Do Contrato Social - Livro II

LIVRO II

I – A soberania é inalienável.

A primeira e mais importante conseqüência dos princípios acima estabelecidos está em que somente a vontade geral tem possibilidade de dirigir as forças do Estado, segundo o fim de sua instituição, isto é, o bem comum; pois, se a oposição dos interesses particulares tomou necessário o estabelecimento das sociedades, foi a conciliação desses mesmos interesses que a tornou possível. Eis o que há de comum nesses diferentes interesses fornecedores do laço social; e, se não houvesse algum ponto em torno do qual todos os interesses se harmonizam, sociedade nenhuma poderia existir. Ora, é unicamente à base desse interesse comum que a sociedade deve ser governada.

Digo, pois, que outra coisa não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, jamais se pode alienar, e que o soberano, que nada mais é senão um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o poder, não porém a vontade.

Com efeito, se não é impossível fazer concordar uma vontade particular com a vontade geral, em torno de algum ponto, é pelo menos impossível fazer com que esse acordo seja durável e constante; porque a vontade particular, por sua natureza, tende às preferências, e a vontade geral à igualdade. É ainda mais impossível haja um fiador desse convênio; e mesmo quando sempre devesse existir, não seria ele um efeito da arte, mas do acaso. O soberano pode perfeitamente dizer: Desejo neste instante o que tal homem deseja, ou ao menos o que ele diz desejar, mas não pode dizer: O que este homem desejar amanhã, eu o desejarei ainda, visto ser absurdo entregar-se a vontade aos grilhões para o futuro e não depender de nenhuma vontade consentir em nada que contrarie o interesse do ser que deseja. Se o povo, portanto, promete simplesmente obedecer, dissolve-se em conseqüência desse ato, perde sua qualidade de povo; no instante em que houver um senhor, não mais haverá soberano, e a partir de então o corpo político estará destruído.

Não quer isso dizer que as ordens dos chefes não possam ser consideradas como vontades gerais, enquanto o soberano, livre para a isso se opor, não o faz. Em semelhante caso, deve-se, do silêncio universal, presumir o consentimento do povo, o que se explicará mais demoradamente.

II – A soberania é indivisível.

Pela mesma razão que a torna alienável, a soberania é indivisível, porque a vontade é geral (5), ou não o é; é a vontade do corpo do povo, ou apenas de uma de suas partes. No primeiro caso, essa vontade declarada constitui um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou um ato de magistratura: é, no máximo, um decreto.

Porém nossos políticos, não podendo dividir a soberania em seu princípio, dividem-na em força e em vontade, em poder legislativo e em poder executivo, em direitos de impostos, de justiça e de guerra, em administração interior e em poder de tratar com o estrangeiro; ora confundem todas essas partes, ora as separam; fazem do soberano um ser fantástico formado de peças ajustadas; é como se compusessem o homem reunindo diversos corpos, um dos quais teria os olhos, outro os braços, outro os pés, e nada mais. Os pelotiqueiros do Japão, segundo dizem, despedaçam uma criança à vista da assistência; em seguida lançam ao ar, um após outro, todos os membros, e fazem a criança voltar ao chão viva e completamente reajuntada. Tais são aproximadamente os engodos de nossos políticos: depois de haverem desmembrado o corpo social graças a uma prestidigitação digna da feira, reúnem as peças não se sabe como.

Provém esse erro da inexistência de noções exatas a respeito da autoridade soberana, e por se haverem tomado como partes dessa autoridade o que não era mais que emanações da mesma. Assim, olhou-se, por exemplo, o ato da declaração de guerra e o de assinar a paz como atos de soberania, o que é falso, uma vez que cada um desses atos de modo algum constitui uma lei, mas tão-somente uma aplicação da lei, um ato particular que determina o caso da lei, como se verá com clareza quando a idéia unida ao termo lei for fixada.

Observando igualmente as demais divisões, perceberíamos que todas as vezes que imaginamos ver a soberania partilhada nos enganamos, que os direitos tomados como partes dessa soberania lhe são todos subordinados e sempre supõem vontades supremas, dos quais esses direitos só dão a execução.

Não se saberia dizer quanto essa inexatidão tem obscurecido as decisões dos autores em matéria de direito político, quando pretenderam julgar os respectivos direitos dos reis e dos povos, no tocante aos princípios estabelecidos. Todos podem ver, nos capítulos III e IV do primeiro livro de Grotius, de que maneira este sábio e Barbeyrac, seu tradutor, se encabrestam e embaraçam em sofismas, receosos de dizer muito ou de não dizer o suficiente, consoante seus intentos, e de pôr em choque os interesses que tinham de conciliar. Grotius, refugiado em França, descontente da pátria e querendo cair nas boas graças de Luís XIII, a quem dedicou o livro, nada economiza no sentido de despojar os povos de todos os direitos e revestir os reis com toda a arte possível. Foi também essa a atitude de Barbeyrac, que dedicava sua tradução ao rei da Inglaterra, Jorge I. Mas, desgraçadamente, a expulsão de Jacques II, por ele chamada de abdicação, forçava-o a manter reserva, a esquivar-se, a tergiversar, para não transformar Guilherme num usurpador. Se esses dois escritores tivessem adotado os verdadeiros princípios, todas as dificuldades seriam superadas e eles se teriam mostrado sempre conseqüentes; mas, nesse caso, teriam, com tristeza, dito a verdade e cortejado unicamente o povo. Ora, a verdade de nenhum modo conduz à fortuna, e o povo não concede embaixadas, nem cátedras, nem pensões.

III – A vontade geral pode errar.

Resulta do precedente que a vontade geral é sempre reta e tende sempre para a utilidade pública; mas não significa que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retitude. Quer-se sempre o próprio bem, porém nem sempre se o vê: nunca se corrompe o povo, mas se o engana com freqüência, e é somente então que ele parece desejar o mal.

Há muitas vezes grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta olha somente o interesse comum, a outra o interesse privado, e outra coisa não é senão a soma de vontades particulares; mas tirai dessas mesmas vontades as que em menor ou maior grau reciprocamente se destroem (6), e resta como soma das diferenças a vontade geral.

Se, quando o povo, suficientemente informado, delibera, não tivessem os cidadãos nenhuma comunicação entre si, sempre resultaria a vontade geral do grande número de pequenas diferenças, e a deliberação seria sempre boa. Quando, porém, há brigas, associações parciais às expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em relação a seus membros, e particular no concernente ao Estado; pode-se então dizer que já não há tantos votantes quantos são os homens, mas apenas tantos quantas forem as associações; as diferenças se tornam mais numerosas e fornecem um resultado menos geral. Finalmente, quando uma dessas associações se apresente tão grande a ponto de sobrepujar todas as outras, não mais tereis por resultado uma soma de pequenas diferenças, porém uma diferença única; deixa de haver então a vontade geral, e a opinião vencedora é tão-somente uma opinião particular.

Portanto, a fim de se ter o perfeito enunciado da vontade geral, importa não haja no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só manifeste o próprio pensamento (7). Foi assim a única e sublime instituição do grande Licurgo. Pois se houver sociedades parciais, será necessário multiplicar o seu número e prevenir a desigualdade entre elas, como o fizeram Sólon, Numa e Servius. Tais precauções são as únicas adequadas para que a vontade geral esteja sempre esclarecida e o povo de modo nenhum se equivoque.

IV – Dos limites do poder soberano.

Se o Estado ou a cidade só constitui uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, é necessário uma força universal e compulsória para mover e dispor cada uma das partes da maneira mais conveniente para o todo. Como a Natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, dá o pacto social ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu disse, o nome de soberania.

Contudo, além da pessoa pública, temos a considerar as pessoas privadas que a compõem e cuja vida e liberdade são naturalmente independentes delas. Trata-se, pois, de distinguir com acerto os respectivos direitos dos cidadãos e do soberano (8), e os deveres a cumprir por parte dos primeiros, na qualidade de vassalos, do direito natural que devem desfrutar na qualidade de homens.

Convém que tudo quanto cada qual aliene em virtude do pacto social de seu poder, de seus bens, de sua liberdade, seja apenas a parte cujo uso interesse à sociedade, todavia, é preciso igualmente convir que só o soberano pode ser juiz desse interesse.

Todos os serviços que possa um cidadão prestar ao Estado, tão logo o soberano os solicite, passam a constituir um dever; mas, de seu lado, o soberano não tem o direito de sobrecarregar os vassalos de nenhum grilhão inútil à comunidade; sequer o pode desejar: porque, sob a lei da razão, nada se faz sem causa, do mesmo modo que sob a lei natural.

Os empenhos que nos ligam ao corpo social só são obrigatórios pelo fato de serem recíprocos, e é tal sua natureza que, desempenhando-os, não se pode trabalhar para outrem sem trabalhar também para si mesmo. Por que é sempre reta a vontade geral, e por que desejam todos, constantemente, a felicidade de cada um, se não pelo fato de não haver quem não se aproprie dos termos cada um e não pense em si mesmo ao votar por todos? Isso prova que a igualdade de direito e a noção de justiça que aquela produz derivam da preferência que cada qual se atribui, e, por conseguinte, da natureza do homem; que a vontade geral, por ser realmente conforme, deve existir no seu objeto, bem como na sua essência; que deve partir de todos, para a todos ser aplicada; e que perde sua retidão natural quando tende a algum objeto individual e determinado, porque então, julgando do que nos é estranho, não temos nenhum real princípio de eqüidade a conduzir-nos.

Com efeito, tão logo se trate de um fato ou de um direito particular, sobre ponto não regulado por convenção geral e interior, o negócio se toma contencioso; constitui um processo em que os particulares interessados representam uma das partes e o público outra, mas no qual não vejo nem a lei a ser seguida nem o juiz que deve pronunciar. Seria então ridículo remontar a uma expressa decisão da vontade geral, que só pode ser a conclusão de uma das partes, e que, por conseguinte, não passa para a outra de uma vontade estranha, particular, induzida à injustiça e sujeita ao erro. Assim, do mesmo modo, como uma vontade particular não pode representar a vontade geral, a vontade geral, por seu turno, muda de natureza quando tem um objeto particular, e não pode, como geral, decidir nem sobre um homem nem sobre um fato. Por exemplo, quando o povo de Atenas nomeava ou destituía os chefes, tributava honras a um, impunha castigos a outro, e, por infinidade de decretos particulares, exercia indistintamente todos os atos do governo, não mais estava então de posse da vontade geral propriamente dita, não mais agia como soberano, mas como magistrado. Isto parecerá contrário às idéias comuns, mas é preciso me concedam o tempo de expor as minhas.

Deve-se por aí conceber que o que generaliza a vontade é menos o número de vozes que o interesse comum que as une; porque, numa instituição, cada qual se submete necessariamente às condições que impõe aos outros: admirável acordo do interesse e da justiça, que fornece às deliberações comuns um caráter eqüitativo, o qual se vê desvanecer-se na discussão de todo negócio particular, à falta de um interesse comum que una e identifique a regra do juiz com a da parte.

Por qualquer dos lados que se remonte ao princípio, chega-se sempre à mesma conclusão, a saber, que o pacto social estabelece tal igualdade entre os cidadãos, que os coloca todos sob as mesmas condições e faz com que todos usufruam dos mesmos direitos. Destarte, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece todos os cidadãos, de maneira que o soberano apenas conheça o corpo da nação e não distinga nenhum dos corpos que a compõem. Que é, pois, na realidade, um ato de soberania? Não é um convênio entre o superior e o inferior, mas uma convenção do corpo com cada um de seus membros: convenção legítima, porque tem por base o contrato social; eqüitativa, porque é comum a todos; útil, porque não leva em conta outro intento que não o bem geral, porque possui como fiadores a força do público e o poder supremo. Enquanto os vassalos estiverem apenas sujeitos a tais convenções, não obedecerão a ninguém, mas unicamente à própria vontade; e perguntar até aonde se estendem os respectivos direitos do soberano e dos cidadãos é perguntar até que ponto podem estes empenhar-se consigo mesmos, cada um com todos, e todos com cada um deles.

Vê-se por aí que o poder soberano, todo absoluto, todo sagrado, todo inviolável que é, não passa nem pode passar além dos limites das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente da parte de seus bens e da liberdade que lhe foi deixada por essas convenções; de sorte que o soberano jamais possui o direito de sobrecarregar um vassalo mais que outro, porque então, tornando-se o negócio particular, deixa o seu poder de ser competente.

Uma vez admitidas essas distinções, é tão falso haver no contrato da parte dos particulares, qualquer renúncia verdadeira, que sua situação, por efeito do contrato, se torna realmente preferível à que tinha anteriormente, pois que, em lugar de uma alienação, fizeram a troca vantajosa de uma maneira incerta e precária por uma outra melhor e mais segura, da, independência natural pela liberdade, do poder de causar dano a outrem por sua própria segurança, e da força, que podia ser por outros sobrepujada, por um direito que a união social transforma em invencível. A própria vida, consagrada por eles ao Estado, fica continuamente protegida, e quando a expõem na defesa deste, que fazem então senão devolver o que dele receberam? Que fazem eles além do que teriam freqüentemente feito, e com maior perigo, no estado natural, quando, entregando-se a inevitáveis combates, defendessem, com perigo de vida, o que lhes serve para a conservar? Todos devem necessariamente lutar em defesa da pátria, é verdade; mas também é verdade que ninguém necessita de combater para a própria defesa. Com referência à nossa segurança, não ganhamos ainda, quando nos dispomos a correr os riscos que seria necessário correr em nosso favor tão logo fossemos dessa segurança despojados?

V – Do direito de vida e morte.

Pergunta-se como podem os particulares, desprovidos do direito de dispor de suas vidas, transferir ao soberano esse mesmo direito que não possuem? Tal questão só parece difícil de ser resolvida, porque está mal colocada. Todo homem tem o direito de arriscar a própria vida a fim de a conservar. Alguma vez foi dito que quem se lança por uma janela para escapar de um incêndio seja culpado de cometer suicídio? Imputou-se alguma vez o mesmo crime a quem, embarcando, sem conhecer o perigo, vem a morrer durante uma tempestade?

O tratado social tem por objetivo a conservação dos contratantes. Quem quer o fim quer também os meios, e esses meios são inseparáveis de alguns riscos, inclusive de algumas perdas. Quem quer conservar a vida às expensas dos outros deve dá-la por eles quando se faz necessário. Ora, o cidadão não é juiz do perigo ao qual a lei o expõe; e quando o príncipe lhe diz: “Ao Estado é útil que morras”, ele deve morrer, pois não foi senão sob essa condição que viveu em segurança até esse momento, e sua vida não é mais uma mercê da Natureza, mas um dom condicional do Estado.

A pena de morte, imposta aos criminosos. pode ser de certa forma encarada sob esse ponto de vista: para não ser vítima de um assassino é que se consente em morrer, sendo o caso. Nesse tratado, longe de se dispor da própria vida, pensa-se em garanti-la, e não é de presumir premedite então um contratante fazer-se enforcar.

De resto, todo malfeitor, ao atacar o direito social, torna-se, por seus delitos, rebelde e traidor da pátria; cessa de ser um de seus membros ao violar suas leis, e chega mesmo a declarar-lhe guerra. A conservação do Estado passa a ser então incompatível com a sua; faz-se preciso que um dos dois pereça, e quando se condena à morte o culpado, se o faz menos na qualidade de cidadão que de inimigo. Os processos e a sentença constituem as provas da declaração de que o criminoso rompeu o tratado social, e, por conseguinte, deixou de ser considerado membro do Estado. Ora, como ele se reconheceu como tal, ao menos pela residência, deve ser segregado pelo exílio, como infrator do pacto, ou pela morte, como inimigo público, pois um inimigo dessa espécie não é uma pessoa moral; é um homem, e manda o direito da guerra matar o vencido.

Mas, dir-se-á, a condenação de um criminoso constitui um ato particular. De acordo: essa condenação, também, não pertence em absoluto ao soberano; é um direito que este pode conferir sem o poder exercer pessoalmente. Todas as minhas idéias se coordenam, mas eu não saberia expô-las simultaneamente.

Ademais, a freqüência dos suplícios constitui sempre um sinal de fraqueza ou indolência no governo: não existe malvado que não possa servir para alguma coisa. Não se tem o direito de matar, mesmo para exemplo, senão aquele que se não pode conservar sem perigo.

Quanto ao direito de agraciar ou isentar um culpado da pena imposta pela lei e pronunciada pelo juiz, é da competência exclusiva de quem se encontra acima do juiz e da lei, isto é, do soberano; seu direito no que a isto concerne não está ainda bem nítido, e o uso dele tem sido muito raro. Num Estado bem governado, há poucas punições, não porque se concedam muitas graças, mas pelo fato de haver poucos criminosos; a quantidade de crimes assegura a impunidade, quando o Estado se deteriora. Na República romana, jamais o Senado ou os cônsules intentaram conceder graça; o próprio povo não a fazia, muito embora revogasse algumas vezes a própria sentença. As graças freqüentes anunciam que breve os delitos não mais necessitarão delas, e cada um pode ver aonde isso nos conduzirá. Sinto, porém, que o coração murmura e me detém a pena; deixemos que discuta esses problemas o homem justo, que jamais pecou e que nunca necessitou para si mesmo de perdão.

VI – Da lei.

Pelo pacto social demos existência ao corpo político; trata-se agora de lhe dar o movimento e a vontade por meio da legislação. Porque o ato primitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une, não determina ainda o que ele deve fazer para se conservar.

O que é bom e conforme a ordem o é pela natureza das coisas e independentemente das convenções humanas. Toda justiça vem de Deus; só Ele é sua fonte; mas, se soubéssemos recebê-la de tão alto, não teríamos necessidade nem de governo nem de leis. Está fora de dúvida a existência de uma justiça universal, só da razão emanada; tal justiça, porém, para ser admitida entre nós, deve ser recíproca. Considerando humanamente as coisas, à falta de sanção natural, são vãs as leis da justiça entre os homens; fazem o bem do perverso e o mal do justo, quando este as observa com todos, sem que ninguém as observe consigo. É necessário, pois, haja convenções e leis para unir os direitos aos deveres e encaminhar a justiça a seu objetivo. No estado natural, onde tudo é comum, nada devo àqueles a quem nada prometi; só reconheço como sendo de outrem o que me é inútil. Isso não ocorre no estado civil, onde todos os direitos são fixados pela lei.

Mas que é enfim uma lei? Enquanto continuarmos a juntar a esse termo somente idéias metafísicas, prosseguiremos a raciocinar sem nada entender, e quando tivermos dito o que é uma lei natural, não saberemos melhor o que é uma lei do Estado.

Já tive ocasião de dizer que, de modo algum, havia vontade geral num objeto particular. Esse objeto particular encontra-se, com efeito, no Estado ou fora do Estado; uma vontade que lhe seja estranha não é em absoluto geral em relação a ele; e se esse objeto está no Estado, dele faz parte, e então se forma entre o todo e sua parte uma relação que os transforma em dois seres separados, cuja parte é um, e o todo, menos esta mesma parte, constitui o outro. Mas o todo menos uma parte, não é de nenhum modo o todo, e enquanto essa relação subsiste, não mais há o todo, mas sim duas partes desiguais; de onde se conclui que a vontade de uma não é também mais geral em relação à outra.

Mas quando todo o povo estatui sobre todo o povo, só a si mesmo considera; e se se forma então uma relação, é do objeto inteiro sob um ponto de vista ao objeto inteiro sob outro ponto de vista, sem nenhuma divisão do todo. Então, a matéria sobre a qual estatuímos passa a ser geral, como a vontade que estatui. A esse ato é que eu chamo uma lei.

Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os vassalos em corpo e as ações como sendo abstratas, jamais um homem como indivíduo, nem uma ação particular. Destarte, pode a lei estatuir perfeitamente que haverá privilégios, mas não pode ofertá-los nominalmente a ninguém; pode a lei instituir diversas classes de cidadãos, assinalar inclusive as qualidades que darão direito a essas classes; mas não pode nomear este ou aquele para ser nelas admitido; pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei nem nomear uma família real: numa palavra, toda função que se relacione com um objeto individual não pertence de nenhum modo ao poder legislativo.

No tocante a esta idéia, vê-se imediatamente não mais ser preciso perguntar a quem compete fazer as leis, pois que elas constituem atos da vontade geral; nem se o príncipe se encontra acima das leis, pois que ele é membro do Estado; nem se a lei pode ser injusta, pois que ninguém é injusto consigo mesmo; nem em que sentido somos livres e sujeitos às leis, pois que estas são apenas registros de nossas vontades.

Vê-se ainda que, reunindo a lei da universalidade da vontade e a do objeto, tudo que um homem, seja quem for, ordena de sua cabeça não é em absoluto uma lei; mesmo o que é ordenado pelo soberano acerca de um objeto particular não é igualmente uma lei, mas um decreto; nem constitui um ato de soberania, mas de magistratura.

Eu chamo, pois, república todo Estado regido por leis, independente da forma de administração que possa ter; porque então somente o interesse público governa, e a coisa pública algo representa. Todo governo legítimo é republicano (9). Explicarei mais adiante o que é o governo.

As leis não são propriamente senão as condições de associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o autor das mesmas; compete unicamente aos que se associam regulamentar as condições de sociedade; mas de que maneira as regulamentarão? Fá-lo-ão de comum acordo, como que por uma inspiração sublime? Possui o corpo político um órgão qualquer para enunciar-lhe as vontades? Quem lhe dará a previsão necessária para formar e publicar os atos antecipadamente, ou como os pronunciará no momento de necessidade? De que maneira uma turba cega, que em geral não sabe o que quer, porque raramente conhece o que lhe convém, executará por si mesma um empreendimento de tal importância e tão difícil como um sistema de legislação? O povo, de si mesmo, sempre deseja o bem; mas nem sempre o vê, de si mesmo. A vontade geral é sempre reta; mas o julgamento que a dirige nem sempre é esclarecido. E necessário fazer-lhe ver os objetos tais como são, e muitas vezes tais como devem parecer-lhe; é preciso mostrar-lhe o bom caminho que procura, protegê-la da sedução das vontades particulares, aproximar de seus olhos os lugares e os tempos, equilibrar o encanto das vantagens presentes e sensíveis com o perigo dos males afastados e ocultos. Os particulares vêem o bem que rejeitam, o público deseja o bem que não vê. Todos igualmente necessitam de guias; é preciso obrigar uns a conformar suas vontades com sua razão; é necessário ensinar outrem a conhecer o que pretende. Então, das luzes públicas resulta a união do entendimento e da vontade no corpo social; dá o exato concurso das partes e, finalmente, a maior força do todo. Eis de onde nasce a necessidade de um legislador.

VII – Do legislador.

Para descobrir as melhores regras de sociedade convenientes às nações, far-se-ia preciso uma inteligência superior que visse todas as paixões e não provasse nenhuma; que não tivesse nenhuma relação com nossa natureza e a conhecesse no íntimo; cuja felicidade fosse independente de nós, e que, portanto. quisesse ocupar-se da nossa; enfim que, no progresso dos tempos, procurando-se uma glória longínqua, pudesse trabalhar em um século e usufruir em um outro (10). Haveria necessidade de deuses para dar leis aos homens.

O mesmo raciocínio que fazia Calígula com referência ao fato, fazia Platão no tocante ao direito, a fim de definir o homem civil ou real, procurado por ele em seu livro Do Reino; porém é verdade que um grande príncipe é também um homem raro; como não há de sê-lo um grande legislador? Ao primeiro basta seguir o modelo a ser proposto pelo outro; este representa o mecânico inventor da máquina, aquele é apenas o operário que a monta e a faz funcionar. No nascimento das sociedades, diz Montesquieu, encontram-se os chefes das repúblicas que fazem as instituições, e é, em seguida, a instituição que forma os chefes das repúblicas.

Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com capacidade de, por assim dizer, mudar a natureza humana; de transformar cada indivíduo, que, por si mesmo, constitui um todo perfeito e solidário, em parte de um todo maior, do qual esse indivíduo recebe, de certa forma, a vida e o ser; de alterar a constituição do homem a fim de reforçá-la; de substituir uma existência parcial e moral à existência física e independente que todos recebemos da Natureza. Numa palavra, é preciso que arrebate ao homem as forças que lhe são inerentes, para lhe dar forças estranhas, das quais ele não possa fazer uso sem a ajuda alheia. Quanto mais essas forças naturais estejam mortas e aniquiladas, maiores e mais duráveis são as aquisições, e também mais sólida e perfeita é a instituição; de sorte que, se cada cidadão nada é, nada pode ser sem a ajuda de todos os outros, e a força adquirida pelo todo é igual ou superior à soma das forças naturais de todos os indivíduos, pode-se dizer que a legislação se encontra no ponto mais alto de perfeição que possa ser atingido.

O legislador, a todos os respeitos, é no Estado um homem extraordinário. Se o deve ser por seu engenho, não o é menos por seu emprego; não é de modo algum magistratura, não é de nenhum modo soberania. O emprego, que constitui a república, não entra em absoluto em sua constituição; é uma função particular e superior, que nada tem de comum com o império humano; porque, se quem dirige os homens não deve dirigir as leis, quem dirige as leis não deve, pela mesma razão, dirigir os homens; do contrário, suas leis, ministras de suas paixões, perpetuariam muitas vezes suas injustiças, e ele jamais poderia evitar que intuitos particulares alterassem a santidade de sua obra.

Ao dar leis à sua pátria, começou Licurgo por abdicar a realeza. Era costume da maioria das cidades gregas confiar a estrangeiros o estabelecimento de suas leis. As modernas repúblicas da Itália imitaram muitas vezes esse uso. A de Genebra fez o mesmo e achou-se bem (11). Roma, em seus mais belos tempos, viu renascer em seu seio todos os crimes da tirania e viu-se prestes a perecer, pelo fato de haver reunido sobre as mesmas cabeças a autoridade legislativa e o poder soberano.

Entretanto, os próprios decênviros jamais se arrogaram o direito de forçar a introdução de nenhuma lei, partida de sua autoridade. “Nada do que propomos”, diziam eles ao povo, “pode transformar-se em lei sem vosso consentimento. Romanos, sede vós mesmos os autores das leis incumbidas de promover a vossa felicidade.”

Quem redige as leis não tem, portanto, ou não deve ter nenhum direito legislativo, e o próprio povo não pode, mesmo se o quisesse, despojar-se desse incomunicável direito, porque, de acordo com o pacto fundamental, a vontade geral é a única que obriga os particulares, e nunca se pode afirmar que uma vontade particular está conforme a vontade geral, senão depois de havê-la submetido aos livres sufrágios do povo. Já tive oportunidade de dizer tal coisa, mas não me parece inútil repeti-la.

Assim, acham-se simultaneamente na obra da legislação duas coisas na aparência incompatíveis: um empreendimento acima da força humana, e, para executá-lo, uma autoridade que nada representa.

Outra dificuldade a merecer atenção: os sábios, desejosos de falarem ao vulgo a sua linguagem, não a deste, não conseguiriam fazer-se entender. Ora, há mil espécies de idéias impossíveis de traduzir na língua do povo. As intenções bastante gerais e os objetos excessivamente distantes ficam, da mesma maneira, fora de sua compreensão. Cada indivíduo, não apreciando outro plano de governo que não o relacionado com seu interesse particular, dificilmente percebe as vantagens a retirar das contínuas privações impostas pelas boas leis. Para que um povo nascente possa saborear as salutares máximas da política e seguir as regras fundamentais da razão do Estado, seria indispensável que o efeito pudesse tornar-se a causa, que o espírito social, que deve constituir a obra da instituição, presidisse a própria instituição, e que fossem os homens, antes das leis, o que devem ser graças a elas. Assim, pois, já que o legislador não pode empregar nem a força nem o raciocínio, é mister que recorra a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer.

Eis o que forçou, em todos os tempos, os pais das nações a recorrer à intervenção celeste e honrar os deuses por sua própria sabedoria, a fim de que os povos, submetidos às leis do Estado como às da Natureza, e reconhecendo o mesmo poder na formação do homem e na da cidade, obedeçam com liberdade e aceitem docilmente o jugo da felicidade pública.

Essa sublime razão, que se eleva acima do entendimento dos homens vulgares, é aquela pela qual o legislador põe as decisões na boca dos imortais, a fim de conduzir, através da autoridade divina, os que não seriam abalados pela prudência humana (12). Mas não é dado a todo homem fazer os deuses falarem, nem ser acreditado quando se anuncia como intérprete deles. O elevado espírito do legislador é o verdadeiro milagre que deve provar sua missão. Todo homem pode gravar tábuas de pedra, ou comprar um oráculo, ou simular um comércio secreto com alguma divindade, ou adestrar um pássaro que lhe fale ao ouvido, ou encontrar outros meios grosseiros para se impor ao povo. Quem nada souber, além disso, poderá inclusive reunir por acaso um bando de insensatos, mas jamais fundará um império, e sua extravagante obra cedo perecerá consigo. Vãos prestígios apenas formam um laço passageiro; não há senão a sabedoria para torná-lo durável. A lei judaica, sempre subsistente, a do filho de Ismael, que há dez séculos vem regendo a metade do mundo, proclamam ainda hoje os grandes homens que as ditaram, e conquanto a orgulhosa filosofia ou o cego espírito de partido não veja nelas senão felizes impostores, a verdadeira política admira em suas instituições o grande e poderoso espírito que preside os estabelecimentos duráveis.

Disso tudo não se deve concluir, juntamente com Warourton, que a política e a religião tenham entre nós um objetivo comum; mas sim que, na origem das nações, uma serve de instrumento à outra.

VIII – Do povo.

Assim como um grande arquiteto, antes de construir, observa e sonda o solo, para ver se este tem condições de sustentar o peso, o sábio instituidor não começa por redigir boas leis em si mesmas; mas examina anteriormente se o povo, ao qual são destinadas, está apto para as aceitar. Foi por isso que Platão recusou dar leis aos árcades e aos cirenaicos, sabendo que esses dois povos eram ricos e não podiam admitir a igualdade; foi também por isso que se viram em Creta leis perfeitas e homens perversos, porque Minos só havia disciplinado um povo sobrecarregado de vícios.

Brilharam aqui na Terra milhares de nações que jamais teriam podido suportar boas leis; e mesmo essas que elas teriam admitido não duraram senão um curto espaço de tempo para isso. Os povos, assim como os homens, somente são dóceis na juventude; ao envelhecerem, tornam-se incorrigíveis; uma vez estabelecidos os costumes e enraizados os preconceitos, constitui empreendimento perigoso e inútil pretender reformá-los; o povo sequer concorda que se lhe toque nos males a fim de os destruir, à semelhança desses estúpidos e medrosos doentes que estremecem com a presença do médico.

Não quer isso dizer que, do mesmo modo como certas enfermidades transtornam a mente dos homens e nelas apagam a lembrança do passado, não se achem às vezes, na duração dos Estados, épocas violentas em que as revoluções fazem no povo o mesmo que determinadas crises fazem nos indivíduos, em que o horror do passado substitui o esquecimento, e o Estado, incendiado pelas guerras civis, renasce por assim dizer das cinzas e readquire o vigor da juventude, saindo dos braços da morte. Foi assim Esparta no tempo de Licurgo, foi assim Roma após os Tarquínios, e foram assim, entre nós, a Holanda e a Suíça, depois da expulsão dos tiranos.

São raros, porém, esses acontecimentos, são exceções cujo motivo sempre se acha na constituição particular do Estado excetuado. Não poderiam acontecer duas vezes no seio do mesmo povo, o qual pode tornar-se livre enquanto bárbaro, mas não o pode quando a alçada civil se apresenta gasta. As agitações, então, podem destruí-lo, sem que as revoluções tenham possibilidades de o restabelecer; e tão logo seus grilhões se rompam, tomba o povo disperso e deixa de existir. Daí por diante, passa a necessitar de um senhor, não de um libertador. Povos livres, recordai-vos desta máxima: Pode-se adquirir a liberdade, mas nunca recobrá-la.

Há para as nações, como para os homens, um tempo de maturidade, que é preciso esperar, antes de as sujeitarmos às leis; mas a maturidade de um povo não é fácil de conhecer, e se a antecipamos, aborta a obra. Certo povo pode ser disciplinado ao nascer; outro não o será ao término de dez séculos. Os russos não serão nunca verdadeiramente policiados, porque o foram muito cedo. Pedro o Grande tinha o talento imitativo, não o verdadeiro gênio, o que cria e tudo faz do nada. Algumas coisas que fez eram boas, a maioria delas indevida. Ele viu que seu povo era bárbaro, mas não viu em absoluto que seu povo não estava amadurecido para a polícia; ele desejou civilizá-lo, quando devia torná-lo aguerrido; quis, de início, fazer deles alemães, ingleses, quando era preciso começar por fazê-los russos; impediu seus vassalos de jamais se tornarem o que poderiam realmente ser, persuadindo-os de que eram aquilo que são. É dessa maneira que o preceptor francês educa o seu aluno, fazendo-o brilhar um momento, durante a infância, para, em seguida, não vir a ser jamais ninguém. O império russo desejará subjugar a Europa, e acabará por ser subjugado. Os tártaros, seus vassalos ou seus vizinhos, se tornarão seus senhores e nossos: esta revolução parece-me infalível. Todos os reis da Europa trabalham de comum acordo para acelerá-la.

IX – Continuação do capítulo precedente.

Assim como a Natureza estabeleceu limites à estatura de um homem bem conformado, além dos quais só produz gigantes ou anões, fez o mesmo no tocante à melhor constituição de um Estado, limitando-lhe a extensão, a fim de que não venha a ser nem muito grande para poder ser bem governado, nem muito pequeno para se poder manter por si mesmo. Em todo corpo político há um máximo de força que ele não poderia ultrapassar, e do qual com freqüência se afasta à medida que se expande. Quanto mais se estende o laço social, tanto mais afrouxa; e, em geral, um pequeno Estado é proporcionalmente mais forte que um grande.

Mil razões demonstram essa máxima. A administração, em primeiro lugar, torna-se mais penosa nas grandes distâncias, assim como um peso qualquer se torna mais pesado na ponta de uma alavanca maior. Torna-se mais onerosa à medida que os degraus se multiplicam; porque cada cidade tem, de início, a sua administração, que o povo paga; cada distrito a sua, paga ainda pelo povo; a seguir, cada província, depois os grandes governos, as satrapias, os vice-reinados, cuja administração se torna cada vez mais cara, à medida que se sobe, e sempre à custa do inditoso povo; vem, por fim, a administração suprema, que tudo esmaga: com tanta sobrecarga a exauri-los continuamente, os vassalos, longe de serem melhor governados por essas diferentes ordens, acabam por sê-lo pior que se tivessem um só desses governos a dirigi-los. Não obstante, apenas sobram recursos para os casos extraordinários; e quando se faz preciso a eles recorrer, é que se encontra o Estado às vésperas da ruína.

Isso não é tudo: não somente o governo possui menos vigor e rapidez para fazer observar as leis, impedir os vexames, corrigir os abusos, prevenir os empreendimentos sediciosos que possam ser promovidos nos pontos distantes, como também o povo demonstra menor afeição aos chefes, os quais nunca vê, à pátria, que a seus olhos se assemelha ao mundo, e aos concidadãos cuja maioria lhe é estranha. As mesmas leis não podem convir igualmente a tantas províncias diversas, com costumes diferentes, e climas opostos, e que não admitem a mesma forma de governo. Leis diferentes engendram perturbação e confusão no seio dos povos que, vivendo sob a direção dos mesmos chefes, em contínua comunicação, transitam de um lado para outro ou se casam entre si, e que, sujeitos a outros costumes, nunca sabem se o próprio patrimônio lhes pertence. Em meio à multidão de homens que se desconhecem mutuamente, reunidos pela sede da suprema administração num mesmo lugar, os talentos permanecem ocultos, as virtudes ignoradas e os vícios impunes. Os chefes, sobrecarregados de tarefas, nada vêem por si mesmos; comissários governam o Estado. Enfim, as medidas necessárias à manutenção da autoridade geral, a que tantos oficiais destacados em regiões longínquas desejam subtrair-se, quando não ludibriar, absorvem todos os cuidados públicos; e nada mais resta para a felicidade do povo, exceto o indispensável à sua defesa em caso de necessidade; e é assim que um corpo muito grande, por sua constituição, definha e perece, esmagado pelo próprio peso.

De outro lado, deve o Estado fornecer-se determinada base para contar com solidez, para resistir aos sacolejos que não deixará de experimentar e aos esforços que será obrigado a despender a fim de se manter; porque todos os povos possuem uma espécie de força centrífuga, pela qual atuam seguidamente uns sobre outros e tendem a engrandecer-se às expensas dos vizinhos, como os turbilhões de Descartes. Destarte, correm os fracos o risco de ser engolidos, e ninguém consegue conservar-se a não ser colocando-se em relação a todos numa espécie de equilíbrio que torna a compreensão em toda parte mais ou menos igual.

Vê-se por aí haver razões para alargar e razões para estreitar os limites do Estado, e não constitui o menor aspecto do talento do político, encontrar, entre umas e outras, a proporção mais vantajosa à conservação do Estado. Pode-se dizer em geral que as primeiras, sendo apenas exteriores e relativas, devem ser subordinadas às outras, que são internas e absolutas; uma sã e forte constituição é a primeira coisa a pesquisar, e, de preferência, deve-se contar com o vigor nascido de um bom governo que com os recursos fornecidos por um grande território.

Ademais, viram-se Estados assim constituídos, cuja necessidade de conquistas entrava nas próprias constituições, e que, a fim de se manterem, eram forçados a ampliar-se sem cessar. Talvez muito se felicitassem por essa feliz necessidade, que lhes mostrava, com o termo de sua grandeza, o inevitável momento de sua queda.

X – Continuação.

Pode-se mensurar um corpo político de duas maneiras, a saber: pela extensão do território, e pelo número da população; e entre uma e outra dessas medidas, há uma relação conveniente para dar ao Estado sua verdadeira grandeza. São os homens que fazem o Estado, e é o terreno que alimenta os homens; essa relação consiste, pois, em que a terra baste para a manutenção de seus habitantes e haja tantos habitantes quantos a terra possa nutrir. É nessa proposição que se acha o maximum de força de um número dado de povo; porque, se houver terreno em demasia, será oneroso protegê-lo, a cultura se mostrará insuficiente, o produto supérfluo; e será a causa próxima de guerras defensivas. Se não houver terreno suficiente, o Estado se achará, para o suprir, à discrição de seus vizinhos; e será a causa próxima de guerras ofensivas. Todo povo que, por sua posição, se acha na alternativa entre o comércio ou a guerra, é em si mesmo débil; depende de seus vizinhos, depende dos acontecimentos; jamais terá senão uma existência incerta e breve; subjuga e muda de situação, ou é subjugado e não será coisa alguma. Não poderá manter-se livre a não ser à força de sua pequenez ou de sua grandeza.

É impossível calcular uma relação fixa entre a extensão das terras e o número de homens que se bastem mutuamente, não só por causa das diferenças existentes nas qualidades do terreno, em seus graus de fertilidade, na natureza de suas produções, na influência dos climas, como pelas assinaladas nos temperamentos dos homens que as habitam, uns consumindo pouco num país fértil, e outros consumindo muito num solo ingrato. É preciso ainda levar em conta a maior ou menor fecundidade das mulheres, ao que pode ter o país de mais ou menos favorável à população, à quantidade com a qual pode o legislador esperar aí concorrer por seus estabelecimentos, de sorte que não deve ele fundar o julgamento sobre o que vê, mas sobre o que prevê, nem tanto se deter no estado atual da população, mas sim no que ela virá naturalmente a ser. Enfim, há mil ocasiões em que os acidentes particulares do lugar exigem ou permitem que se tome mais terreno que o que parece necessário. Assim, estender-nos-emos muito num país montanhoso onde as produções naturais, isto é, os bosques, as pastagens, demandam menos trabalho, onde a experiência ensina que as mulheres são mais fecundas que nas planícies, e onde um grande solo inclinado só permite uma pequena base horizontal, a única com que se pode contar para a vegetação. Então, ao contrário, podemo-nos restringir à orla do mar, ou mesmo aos rochedos e às areias quase estéreis, porque a pesca pode aí suprir em grande parte as produções da terra, e os homens devem permanecer mais juntos para repelir os piratas, e porque, de resto, temos maiores facilidades para desembaraçar o país, por meio das colônias, dos habitantes que o sobrecarregam.

Nessas condições, para instituir um povo, é preciso ajuntar uma outra que não pode suprir nenhuma outra, mas sem a qual todas se revelam inúteis: a de que se desfrute de paz e abundância; porque o tempo durante o qual se ordena um Estado é igual àquele em que se forma um batalhão, ao instante em que o corpo tem menos capacidade de resistência e, portanto, é mais fácil de ser destruído. Resistir-se-ia melhor em meio a uma desordem absoluta que num momento de fermentação, quando cada qual se ocupa de sua classe e não do perigo. Se uma guerra, uma crise de fome, uma sedição sobrevem em tempo de crise, o Estado é infalivelmente derrubado.

Não quer isto dizer não haja muitos governos estabelecidos durante essas tempestades, mas então são esses mesmos governos que destroem o Estado. Os usurpadores conduzem ou escolhem sempre esses tempos de perturbações para fazerem passar, graças ao espanto público, leis destruidoras que o povo não adotaria jamais em situação normal. A escolha do momento da instituição é um dos caracteres mais seguros pelos quais se pode distinguir a obra do legislador da obra do tirano.

E qual é o povo apto a receber a legislação? Aquele que, estando já ligado através de alguma união de origem, de interesse ou convenção, não foi ainda submetido ao verdadeiro jugo das leis; aquele que não possui nem costumes nem superstições bem arraigadas; aquele que não receia ser esmagado por uma invasão súbita, que, sem entrar nas querelas de seus vizinhos, tem condições de resistir sozinho a cada um deles ou obter a ajuda de um a fim de repelir o outro; aquele em que cada membro pode ser conhecido de todos, e em que não se faz necessário sobrecarregar um homem de um grande fardo que não possa carregar; aquele que pode dispensar os outros povos, e do qual nenhum outro povo deixa de necessitar (13); aquele que nem é rico, nem é pobre, e pode bastar-se a si mesmo; enfim, aquele que reúne a consistência de um povo antigo com a docilidade de um hodierno. O que torna penosa a obra da legislação não é tanto o que é preciso estabelecer, mas sim o que é preciso destruir; e o que torna o êxito tão raro é a impossibilidade de encontrar a simplicidade da Natureza junto às necessidades da sociedade. Todas essas condições, é verdade, dificilmente se encontram reunidas: eis por que se vêem poucos Estados bem constituídos.

Existe ainda na Europa um país digno de legislação: é a Ilha da Córsega. O valor e a constância com as quais esse valente povo tem sabido reconquistar e defender a liberdade bem mereceria que algum sábio lhe ensinasse a conservá-la. Tenho certo pressentimento de que um dia essa pequena ilha assombrará a Europa.

XI – Dos diversos sistemas de legislação.

Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda independência particular é outra tanta força subtraída ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela.

Já tive ocasião de dizer em que consiste a liberdade civil; a respeito da igualdade, não se deve entender por essa palavra que os graus de poder e riqueza sejam absolutamente os mesmos, mas que, quanto ao poder, esteja acima de toda violência e não se exerça jamais senão em virtude da classe e das leis; e, quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar um outro, e nem tão pobre para ser constrangido a vender-se (14): o que supõe, por parte dos grandes, moderação de bens e de crédito, e, do lado dos pequenos, moderação de avareza e ambição.

Essa igualdade, dizem, é uma quimera especulativa, que não pode existir na prática; contudo, se o abuso é inevitável, segue-se que se não deve ao menos regulamentá-lo? É precisamente porque a força das coisas tende sempre a destruir a igualdade que a força da legislação deve sempre tender a conservá-la.

Todavia. esses generosos objetivos de toda boa instituição devem ser modificados em cada país pelas relações nascidas tanto da situação local como do caráter dos habitantes; e é com base nessas relações que cumpre destinar a cada povo um sistema particular de instituição, que seja o melhor, não talvez em si mesmo, mas sim para o Estado ao qual é destinado. Por exemplo: é ingrato e estéril o solo, ou é o país excessivamente exíguo para os habitantes? Voltai-vos para a indústria e as artes, cujas produções trocareis pelos gêneros de que necessitais. Ocupais, ao contrário, ricas planícies e férteis encostas? Em um bom terreno, tendes carência de habitantes? Empregai na agricultura todos os vossos cuidados, que ela multiplica os homens, e afastai as artes, que acabarão por despovoar o país, agrupando em alguns pontos do território os poucos habitantes que possui (15). Ocupais extensas e cômodas praias? Cobri o mar de navios, cultivai o comércio e a navegação, e tereis uma existência curta e brilhante. Não banha o mar em vossas costas senão rochedos quase inacessíveis? Permanecei bárbaros e ictiófagos; vivereis assim mais tranqüilos, quiçá sereis melhores, e certamente mais felizes. Numa palavra, afora as máximas comuns a todos os povos, cada um deles encerra em si alguma causa que as ordena de maneira particular e faz com que sua legislação se torne exclusivamente sua. Foi assim que os hebreus outrora, e recentemente os árabes, tiveram como matéria principal a religião; os atenienses, as letras; Cartago e Tiro, o comércio; Rodes, a marinha; Esparta, a guerra; e Roma, a virtude. O autor de O Espírito das Leis demonstrou, em inúmeros exemplos, com que arte dirige o legislador a instituição para cada uma dessas matérias.

O que torna a constituição de um Estado verdadeiramente sólida e durável é o fato de as conveniências serem de tal modo observadas, que as relações naturais, bem como as leis, tombam sempre, harmoniosamente, sobre os mesmos pontos, e estas últimas assegurarem, acompanharem e retificarem as outras. Mas, se o legislador, enganando-se em sua matéria, toma um princípio diverso daquele que nasce da natureza das coisas, um que tenda para a servidão e outro para a liberdade, um para as riquezas e outro para o povoamento, um para a paz e outro para as conquistas, veremos as leis debilitarem-se insensivelmente, a constituição alterar-se, e o Estado não cessar de ser agitado, até ser destruído ou mudado, e a invencível Natureza retomar o seu império.

XII – Divisão das leis.

Para ordenar o todo, ou dar a melhor forma possível à coisa pública, há que considerar diversas relações. Primeiramente, a ação do corpo inteiro agindo sobre si mesmo, isto é, a relação do todo com o todo ou do soberano com o Estado; e essa relação é composta da dos termos intermediários, como o veremos mais adiante.

As leis que regulamentam essas relações são denominadas leis políticas; chamam-se também leis fundamentais, não sem alguma razão, no caso de serem feitas com sabedoria; porque se em cada Estado, não há senão uma maneira de o dirigir, o povo que a encontrou deve a ela ater-se; mas, no caso de ser má a ordem estabelecida, por que se há de tomar por fundamentais as leis que impedem de ser bom? De resto, em todo estado de causa, o povo é sempre senhor de mudar suas leis, mesmo as melhores, porque, se lhe aprouver prejudicar a si mesmo, quem terá o direito de impedi-lo?

A segunda relação é a dos membros entre si ou com o corpo inteiro, e essa relação deve ser, no primeiro caso, tão pequena, e, no segundo, tão grande quanto possível; de sorte que cada cidadão se sinta perfeitamente independente de todos os outros e numa excessiva dependência da cidade, o que sempre se faz através dos mesmos meios, uma vez que não há senão a força do Estado para promover a liberdade de seus membros. E desta segunda relação que nascem as leis civis.

Pode-se considerar uma terceira espécie de relação entre o homem e a lei: isto é, a da desobediência ao castigo, e esta dá lugar ao estabelecimento das leis criminais, que, no fundo, constituem menos uma espécie particular de leis que a sanção de todas as outras.

A essas três espécies de leis acrescenta-se uma quarta, a mais importante de todas, que não se grava nem no mármore nem no bronze, mas no coração do,- cidadãos; que adquire diariamente forças novas; que reanima ou substitui as outras leis quando envelhecem ou se extinguem, e retém o povo dentro do espírito de sua instituição, e substitui insensivelmente a força do hábito à da autoridade. Falo dos usos, dos costumes e, em especial, da opinião, parte desconhecida de nossos políticos, mas da qual depende o êxito de todas as outras; parte de que o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se a regulamentos particulares, que outra coisa não são senão o cimbre da abóbada, cujos costumes, mais lentos no nascer, compõem enfim a chave imutável.

Entre essas diversas classes, as leis políticas que constituem a forma do governo são as únicas que se relacionam com o meu assunto.

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