PARA UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA

Arivaldo José Sezyshta[1]

1 - Doutorando em Filosofia, pela UFPB.

Resumo: O presente texto dedica-se à Filosofia da Libertação, saber teórico que, nascido na América Latina, busca articular-se à práxis da libertação dos oprimidos. A partir de um recorte histórico, mostra que a busca pelo conhecimento é preocupação sempre presente na Filosofia, chegando aos dias de hoje, pautado pela Filosofia da Libertação no continente latino-americano, mas atrelado à superação de todas as opressões, engajado na construção do humano, contribuindo na construção de processos educacionais libertadores. Nesse labor, a ética joga papel decisivo, por possibilitar questionar o pensamento único, denunciando os mecanismos neoliberais de continuidade da dominação e da geração de novas vítimas. No campo da educação, a compreensão que se vislumbra é de que o potencial educativo está em diferentes atividades e situações e a educação escolar pode contribuir na construção de uma nova cultura, capaz de dar a palavra às vítimas, de escutar o outro, o silêncio do outro que foi silenciado. Nesse curto caminho, o texto explicita a crítica da Filosofia da Libertação à educação repetidora da opressão, reforçando a vigência e a atualidade de um pensamento que contribui na libertação do oprimido.

Palavras-chave: Educação. Filosofia da Libertação. Ética.

1 Reflexões Iniciais

A pergunta pela possibilidade do conhecimento remonta à história da filosofia. Para Platão, a função pedagógica e política do conhecimento identifica-se com o bem. Kant retrata a filosofia como “ciência da relação de todo conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana”. Para ele, o que posso saber é a primeira das quatro questões fundamentais. A Epistemologia constitui-se em um modo de tratar um problema nascido de um pressuposto filosófico específico. Trata da realidade das coisas, do mundo externo, onde a discussão teórica do conhecimento é o ponto de partida da reflexão filosófica. O conhecimento estabelece-se a partir do resultado das impressões dos sentidos: a percepção das coisas se dá no tempo e no espaço, enquanto característica inata aos seres humanos. A percepção do objeto, realismo direto, é fato primordial do conhecimento: quando não há objeto e há experiência visual ocorre alucinação e não conhecimento.

A estrutura do conhecimento humano divide-se em crenças básicas e não básicas. As crenças básicas fundamentam o saber e dizem respeito às crenças imediatamente justificáveis pela observação das virtudes epistêmicas.

São infalíveis (imunes contra os erros), indubitáveis (imunes contra a dúvida), incorrigíveis (imunes contra a refutação). São crenças auto-evidentes, certas, claras, distintas. São proposições analíticas e percepções sensíveis. São crenças introspectivas das quais o indivíduo sabe e tem consciência. As crenças não-básicas se colocam na super-estrutura do conhecimento e são justificáveis a partir das crenças básicas: justificação inferencial por dedução ou indução. Como exemplo: um homem sozinho em uma ilha deserta vê pegadas na areia. Essa crença básica, perceptual, leva-o a acreditar que há mais alguém na ilha (crença não básica). Assim, conclui que não está mais sozinho. Essas crenças são justificadas, visando uma maior responsabilidade epistemológica, pela noção de coerência, que ganhou na história da filosofia um significado de consistência, quando não há contradições explícitas.

A Filosofia das Ciências (final dos anos 50) postulou que até nas bases empíricas do que é “doado” já há teorias. Intuições básicas “doadas” sem mediação ou não são tão básicas e requerem justificação anterior, necessitando de outras proposições (risco do infinito), ou são tão básicas (cegas) que não servem para justificar nada. Por isso, não passa de um mito. Antes mesmo da Filosofia da Ciência, Kant já havia formulado essa crítica ao dizer que “uma intuição sem conceito é cega e um conceito sem intuição é vazio”.

Poderíamos dizer que o conhecimento é necessário para verificar a realidade das coisas. A filosofia nasce da admiração para esclarecimento dos conceitos, para criar ou descobrir as coisas. Assim, o conhecimento é uma categoria do espírito, uma forma da atividade humana. O objeto imediato do conhecimento é a idéia, a representação. Contudo, mais importante do que fundamentar o conhecimento, é situá-lo no campo das ciências humanas a partir de novas bases que sejam capazes de recolocar o ser humano como foco principal de todo processo de aprendizagem. Isso porque é ao ser humano que o conhecimento está a serviço.

2 Educação

Para a filosofia clássica a educação era considerada um tipo de artesanato para esculpir corpo e espírito, visando à perfeição de suas formas. Estava diretamente vinculada à ética, entendida por Platão como ontologia do bem e por Aristóteles como disciplina própria com aplicação prática. Na modernidade, Kant entendia que só a educação transforma o ser humano, compreendida enquanto processo de formação, dinâmico e contínuo. Assim, a educação se constitui através do conhecimento adquirido com o aprendizado das técnicas culturais, que tornam a vida possível: uma sociedade não pode sobreviver se sua cultura não for transmitida para as novas gerações. Aristóteles chama isso de “imitação”, tendo como finalidade a felicidade, visando garantir relativa imutabilidade ou visando corrigir e aperfeiçoar essas mesmas técnicas. Assim, a educação tem contribuição decisiva na formação do indivíduo, na descoberta de sua consciência ético-crítica e na propositura de novas práxis pedagógicas, entendidas como teorias da formação humana do sujeito, capazes de propor permanente mobilização para a construção da humanidade do humano.

Nessa construção alguns impasses se destacam, como o imperialismo da escola e da tecnologia, a multiplicidade e diversidade de processos educativos, de práticas pedagógicas e de teorizações das mesmas, as divergências de epistemologias e teorias, os posicionamentos ideológicos antagônicos e os poucos acordos no campo das pesquisas educacionais e da ação educativa (SOUZA, 2007). Embora isso possa ser enriquecedor para a pesquisa, acarreta muitos riscos para as políticas e para as ações.

Para SOUZA: Falamos de/escrevemos sobre: Proposta Pedagógica; Programas, Planos e Projetos (PPP); Projeto Político-Pedagógico. Projeto Educativo. Currículo, Prática Pedagógica. Prática Educativa. Saber pedagógico. Saber específico ou de conteúdo ou disciplinas de conteúdo. Didática Geral. Didática de Conteúdos Específicos. Avaliação Somativa. Diagnóstica. Emancipatória. Prática de Ensino. Estágio supervisionado. Educação. Pedagogia. Ensino. Ciência da Educação. Ciências da Educação. Aprendizagem. Ensinagem. Ensino-Aprendizagem. E por aí, la nave va [...] (SOUZA, 2007, p. 36).

Vivemos uma época de crise, ou, uma crise de época, também chamada de “crise total”, de “crise civilizatória”, de “crise paradigmática”, assinalada pela cultura totalitária e mediática, pela barbarização social. Ainda assim, há possibilidade de se constituir em momento de depuração que pode fazer surgir algo novo e melhor. Algumas conseqüências apontadas em pesquisas, como a precária organização dos sistemas de ensino, a aprendizagem do aluno que não é foco central da escola, a insatisfação generalizada de pais e alunos, profissionais desmotivados e sem qualificação necessária, colocam como desafio para a práxis pedagógica proceder à mudança do ethos acadêmico, para contribuir na formação de subjetividades dialogantes em meio à complexidade (professor, aluno, gestor, contexto, diversidade cultural/pluriculturalismo, diferentes perspectivas axiológicas). Como perspectivas, vamos abordar dois exemplos: a educação do campo e a questão da educação e as novas tecnologias.

2.1 Educação do Campo

Nasce vinculada à luta pela democratização do acesso à terra, à luta por direitos sociais e políticos, inclusive o direito constitucional à educação, pela inclusão de milhares de camponeses excluídos historicamente do direito à vida. A trajetória no âmbito da sociedade civil organizada retrata as muitas iniciativas de experiências de educação escolar no campo, as mobilizações em nível nacional, denunciando o descaso do Estado Brasileiro com a Educação do Campo e reivindicando providências, a realização de encontros e conferências, a produção teórica sobre o campo e sobre a Educação do Campo e a articulação com governos.

Como pressupostos do paradigma da Educação do Campo, no campo, destacam-se: que esteja referenciada na realidade, contemplando suas especificidades e potencialidades, respeitando a existência de tempos e modos diferentes de viver e de produzir a existência, organizando o ensino considerando as condições e possibilidades locais, legitimando os diferentes processos pedagógicos existentes fora do ambiente escolar, em diálogo com a escola. Além disso, não se abre mão da articulação da escola com as lutas em curso por um projeto de desenvolvimento que seja ecologicamente sustentável, economicamente inclusivo e justo. Ainda mais: qualificação dos profissionais da Educação do Campo mediante formação inicial e continuada, valorização do trabalho mediante o pagamento de salários dignos, formulação de currículos contextualizados (diálogo entre o saber popular e o saber científico), novas relações entre as pessoas e com a natureza, escolas com estrutura física adequada e equipadas com bibliotecas atualizadas, laboratórios e outros equipamentos.

Algumas condições são indispensáveis à construção e consolidação de uma política nacional de Educação do Campo: desconstrução do velho paradigma de educação rural ou para comunidades rurais, vinculado à tradicional sociedade agrária; eliminação de preconceitos (o campo como lugar de atraso e as pessoas como incapazes); desconcentração de terras e de renda; eliminação da exploração do trabalho no campo, inclusive a escravidão, ainda presente na sociedade brasileira.

Dentro da Educação do Campo, queremos dar destaque ao esforço empreendido pela Articulação no Semiárido – ASA e a Rede de Educação Contextualizada no Semiárido Brasileiro – RESAB, no sentido de buscar articular a Educação para a Convivência no Semiárido, visando contribuir na formulação de políticas públicas educacionais para o Semiárido Brasileiro, garantindo o oferecimento de uma educação pública, gratuita e de qualidade, embasada nos princípios da convivência e fortalecedora do Projeto de Desenvolvimento Sustentável da Região.

2.2 Educação e Novas Tecnologias

A presença da informática na vida das pessoas e nas escolas abriu espaço para novos modos de viver e de pensar a educação, trazendo também novas abordagens da prática educativa e alguns conceitos básicos sobre o uso das novas tecnologias na educação, como: novas educações, ambiências digitais, objetos digitais de aprendizagem, hiper-texto, as novas tecnologias em Educação de Jovens e Adultos – EJA. Poderíamos nos perguntar, quais as contribuições, por exemplo, que os jogos eletrônicos trazem para a aprendizagem dos jovens? Ou ainda, no que se refere à educação à distância: estamos diante de uma ressignificação dos paradigmas educacionais? O mundo virtual e “online” impõe consequências profundas para a produção do conhecimento e para a prática educacional.

3 Perspectivas éticas

A Filosofia da Libertação, ao longo das últimas décadas, na América Latina, tem formulado princípios que questionam a realidade de opressão e as práticas pedagógicas repetidoras dessa opressão, através de uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto dos problemas econômicos, culturais, sociais e educacionais, ofertando uma práxis pedagógica libertadora, que tem contribuído na libertação das vítimas, reforçando o caráter emancipador da educação, assumindo a construção do humano como sua centralidade. A compreensão é de que o potencial educativo está em diferentes atividades e situações e a educação escolar pode contribuir na construção de uma nova cultura, capaz de combater o pensamento único, pela interculturalidade, pela multiculturalidade, pela superação da guetificação, pela democracia participativa, pela formação de um educador comprometido com a construção de outras relações. Torna-se urgente, para isso, o debate sobre novas concepções de educação, especialmente dos conteúdos pedagógicos, bem como a produção intelectual institucionalizada mediante estudo sistemático de temas e problemas para além das respostas simplificadas. Nesse sentido, DUSSEL (2000) fala da “validade anti-hegemônica da comunidade das vítimas”, na importância fundamental de dar a palavra às vítimas: “Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu em mim a consciência” (DUSSEL, 2000, p. 423).

O ponto de partida para uma educação que se pretenda libertadora é o horror da realidade produzido na periferia do mundo pelo capitalismo explorador: “o outro, as vítimas, os pobres constituem comunidades empíricas fora do sistema. É a partir dessa “experiência empírica” a partir desta como utopia (o que não tem lugar no sistema) que a “razão crítico discursiva” começa o seu trabalho, agora como razão crítica” (DUSSEL, 2000, p.481). Descobrem-se novos lugares de experimentação, onde o “outro mundo é possível” e já existe e já acontece. As situações limites das classes populares, dos empobrecidos, das vítimas, interessa à educação libertadora. O encontro com a vítima, com o outro, como sujeito ético no reconhecimento originário é o a priori de toda ética. A formação para a cidadania a partir da alteridade exige a escuta do outro, também pela escola, do silêncio do outro que foi silenciado.

Aprender com o outro, com a vítima, revela que a práxis da libertação não mostra a sua factibilidade a partir de seu próprio poder, mas, ao contrário, a partir da fragilidade de todo sistema dominante em seu momento de crise: “a mera existência da vítima organizada e crítica já é manifestação de crise do sistema” (DUSSEL, 2000, p.561). Falamos aqui da necessidade de construir novas normas, instituições, sistemas de eticidade, sistemas educacionais, para ajudar a libertar a vítima. Trata-se de uma educação que não imponha nada, mas proponha a partir do outro. Assim, “Libertar não é só quebrar as cadeias, mas desenvolver a vida humana ao exigir que as instituições abram novos horizontes que transcendam à mera reprodução de “o Mesmo” (DUSSEL, 2000, p.566). O educador desenvolve uma co-responsabilidade solidária e uma grande capacidade de vigilância, epistemológica e social. Entendemos que é sobre isso que fala FREIRE (2004) quando diz que é impossível a educação sem que o educando se eduque a si mesmo no próprio processo da sua libertação. Define, assim, as condições de possibilidade de surgimento do nível do exercício da razão ético-crítica como condição de um processo educativo integral, propondo (sempre é proposta!) uma ação pedagógica emancipatória: transformação real das estruturas que aprisionam o educando. Por isso, “ler o mundo é um ato anterior à leitura da palavra” (FREIRE, 1992, p. 79).

A conscientização é um “apoderar-se da realidade”, como ato constante. Dussel chama isso de “revolução copernicana” em pedagogia, ainda longe de ser compreendida. É preciso humanizar o ser humano, por meio de escolhas que privilegiem o princípio da vida. O conhecimento é resultado de um longo processo de reflexão, que exige o compartilhamento de diferentes áreas, inclusive da tecnologia e das diversas manifestações culturais. É resultado de diferentes olhares, é plural. Essa reflexão, iluminada pela ética, permite a humanização da ciência, colocando-a a serviço do bem comum.

Nessa construção ético-filosófica, a partir de exemplos e situações concretas, Dussel, ao analisar as culturas indígenas da América Latina, procede a uma avaliação cultural, evidenciando o papel das emoções, que terminam por fornecer as compreensões mais profundas do ser humano, conferindo-lhes caráter de humanidade. Esse sentir avaliativo é decisivo no processo de aprendizado, possibilitando um aprofundamento da filosofia da educação e seu compromisso com a ética da libertação, compreendida como uma ética da vida, capaz de proceder a uma crítica ao sistema vigente a partir da relação que se produz entre a negação da corporalidade, que é expressa no sofrimento das vítimas, e a tomada de consciência desta negatividade. É a passagem da não-consciência à consciência ético-crítica, que Dussel explica a partir de uma citação de uma mensagem do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), do estado de Chiapas, no Sul do México:

E aprendemos [...] que a longa noite de dor de nossa gente vinha das mãos e palavras dos poderosos, que nossa miséria era riqueza para uns quantos (...) e que a abundância de sua mesa se enchia com o vazio de nossos estômagos, e que seus luxos eram paridos por nossa pobreza, e que a força de seus tetos e paredes se levantava sobre a fragilidade de nossos corpos, e que a saúde que enchia seus espaços vinha da morte nossa, e que a sabedoria que ali vivia de nossa ignorância se nutria, que a paz que a cobria era guerra para nossa gente (EZLN, apud, DUSSEL, 2000, p.313).

A verdade do sistema é negada a partir da impossibilidade de viver, a partir da negatividade das vítimas: nega-se a verdade de uma norma, ato, instituição ou sistema de eticidade como totalidade. A compreensão do que é a justiça nasce do sentimento de injustiça e evidencia-se que sem emoção não há moral. Esse é o marco que permite vislumbrar a especificidade da Ética da Libertação: o projeto utópico do sistema-mundo vigente se descobre em contradição consigo mesmo e o bem se torna equívoco[2]. A consciência ético-crítica opera uma inversão, uma transfiguração prática, ética, não só teórica, motivadora e impulsionadora da ação.

2 - Conforme nota nº 12 de Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão: “O ‘bem’ se torna equívoco: o ‘bem’ do escravismo dos faraós se torna ‘sistema dominador’ para seus escravos” (DUSSEL, 2000, p.384).

Desta forma, as vítimas criticam a ordem, proclamam sua dissolução, a necessidade de seu desaparecimento: “é o juízo ético-crítico negativo por excelência do sistema como totalidade, já que a positividade do sistema é o segredo de sua própria negatividade - de vítimas” (DUSSEL, 2000, p.320).

Em vista disso, para uma educação que se pretenda libertadora, uma filosofia ético-crítica pode surgir no miserável mundo periférico, para colaborar no crescimento do sujeito histórico como comunidade anti-hegemônica de vítimas, para contribuir na superação do sistema de dominação. Por isso, esta ética se constitui como uma ética da vida, uma ética crítica a partir das vítimas que, quando irrompem na história, criam o novo. Esse “novo”, segundo Dussel, é trazido pela ortopráxis[3], pela teoria orientada para a prática, auxiliando, concretamente, na organização e na conscientização das comunidades, denunciando as injustiças do sistema e anunciando a utopia, que funda-se na idéia regulativa de uma sociedade sem vítimas, onde libertar não é só quebrar as cadeias, mas desenvolver a vida humana como um todo, enquanto o primeiro critério da ética. Daí a tarefa da razão política, enquanto razão prático-material: ocupar-se da produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana em comunidade, pois “o cidadão é uma corporalidade vivente, uma subjetividade necessitada e um sujeito auto-reflexivo que tem a vida humana sob sua responsabilidade” (DUSSEL, 2001, p.50). Nesse sentido, diz Franz Hinkelammert que “a produção material da vida humana é a última instância de toda vida humana e portanto de sua liberdade: o homem morto – ou ameaçado de morte – deixa de ser livre, independente do contexto social no qual viva” (HINKELAMMERT, 1990, p.8).

3 Compreendida como saber teórico articulado à práxis da libertação dos oprimidos. É uma teoria prática, surgida dessa práxis. É uma teoria da libertação em seu sentido integral. A libertação do oprimido, dirá Dussel ao definir a Filosofia da Libertação, é o fato pensado em primeiro lugar e é a condição de possibilidade de qualquer outro tema.

A Filosofia da Libertação ocupa-se dessa produção da vida material da pessoa humana, particularmente da vítima, construindo seu próprio projeto utópico crítico: tornar a vida humana possível é o critério fundamental da verdade, de uma verdade “profundamente ligada ao ventre que gera e aos seios que amamentam” (ZIMMERMAN, 1987, p.213). Trata-se da compreensão de que a vida humana é fundamental para qualquer fundamento de uma filosofia que não pretenda contribuir com a alienação e a morte, de uma ética que possibilite a vitória da vida[4]. A dominação, impetrada pela ontologia totalitária e pelas filosofias repetidoras do pensamento hegemônico, foi muito bem caracterizada por Sartre que, ao prefaciar o livro de Frans Fanon, Os condenados da terra, disse:

4 Nesse sentido, Dussel compreende a grande contribuição do pensamento de Levinas, que buscou “mostrar que todo o horizonte da verdade”, “a ordem do ser”, a começar pelo “mundo” de Heidegger (a ciência ... a filosofia) e as instituições de todos os sistemas históricos foram (e continuam sendo) em sua origem: éticos; resposta de uma busca de solução a um “problema” colocado pela dor injusta sofrida pela vítima, dor pela qual sou (somos) desde sempre re-sponsável a priori” (DUSSEL, 2000, p.372).

Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham de Verbo, os outros pediam-no emprestado. Entre aqueles e estes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade se mostrava nua; as ‘metrópoles’ queriam-na vestida; era preciso que os indígenas as amasse (SARTRE, 1979, p.3).

É necessário, portanto, sair do ser, escapar desse pensamento hegemônico totalitário. Isso não significa negar o ser, mas colocá-lo no seu lugar devido, que é depois do ético. Esse outro modo de pensar que é a Filosofia da Libertação, postula a anterioridade da ética, entendida como responsabilidade pelo outro: “A ética é primeira e anterior porque é relação entre entes-humanos concretos e não relação entre um ente-inteligente e o ser (qüididade) de um outro ente-inteligente” (COSTA, 2000, p.27).

Por isso, a Filosofia da Libertação elabora seu discurso a partir da vítima e fundamenta sua práxis com a intenção de libertar essa vítima de toda situação de opressão, o que faz com que a libertação se constitua no único telos de todo projeto utópico crítico – e, em última instância, da educação libertadora: todo o pensamento e toda a reflexão humana deve perseguir, incansavelmente, a transformação das práticas opressivas, aspirando essa libertação a partir do lugar da vítima. Conhecer: saber perguntar, saber indagar e saber procurar respostas para as perguntas formuladas. Buscar respostas: ação sempre multidisciplinar. Aprendizagem: processo e não produto acabado. Estamos sempre aprendendo na medida em que nos defrontamos com situações que nos desafiam e que exigem que usemos procedimentos diferentes dos habituais. A aprendizagem é uma construção. A ação humana é teleológica: visa a humanização do humano.

ABSTRACT: This text discusses the Liberation Philosophy scholarship born in Latin America which seeks to articulate itself with the practice of oppressed liberation. From this historical context, it shows that the quest for knowledge is nowadays a recurring concern in Philosophy based on the Liberation Philosophy in the Latin American continent as well as related to overcoming all the oppressions, engaged in the construction of the human by contributing in the production of liberal educational processes. In this context, ethics plays a decisive part, by making possible to question the unique thought and denouncing the neoliberal mechanisms of domination continuity and of emergence of new victims. In the education area, what is highlighted is the understanding of the educative potential in different activities and situations which see education as a way of contribution and construction of a new culture capable to give voice to voiceless, to listen to the other, especially those who were silenced. In brief, the text shows the Liberation Philosophy critique to oppressive education, by reinforcing the thought which contributes to the liberation of the oppressed.

Key words: Education, Liberation Philosophy, Ethics.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO. Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

COSTA, Márcio Luis. Levinas – uma introdução. Vozes: Petrópolis, 2000.

DI FELICE, Massino; MUÑOZ, Cristobal. A revolução invencível: Subcomandante Marcos e Exército Zapatista de Libertação Nacional – cartas e comunicados. São Paulo: Boitempo, 1998.

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000.

_____. Hacia uma filosofia política crítica. Bilbao: Desclée, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 38. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

_______. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

HINKELAMMERT, Franz J. Democracia y totalitarismo. San José: DEI, 1990.

SARTRE, Jean Paul. Prólogo a Fanon. In: FANON, Franz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

SOUZA, João Franscico de. E a educação popular: Quê?? Uma pedagogia para fundamentar a educação, inclusive escolar, necessária ao povo brasileiro. Recife: Edição Bagaço – NUPEP/UFPE: 2007. 287

Revista Lugares de Educação, Bananeiras/PB, v. 1, n. 2, p. 276-287, jul.-dez. 2011 ISSN 2237-1451 Disponível em <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/rle>

ZIMMERMANN, Roque. América Latina o não ser: uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussel (1962-1976). Petrópolis: Vozes, 1987.

- Recebido em abril de 2011.

- Aprovado em dezembro de 2011.

Revista Lugares de Educação, Bananeiras/PB, v. 1, n. 2, p. 276-287, jul.-dez. 2011 ISSN 2237-1451 Disponível em <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/rle>