O Estado em Karl Marx e Engels

MARX, ENGELS, LENIN E O ESTADO

ORIGINAL: CARNOY, Martin. Estado e Teoria política. (equipe de trad. PUCCAMP) 2ª ed. Campinas: Papirus, 1988.

ESTE TEXTO: CARNOY, Martin. Estado e Teoria política. (equipe de trad. PUCCAMP) 2ª ed. Campinas: Papirus, 1988. CAPÍTULO 2 [pp. 63-87]

CAPÍTULO 2

Desde o final da década de cinquenta, o Estado se tornou um tema central da pesquisa marxista, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Não é difícil explicar por quê. Além dos argumentos apresentados na introdução a esse trabalho - o sempre crescente envolvimento social e econômico do governo nas economias modernas e industriais, incluindo as democracias capitalistas ocidentais, um envolvimento que permeia os serviços sociais, o emprego, os meios de comunicação e mesmo a própria produção – para os marxistas ocidentais, a segunda metade dos anos 50 marcou o fim do stalinismo e o início do fim da guerra fria. Esse degelo presenciou o começo de um período no qual os partidos comunistas ocidentais desabrocharam intelectualmente e puderam mostrar independência frente à União Soviética, enquanto uma aberta repressão antimarxista se afrouxava nos Estados Unidos. A diminuição desses dois controles sobre o pensamento marxista permitiu o florescimento da teoria marxista ocidental, numa época de crescente envolvimento do Estado e crescente participação eleitoral por parte dos partidos políticos de esquerda, uma participação política que tinha sido suprimida pela ascensão do fascismo e a Segunda Guerra Mundial.

Isso não quer dizer que essa participação fosse parte de uma “nova” política ou que o interesse marxista pelo Estado começasse no período do pós-guerra. Os social-democratas alemães, desde os anos de 1890, sob a liderança de Karl Kaustsky, atingiram níveis significativos de força eleitoral a ponto de pensarem que poderiam assumir o poder do Estado por meios eleitorais. Na verdade, Engels esteve inclinado a conferir aos socialdemocratas uma posição “especial” no bojo da teoria revolucionária:

Podemos contar hoje com 2 milhões e 250 mil eleitores. Se as coisas continuarem dessa maneira, até o fim do século, vamos conquistar a maior parte dos estratos sociais médios, da pequena burguesia e dos pequenos camponeses e nos tornar a força decisiva no país, perante a qual todos os demais terão de se curvar, quer gostem quer não. (Engels, 1895, em Tuker, 1978, 571)

No entanto, com o sucesso da Revolução Russa, foi a teoria leninista do Estado e da revolução que acabou por dominar o pensamento marxista, e as interpretações leninistas da teoria política de Marx (exceto pela notável exceção de Antonio Gramsci) permaneceram amplamente inquestionadas ou, quando questionadas, reprimidas, até o início dos anos 60.

Portanto, a base teórica das primeiras estratégias socialdemocráticas alemãs, estratégias essas talvez muito mais relevantes para os partidos de esquerda nas economias industriais avançadas, nunca foi desenvolvida, embora se manifestasse às vezes no cenário político da Europa ocidental (na Frente Popular da França, por exemplo). Mesmo o trabalho de Gramsci foi suprimido pela combinação de fascismo e stalinismo de tal forma que, embora o próprio Gramsci fosse canonizado pelo Partido Comunista Italiano (PCI), no período do pós-guerra, seus escritos foram manipulados ou esquecidos. Vinte e cinco anos após o fim da guerra, o PCI não tinha feito uma edição crítica séria de sua obra (Anderson, 1976, 40).

É importante reforçar que o caráter único da revolução russa (a primeira vitória comunista) conferiu um lugar de destaque a Lenin e a Stalin, no pensamento marxista, a ponto de excluir o trabalho teórico (e prático) que o desviou da linha russa. Apesar das trágicas consequências que isso teve para os partidos comunistas e socialistas do Ocidente, nas décadas de vinte e trinta, foi somente a partir do fim dos anos 50 que essa influência começou a diminuir. Como consequência, muitas das questões políticas mais sérias, de um ponto de vista marxista, não foram discutidas até as décadas de 60 e 70: Por que a classe operária permanece "não revolucionária" em face à crise econômica? Quais são as características específicas do Estado burguês adiantado? Por que e como o Estado desenvolve essas características? Que estratégias são adequadas para uma transformação radical? Por que os Estados comunistas se desenvolveram da forma como o fizeram? O que isso significa para o papel do Estado na transição para o socialismo? Em que o Estado capitalista difere na periferia do sistema mundial?

Nas duas últimas décadas, essas questões centralizaram o debate e o restante desse estudo trata de seu desenvolvimento na Europa, nos Estados Unidos e no Terceiro Mundo. Todavia embora defendamos que os pontos de vista de Marx, Engels, e especialmente de Lenin sobre a política e o Estado sejam incompletos, o fato é que as recentes teorias marxistas têm suas raízes nesses primeiros trabalhos. E, pois, importante voltar a eles para compreender tanto os fundamentos da concepção marxista de Estado (os quais permanecem, de uma forma ou de outra) na pesquisa atual como o desacordo entre os analistas marxistas contemporâneos.

Uma vez que Marx não desenvolveu uma única e coerente teoria da política e ou do Estado, as concepções marxistas do Estado devem ser deduzidas das críticas de Marx a Hegel, do desenvolvimento da teoria de Marx sobre a sociedade (incluindo sua teoria da economia política) e de suas análises de conjunturas históricas específicas, tais como: a revolução de 1848, na França, e a ditadura de Luís Napoleão, ou a Comuna de Paris de 1871. Além disso, temos a obra mais recente de Engels ([1884] 1968) e O Estado e a Revolução, de Lenin ([1917] 1965). A variedade de interpretações possíveis, baseada nessas fontes diferentes, levou a um debate considerável, indo de uma posição que defende a visão leninista àquelas que veem uma teoria do Estado claramente refletida na análise política e econômica de Marx, ou tomam o Estado autônomo do Dezoito Brumário (de Luís Napoleão) como a base para a análise da situação atual. Apesar dessas diferenças, porém, todos os teóricos marxistas, de um modo ou de outro, baseiam suas "teorias" do Estado em alguns dos "fundamentos" marxistas e são esses fundamentos analíticos que formam o quadro do debate. Quais são eles e por que estão sujeitos a tantas interpretações diferentes?

Em primeiro lugar, Marx considerava as condições materiais de uma sociedade como a base de sua estrutura social e da consciência humana. A forma do Estado, portanto, emerge das relações de produção, não do desenvolvimento geral da mente humana ou do conjunto das vontades humanas. Na concepção de Marx, é impossível separar a interação humana em uma parte da sociedade da interação em outra: a consciência humana que guia e até mesmo determina essas relações individuais é o produto das condições materiais - o modo pelo qual as coisas são produzidas, distribuídas e consumidas.

As relações jurídicas assim como as formas do Estado não podem ser tomadas por si mesmas nem do chamado desenvolvimento geral da mente humana, mas têm suas raízes nas condições materiais de vida, em sua totalidade, relações estas que Hegel... combinava sob o nome de "sociedade civil". Cheguei também a conclusão de que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política; o. Na produção social de sua vida, os homens entram em relações determinadas, necessárias, e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a' qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, de forma geral, o processo de vida social, político e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina sua forma de ser mas, ao contrário, é sua forma de ser social que determina sua consciência.(ver Marx-Engels, Atica, 1983, 232-33)

Essa formulação do Estado contradizia diretamente a concepção de Hegel do Estado "racional", um Estado ideal que envolve uma relação justa e ética de harmonia entre os elementos da sociedade. Para Hegel, o Estado é eterno, não histórico; transcende à sociedade como uma coletividade idealizada. Assim, é mais do que as instituições simplesmente políticas. Marx, ao contrário, colocou o Estado em seu contexto histórico e o submeteu a uma concepção materialista da história. Não é o Estado que molda a sociedade mas a sociedade que molda o Estado. A sociedade, por sua vez, se molda pelo modo dominante de produção e das relações de produção inerentes a esse modo.

Em segundo lugar, Marx (novamente em oposição a Hegel) defendia que o Estado, emergindo das relações de produção, não representa o bem-comum, mas é a expressão política da estrutura de classe inerente à produção. Hegel (e, como vimos, Hobbes, Locke, Rousseau e Smith) tinha uma visão do Estado como responsável pela representação da "coletividade social", acima dos interesses particulares e das classes, assegurando que a competição entre os indivíduos e os grupos permanecessem em ordem, enquanto os interesses coletivos do "todo" social seriam preservados nas ações do próprio Estado. Marx veio a rejeitar essa visão do Estado como o curador da sociedade como um todo. Uma vez que ele chegou a sua formulação da sociedade capitalista como Uma sociedade de classes, dominada pela burguesia, seguiu-se necessariamente a sua visão de que o Estado é a expressão política dessa dominação.

Na verdade, O Estado é um instrumento essencial de dominação de classes na sociedade capitalista. Ele não está acima dos conflitos de classes mas profundamente envolvido neles.

Sua intervenção no conflito é vital e se condiciona ao caráter essencial do Estado como meio da dominação de classe[1].

Pode haver ocasiões e assuntos onde os interesses de todas as classes possam coincidir. Mas na maior parte das vezes e em essência, esses interesses estão fundamental e irrevogavelmente em divergência, de modo que o Estado não pode ser seu curador comum; a idéia de que tal possa acontecer faz parte do véu ideológico que uma classe dominante lança sobre a realidade da dominação de classe, a fim de legitimar essa dominação aos próprios olhos e também perante as classes subordinadas. (Miliband, 1977, 66)

Assim, porque a burguesia (a classe capitalista) tem um controle especial sobre o trabalho no processo de produção capitalista, essa classe dominante estende seu poder ao Estado e a outras instituições.

1. O conceito do Estado como uma burocracia com "vida própria", agindo nos seus próprios interesses e mantendo o controle sobre todas as classes a fim de manter a sociedade unida, reaparece nos escritos de Claus Offe, dessa vez no contexto da social-democracia alemã do segundo pós-guerra (ver a análise de Offe no capítulo 5).

Marx expressou, pela primeira vez, essa formulação completa, na Ideologia Alemã (1964), escrita com Engels em 1845 - 1846. Antes de tratar disso em detalhe, vale a pena notar que, em sua obra anterior, ainda influenciada por Hegel e pelas reais condições alemãs no início de 1840, Marx definiu o Estado como comunitário, representante dos interesses comuns (concordando com Hegel) mas, uma vez que somente um Estado democrático poderia corporificar o interesse comum, o Estado Prussiano não era Estado, de modo algum (Draper, 1977, 170). Além disso, ele via a época burguesa como aquela na qual a sociedade civil estava separada da sociedade política - o Estado separado do poder social. Assim, rejeita a noção de Hegel de que a burocracia de Estado é o elemento "universal" na sociedade, representando os Interesses comuns. Ao contrário, o Estado não é algum ideal - é o povo; a burocracia é um elemento particular que identifica seus próprios interesses particulares com os do Estado e vice-versa (Draper, 1977,81). Para o jovem Marx, o Estado tinha vida própria, separada da sociedade civil, com seus próprios interesses particulares. Considerando as condições na Alemanha da época, não é estranho que Marx visse o Estado desse modo: havia uma separação entre o Estado, de um lado, e uma ascendente sociedade civil da burguesia, de outro. O Estado não era um instrumento da burguesia. Na Prússia absolutista, o Estado ainda estava nas mãos de uma classe governante pré-capitalista, com valores sociais muito diferentes daqueles da burguesia ascendente. "Esse Estado prussiano foi, na verdade forçado a exercer controle sobre a própria aristocracia, não era mais o simples Estado feudal mas o Beamtenstaat da monarquia absoluta - o Estado dos funcionários que tinham de manter o controle de todas as classes a fim de evitar, que os crescentes antagonismos levassem a uma ruptura da sociedade". (Draper, 1977, 169)

O próprio Marx não abandonou completamente esse conceito na Ideologia Alemã. No entanto, sob a influência de Engels e das próprias visitas de Marx a Paris, a visão da dinâmica social fundamentada na luta de classes é introduzida em uma teoria do Estado como uma instituição com vínculo de classe. De acordo com Marx e Engels, o Estado surge da contradição entre o interesse de um indivíduo (ou família) e o interesse comum de todos os indivíduos. A comunidade se transforma em Estado, aparentemente divorciado do indivíduo e da comunidade mas, na realidade, baseado em relações com grupos particulares – sob o capitalismo, com as classes determinadas pela divisão do trabalho. Todas as lutas no seio do Estado são "meramente as formas ilusórias sob as quais as lutas reais das diferentes classes se travam entre si" (Marx e Engels 1964, 45). O moderno Estado capitalista é dominado pela burguesia. "Através da emancipação da propriedade privada diante da comunidade o Estado se torna uma entidade separada ao lado e de fora da sociedade civil, mas não é nada mais do que a forma de organização que a burguesia necessariamente adota para fins internos e externos, para a garantia mútua de sua propriedade e interesses". (Marx e Engels 1964, 78) Não se deve, porém, deduzir daí que o Estado seja um complô de classe.

Em vez disso, ele evolui no sentido de mediar as contradições entre os indivíduos e a comunidade e, uma vez que a comunidade é. dominada pela burguesia, assim o é a mediação pelo Estado. "Portanto, o Estado não existe devido à vontade dominante mas o Estado que surge das condições materiais de existência dos indivíduos também tem a forma de uma vontade dominante". (Marx e Engels, 1964, 358)

Todavia, não fica claro até que ponto e de que forma o Estado age nos interesses da burguesia "em seu conjunto como um todo", enquanto que, ao mesmo tempo, é capaz de utilizar seus poderes sobre a propriedade privada na busca desses interesses. O Estado parece ter poder mas esse poder reflete as relações na produção, na sociedade civil. O Estado é a expressão política da classe dominante' sem ser originário de um complô de classe. Uma instituição socialmente necessária, exigida para cuidar de certas tarefas sociais necessárias para a sobrevivência da comunidade, torna-se uma instituição de classe.

Mais tarde, na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado ([1884], 1968), Engels desenvolveu o conceito fundamental (seu e de Marx) da relação entre as condições materiais da sociedade, sua estrutura social e o Estado. Aí, ele defendeu que o Estado tem suas origens na necessidade de controlar os conflitos sociais entre os diferentes interesses econômicos e que esse controle é realizado pela classe economicamente mais poderosa na sociedade. O Estado capitalista é uma resposta à necessidade de mediar o conflito de classes e manter a “ordem”, uma ordem que reproduz o domínio econômico da burguesia.

O Estado não é, pois, de forma alguma, um poder imposto à sociedade de fora para dentro; tampouco é lia realização da idéia moral" ou lia imagem e realidade da razão", como afirma Hegel. E antes, um produto da sociedade num determinado estágio de desenvolvimento; é a revelação de que essa sociedade se envolveu numa irremediável contradição consigo mesma e que está dividida em antagonismos irreconciliáveis que não consegue exorcizar. No entanto, a fim de que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos conflitantes não se consumam e não afundem a sociedade numa luta infrutífera, um poder, aparentemente acima da sociedade, tem-se tornado necessário para moderar o conflito e mantê-lo dentro dos limites da "ordem". Este poder, surgido da sociedade, mas colocado acima dela e cada vez mais se alienando dela, é o Estado...

Na medida em que o Estado surgiu da necessidade de conter os antagonismos de classe, mas também apareceu no interior dos conflitos entre elas, torna-se geralmente um Estado em que predomina a classe mais poderosa, a classe econômica dominante, a classe que, por seu intermédio, também se converte na classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. O Estado antigo era acima de tudo, o Estado dos proprietários de escravos para manter subjugados a estes, como o Estado feudal era o órgão da nobreza para dominar os camponeses e os servos, e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. (Engels, 1981, 195-96)

O terceiro ponto fundamental na teoria do Estado de Marx é que, na sociedade burguesa, o Estado representa o braço repressivo da burguesia. A ascensão do Estado como força repressiva para manter sob controle os antagonismos de classe não apenas descreve à natureza de classe do Estado, mas também sua função repressiva, a qual, no capitalismo, serve à classe dominante, à burguesia. Há aqui, duas questões: a primeira se refere a uma função primária da comunidade – imposição das leis – inerente a toda sociedade, e a segunda se refere à ascensão do Estado e à repressão inerente a essa ascensão. De acordo com Marx e Engels, o Estado aparece como parte da divisão de trabalho, isto é, como parte do aparecimento das diferenças entre os grupos na sociedade e da falta de consenso social.

O Estado surge, então na medida em que as instituições, necessárias para realizarem as funções comuns da sociedade, exigem, para preservar sua manutenção, a separação do poder de coerção em relação ao corpo geral da sociedade. (Draper, 1977, 250) O segundo traço característico é a instituição de uma força pública a qual não é mais imediatamente idêntica a própria organização do povo em armas. Essa força pública especial é necessária porque uma organização armada espontânea de toda a população se tornou impossível, desde sua divisão em classes... Essa força pública existe em todo Estado; consiste não somente de homens armados, mas também de instituições coercitivas de todo o gênero. (Engels, 1981, 195-96)

Assim, a repressão é parte do Estado - por definição histórica, a separação do poder em relação à comunidade possibilita a um grupo na sociedade usar o poder do Estado contra outros grupos; Se isso não fosse verdade, por que é necessário separar a execução da própria comunidade?

A maioria dos analistas do Estado, incluindo os teóricos do "bem-comum" que já discutimos, aceitam esse conceito. É a noção do Estado como o aparelho repressivo da burguesia que é a característica tipicamente marxista do Estado. Na medida em que avançarmos até as contribuições de Lenin a essa análise, veremos que ele percebeu que era essa a função primordial do Estado burguês: a legitimação do poder, da repressão, para reforçar a reprodução da estrutura e das relações de classes. Mesmo o sistema jurídico é um instrumento de repressão e controle, na medida em que estabelece as regras de comportamento e as reforça para se ajustarem aos 'valores e normas burguesas.

O grau em que o Estado, na sociedade capitalista, é um agente da burguesia dominante não fica muito claro na obra de Marx. Por um lado, temos a colocação, no Manifesto Comunista ([1848] 1955), de que "desde o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, a burguesia finalmente conquistou para si mesma, no moderno Estado representativo, o exclusivo poder político. O executivo do Estado moderno não é mais do que um comitê para gerenciar os negócios comuns de toda a burguesia". (Marx e Engels, 1955, 11-12) Por outro lado, Marx (e Engels) defende consistentemente a expansão da democracia como forma de refrear o poder do executivo; "a minimização do poder do executivo, da burocracia do Estado maximização do peso do sistema representativo na estrutura governamental. E não somente no período de revolução". (Draper, 1977, 297)

Marx e Engels viam duas faces na questão da democracia, coerentemente com seu conceito da natureza de classe do Estado, mas a ambiguidade está justamente na duplicidade desta questão. Como observa Draper, as duas faces correspondem às duas classes que lutam no interior do quadro político de classes. Uma delas consiste na "utilização" pela classe dominante das formas democráticas (eleições, parlamento) como meio para oferecer a ilusão de participação das massas no Estado, enquanto que o poder econômico da classe dominante garante a reprodução das relações entre o capital e o trabalho na produção. Na outra face, está a luta para dar às formas democráticas um novo conteúdo social ou de massas, impelindo-as aos extremos democráticos de controle popular a partir da base, incluindo a extensão nas formas democráticas da esfera política para toda a sociedade. (Draper, 1977, 310)

Se é possível, porém, ampliar a democracia numa sociedade capitalista, através da luta de classes, as formas democráticas são tanto um instrumento quanto um perigo para a burguesia. Embora possam ser usadas para criar ilusões, podem também se tornar o meio pelo qual as massas venham a deter o poder. Marx e Engels sugeriram a noção do Estado democrático e popular, ainda que o Estado burguês fosse antipopular. Colocado de outro modo, o caráter de classe da sociedade, para Marx e Engels, permeia cada um de seus aspectos, incluindo as formas democráticas. Do mesmo modo, as necessidades sociais não podem ser satisfeitas sem passar pelas instituições políticas de uma sociedade condicionada pelas classes. O Estado age no interesse da classe dominante, subordinando todos os outros interesses aos dessa classe. Não são, porém, as formas que necessariamente têm caráter de classe, mas o antagonismo de classe, inerente à sociedade, que anima as formas. De acordo com a natureza da luta de classes, aquelas mesmas formas podem ser uma ameaça ao domínio da burguesia.

Miliband (1977) coloca o problema em termos da noção marxista de "classe dominante"... Nessa noção, a "classe dominante" aparece como o grupo que possui e controla uma parte predominante dos meios de produção material e espiritual. Devido a essa propriedade, assume-se que a classe dominante controla o Estado. No entanto, como salienta Miliband, essa atitude leva à tradução automática do poder de classe em poder de Estado. Na realidade, não há tal tradução automática e, mesmo onde se pode mostrar que essa relação é estreita, permanecem as perguntas sobre a forma do Estado e por que assume forma diferente.

Desde que não fica claro, em Marx, até que ponto o Estado é um agente da burguesia dominante, os marxistas têm oferecido várias respostas diferentes para explicar porque o Estado deveria ser considerado como um instrumento da classe dominante. (ver Miliband, 1977, 68-74).

Em primeiro lugar, os membros do sistema de Estado - as pessoas que estão nos mais altos postos dos ramos executivo, legislativo, judiciário e repressivo – tendem a pertencer à mesma classe ou classes que dominam a sociedade civil. Mesmo quando são membros que não estão diretamente ligados pela origem social à classe burguesa dominante, são recrutados por sua educação e suas relações e passam a se comportar como se pertencessem a essa classe por nascimento. Embora se pudesse apresentar uma forte argumentação em favor desta correlação de classes (por exemplo, ver Donhoff 1967, 1979), os trabalhos iniciais de Marx, que analisam o Estado alemão dos anos de 1840, mostram claramente que era a aristocracia alemã, não a burguesia, que controlava o Estado. A Inglaterra, nessa época, também representou um caso onde a aristocracia dominava o Estado, enquanto a burguesia dominava a sociedade civil e moldava o desenvolvimento econômico e social.

Finalmente, de acordo com Miliband, os governos da maior parte dos países europeus induziram um grande número de líderes das "classes mais baixas" e, mesmo esses governos, comandados por representantes da classe dominante, têm frequentemente lançado mão de medidas não aprovadas pela burguesia governante, especialmente nos períodos de crise econômica e social. Assim, na medida em que a classe governante não é monolítica, não pode simplesmente usar o Estado como seu instrumento, mesmo onde o pessoal do Estado provém da "classe dominante".

Em segundo lugar, a classe capitalista domina o Estado através de seu poder econômico global. Através de seu controle dos meios de produção, a classe dominante é capaz de influenciar as medidas estatais de uma maneira que nenhum outro grupo, na sociedade capitalista, pode desenvolver, quer financeira quer politicamente. O instrumento econômico mais poderoso nas mãos da classe dominante é a "greve de investimento", onde os capitalistas subjugam a economia (e, consequentemente, o Estado), segurando o capital. No entanto, Miliband defende que a pressão que os empresários podem aplicar sobre o Estado não é, em si mesma, suficiente para explicar as ações e políticas desse último: às vezes essa pressão é decisiva e às vezes não o é.

Em terceiro lugar, o Estado é um instrumento da classe dominante porque, dada a sua inserção no modo capitalista de produção, não pode ser diferente. A natureza do Estado é determinada pela natureza e pelas exigências do modo de produção (este, como mostramos abaixo, é o principal argumento de Marx para a análise do período de Luís Napoleão, na França). Existem "constrangimentos estruturais" que nenhum governo, na sociedade capitalista, pode ignorar ou evitar. A debilidade do raciocínio estruturalista, de acordo com Miliband, é que tende para um determinismo ("hiperestruturalismo") que transforma os membros do Estado em instrumentos diretos das forças objetivas da dominação de classe, em vez de portadores das ordens da classe governante, mas ainda assim lhes nega qualquer liberdade de ação. Embora o Estado possa agir, em termos marxistas, a favor da classe dominante, não age, como argumenta Miliband, a seu comando. O Estado é um Estado de classe mas deve ter um alto grau de autonomia e independência se vai agir como um Estado de classe. A noção do Estado como instrumento da classe dominante não se adapta a esse requisito de autonomia e independência relativas tanto em relação à classe dominante como em relação à sociedade civil.

Isso nos leva à análise de Marx sobre a autonomia do Estado. Já mencionamos que, nos primeiros escritos de Marx, ele propunha uma concepção do Estado com vida própria, separado da sociedade civil, com uma burocracia que não agia no interesse da sociedade (Hegel) mas nos interesses privados do próprio Estado. De acordo com Draper, essa conceituação abre caminho à abordagem posterior do caráter de classe do Estado: "Marx e Engels não entendiam o Estado como sendo meramente uma extensão da classe governante, seu instrumento, fantoche ou reflexo, em algum sentido simplista, passivo... Em vez disso, o Estado surge e expressa uma real necessidade global de organização da sociedade - uma necessidade que existe, não importando qual seja a estrutura de classe específica. No entanto, enquanto houver uma classe dominante nas relações sócio-econômicas, ela vai utilizar essa necessidade para moldar e controlar o Estado dentro de suas próprias linhas de classe". (Draper, 1977, 319) A formulação admite que o Estado, mesmo em "tempos normais", tem uma certa parcela de autonomia.

Em "tempos excepcionais", as possibilidades de autonomia podem aumentar: em sua análise do império de Luís Bonaparte (18521870), Marx volta à sua conceituação original, argumentando que há exemplos históricos, quando nenhuma classe tem poder suficiente para governar através do Estado. Nesses exemplos é o próprio Estado (executivo) que domina. Que fatores permitem que isso aconteça? Marx escreveu que a burguesia; nesse exemplo, "confessa que seus próprios interesses ditam que ela deve ser livrada do perigo de seu próprio domínio; que, a fim de restituir a tranqüilidade ao país, seu parlamento burguês deve, em primeiro lugar, ser extinto; que, a fim de preservar intacto seu poder social, seu poder político deve ser' quebrado" (Marx e Engels, 1979, 143). Engels, por sua vez, enfatizou que Bonaparte somente foi capaz de tomar o poder depois que todas as classes sociais mostraram sua incapacidade de dominar e se esgotaram no processo de tentar fazê-lo. Ao pedir votos à classe mais numerosa, a dos camponeses, e ao usar o poder militar (os filhos dos camponeses), ele ganhou o controle inquestionado do Estado e foi capaz de prosseguir nos seus projetos (Draper, 1977, 406). Ele jogou as diferentes classes umas contra as outras e nenhuma delas tinha forças para reconquistar o poder.

Não obstante, o Estado bonapartista tinha que modernizar a economia a fim de alcançar seu próprio engrandecimento, a capacidade econômica necessária para a realização das aspirações imperiais e militares. Bonaparte não mudou as relações de produção; ainda que a burguesia não controlasse o Estado, Bonaparte serviu a seus interesses econômicos - eles acumularam grandes somas de capital, durante seu governo. Esse arranjo, porém, continha as sementes de importantes contradições; a burguesia, na França, cada vez mais abastada, logo começou a sentir os grilhões do Estado autônomo e a se movimentar para reconquistar o controle do aparelho do Estado. Ao mesmo tempo, o proletariado urbano também se expandiu e se fortaleceu. Finalmente, o imperador se comprometeu com a burguesia e o fim de seu regime se caracterizou pela mais importante revolta trabalhadora do século, a Comuna de Paris.

Para Marx e Engels, o Estado bonapartista surgiu num período excepcional e se constituiu numa exceção à forma "normal" do Estado burguês. Tais períodos são caracterizados pelo equilíbrio das classes em luta, de tal forma que o poder de Estado, como mediador entre elas, adquire uma certa autonomia frente a elas. Mesmo nesse caso, entretanto, o Estado serve aos interesses da classe capitalista, desde que, embora use aquela capacidade acumulativa de classe para seus próprios propósitos, não altera as relações de produção, deixando assim o controle básico sobre a economia em mãos burguesas. Isso também significa que um Estado autônomo desse tipo deva durar pouco tempo, na medida em que a burguesia e o proletariado recuperarem a força para lutar mesmo em circunstâncias econômicas favoráveis (isto é, uma política de desenvolvimento bem sucedida).

Portanto, há, para Marx e Engels, dois níveis da autonomia do Estado. No primeiro - a condição "normal" - a burocracia do Estado tem alguma autonomia frente à burguesia devido a aversão inerente da burguesia em atuar diretamente no aparelho do Estado e devido aos conflitos entre os capitais individuais (exigindo uma burocracia independente que pode atuar, como executora, para toda a classe capitalista). Assim, nas condições normais do Estado burguês, a burguesia atribui a tarefa de gerenciar os negócios políticos da sociedade a uma burocracia (que não é a burguesia ou os capitais individuais), mas esta burocracia - em contraposição às primeiras formações sociais - está subordinada à sociedade e à produção. burguesas. Embora a burocracia, enquanto conjunto de burocratas individuais, seja autônoma frente à burguesia, está, como instituição, reduzida cada vez mais ao estado de um estrato social que atua como o agente da classe dominante.

No entanto, essa burocracia degradada ainda luta pelo poder, de acordo com Marx (Draper, 1977, 496). Atinge-se o segundo nível de autonomia quando a luta de classes é "congelada" pela incapacidade de qualquer classe em demonstrar seu poder sobre o Estado. Essa situação histórica "excepcional" permite que a burocracia ganhe autonomia frente ao controle de classes. Não é dominada por nenhuma classe dominante da sociedade civil. Mas, mesmo neste caso, o poder do Estado depende das condições políticas numa sociedade de classes.

Esse poder baseia-se no apoio dos camponeses, na tolerância de setores da burguesia, e acima, de tudo, no precário equilíbrio do antagonismo burguês-proletário, na congelada luta de classes. Esse Estado altamente autonomizado não é o "instrumento" de nenhuma das classes proprietárias que lutam pelo poder político, mas é ainda o resultante da sociedade de classes considerada como um todo, em sua constelação vigente de poderes que se compensam... mesmo nessa 'Situação excepcional, a concepção de classe do Estado é tão central como sempre foi. (Draper, 1977, 499)

Nesse modelo de Estado autônomo, o Estado não é o instrumento da burguesia, mas tem suas ações determinadas pelas condições da luta de classe e pela estrutura de uma sociedade de classes. O Estado bonapartista não se colocou contra as forças sócio-econômicas dominantes da sociedade civil; ao contrário, teve que ser aceito por elas, ou por algum bloco delas, para se manter no poder. Na verdade, se o Estado autônomo não muda a configuração do poder econômico, ele depende da burguesia dominante para a acumulação de capital, conseqüentemente para os impostos públicos e para a própria elevação do Estado e a expansão militar, essa versão do Estado autônomo que está presente na obra de Gramsci, e aparece como base das teorias do Estado de Poulantzas e Offe. Trataremos disso nos capítulos seguintes.

Contudo, há ainda outra interpretação da teoria do Estado de Marx, essa resultante da sua análise político-econômica em O Capital. Joachim Hirsch (1978) argumenta que a teoria do Estado burguês deve ser desenvolvida a partir da análise da estrutura básica da sociedade capitalista em sua totalidade, e que, ao fazer isso, é necessário, antes de tudo, definir o Estado burguês como a "expressão de uma forma histórica específica de dominação de classe, e não simplesmente, como o portador de funções sociais particulares". (Hirsch, 1978,63) O Estado, defende Hirsch, é um aparelho afastado do processo de valorização competitiva dos capitais individuais, capaz de criar para esses capitais a infra-estrutura que eles não podem estabelecer por iniciativa própria, devido aos seus limitados interesses de lucro. Hirsch prossegue reinvindicando que o processo de acumulação de capital e a mudança na base tecnológica de produção aí incorporada, dá origem continuamente a barreiras materiais à obtenção do lucro. Essas manifestam-se através da crise e a própria crise torna-se um veículo necessário para o implemento real das intervenções do Estado para salvaguardar a produção.

Dessa forma, para Hirsch, a teoria do Estado de Marx deve provir das leis econômicas do desenvolvimento capitalista, descrito e analisado em O Capital, particularmente a lei da taxa decrescente do lucro. A forma do Estado capitalista emerge da necessidade de sua intervenção para compensar essa redução, e assim, restabelecer a acumulação de capital. O Estado, portanto, atua como uma função das barreiras materiais à obtenção do lucro pelos capitais individuais, ou, em outras palavras, à extração do excedente dos trabalhadores. É essa extração do excedente e não a luta de classes, a variável fundamental na compreensão da forma do Estado. "A concretização lógica, e ao mesmo tempo, a concretização histórica dos movimentos do capital, e o modo pelo qual eles moldam as lutas e a competição das classes devem ser, portanto, o ponto de partida para qualquer investigação dos processos políticos, para não recair na falácia do determinismo econômico mecânico ou em generalizações abstratas", (Hirsh, 1978, 81)

Examinaremos esse ponto de vista, detalhadamente, no Capítulo 6; assim como todo o debate alemão sobre o Estado, mas, por enquanto, simplesmente mencionamos esse ponto de vista de que a teoria política de Marx deve "derivar" de sua teoria da economia política; a relação lógica entre a investigação do capital em geral, que Marx desenvolveu em suas teorias econômicas, e, a investigação da política, as ações conscientes dos sujeitos sociais, pode ser encontrada na análise da lei da tendência de queda do lucro, Como veremos, essa derivação é precisamente o que Hirsch tenta propor.

Muito resumidamente, esses são os fundamentos da concepção marxista do Estado burguês. Como mostramos, a relação entre a "classe dominante" e o Estado, para Marx, depende da noção de autonomia do Estado e a autonomia é uma questão muito indefinida. Conceitos diferentes de autonomia são encontrados em diferentes trabalhos de Marx e Engels. Historicamente, a autonomia e o desenvolvimento da luta de classes estão interligados e podemos argumentar que, embora o Estado seja definido como relativamente autônomo da sociedade civil, essa "relatividade" é uma função da força relativa do proletariado, na luta de classes. Todavia, Marx e em particular Engels consideravam definitivamente a essência do Estado burguês normal, como determinada pelas condições materiais e suas relações sociais afins; o Estado representa os interesses de uma classe específica, mesmo quando ele se posiciona acima dos antagonismos de classe; e o principal meio de expressão do Estado é o poder coercitivo institucionalizado[2].

2. Engels também discutiu a característica do Estado, que os teóricos marxistas (e nãomarxistas) têm tratado com os títulos de "nação" e "nacionalismo", Nós discutiremos essa questão mais tarde, embora não de uma maneira central, já que ela constitui somente uma (embora importante) base do poder do Estado.

Foi baseado nisso que Lenin desenvolveu uma análise muito mais detalhada do Estado burguês, em termos do seu papel no processo revolucionário. Para Lenin, assim como para Marx e Engels, o interesse no Estado centrava-se na estratégia revolucionária, numa teoria de transformação do capitalismo para o comunismo. Embora essa não seja essencialmente diferente das teorias do "bem-comum", pelo menos uma delas, como vimos, também provém, de um interesse pela mudança social, os teóricos marxistas atribuem importância primordial à discussão da natureza do Estado capitalista, em termos da estratégia para a transformação social. Nesse sentido, a teoria política marxista é indubitavelmente uma teoria da ação.

As perspectivas de Lenin sobre o Estado, em 1917, foram desenvolvidas no contexto específico da Revolução Russa, para apoiar uma estratégia particular de ação política naquele momento da revolução (agosto de 1917). Grande parte de O Estado e a Revolução foi também uma resposta ao que Lenin considerava a traição dos socialdemocratas alemães (liderados por Karl Kautsky), ao dar apoio à entrada da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, votando a favor dos créditos de guerra. A estratégia de Lenin fundava-se na derrubada do aparelho existente do Estado pelos bolcheviques, com a tomada material do Estado e seu desmantelamento. Nesse ponto, ele não estava somente em conflito com outros membros dos sovietes, mas com figuras de seu próprio partido (Chamberlin 1965, 291-295).

O fundamental para Lenin era que o Estado é um órgão de dominação de classe e que, embora o Estado tente conciliar o conflito der classes (nas palavras de Engels [1968, 155], "um poder aparentemente colocado acima da sociedade tornou-se necessário para o objetivo de moderar o conflito"), esse conflito é irreconciliável. Embora a democracia burguesa pareça permitir a participação e, até mesmo, o controle das instituições políticas (e econômicas) pela classe trabalhadora (se ela opta por exercer esse poder político) e, portanto, pareça produzir um aparelho de Estado com o resultado da reconciliação de classes, Lenin defende que "de acordo com Marx, o Estado não poderia nem surgir nem manter-se, se fosse possível reconciliar as classes... Segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra; é a criação da 'ordem' que legaliza e perpetua essa opressão, ao moderar o conflito entre as classes". (Lenin, 1965, 8) Na interpretação leninista de Marx, a necessidade de um Estado, uma vez que ele é o aparelho repressivo de uma classe dominante, só existe porque está presente um conflito de classes. Sem esse conflito, não há necessidade de Estado. O reverso dessa interpretação parece óbvio: "Se o Estado é o produto da irreconciliabilidade dos antagonismos de classe, se ele é um poder colocado acima da sociedade e cada vez mais alienado desta logo... a liberação da classe dominada não é possível, a não ser com o recurso a uma revolução violenta, e também com a destruição do aparelho de poder do Estado, que foi criado pela classe dominante e que é a corporificação dessa alienação". (Lenin 1965, 9)

Assim, a destruição do Estado burguês é essencial para qualquer transformação revolucionária e essa destruição deve acontecer através do confronto armado, já que o Estado é a força armada da burguesia. A ideia aqui é que todo Estado, apesar de todas as suas instituições “democráticas”, é, nas sociedades capitalistas, controlado diretamente pela classe burguesa, e que sua função principal é dirigir a coerção. Por meio do enfrentamento frontal dessa força coercitiva e de sua derrota com uma força superior, o Estado burguês será destruído, o instrumento de opressão será eliminado e o proletariado tomará o poder, utilizando a força das suas próprias armas para proteger esse poder.

Pode-se dizer que o principal objetivo de Lenin em O Estado e a Revolução não era descrever a essência do Estado burguês em si, mas estimular uma estratégia específica para a revolução socialista. Essa estratégia tinha duas partes: a primeira, a derrubada do Estado burguês; e a segunda, a transição ao socialismo. Como já afirmamos, a derrubada do Estado, conforme definida por Lenin, exigia uma revolução armada; uma confrontação direta da força armada burguesa com a força armada do proletariado. Porém, na segunda parte de sua estratégia, Lenin ia mais longe: ele defendia que, a doutrina da luta de classes foi criada não por Marx, mas pela burguesia antes dele e, genericamente falando, ela é aceitável para a burguesia... Somente pode ser considerado marxista quem estende o reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da ditadura do proletariado". (Lenin 1965, 40) Isso significa, em termos mais simples, que para Lenin a luta de classes continua na transição do capitalismo para o comunismo, e requer um Estado que elimine a burguesia: daí, a ditadura do proletariado. O que Lenin antevia era a reação da burguesia a um regime revolucionário: uma vez que, a partir da perspectiva da classe trabalhadora, os capitalistas não são essenciais à economia proletária, a revolução para a burguesia significa o fim de sua posição privilegiada (sua única alternativa é tornarem-se trabalhadores comuns) e, desse modo, ela está disposta a lutar contra o novo regime com tudo o que esteja à sua mão. Lenin argumentava que a abolição da burguesia como classe exigia um Estado operário todo-poderoso, pronto para eliminar aquele grupo coercitivamente.

Na realidade; esse período é inevitavelmente um período de violenta luta de classes, sob formas ineditamente agudas e, por consequência, durante esse período o Estado inevitavelmente será um Estado democrático de novo tipo (para o proletariado e os despossuídos em geral) e ditatorial de novo tipo (contra a burguesia)... Prosseguindo, a essência da doutrina de Marx sobre o Estado somente foi apreendida por aqueles que compreenderam que a ditadura de uma única classe é necessária, não somente para toda sociedade de classes, em geral, não apenas para o proletariado, que derrotou a burguesia, mas também para todo o período histórico, que separa o capitalismo da "sociedade sem classes" e do Comunismo. (Lenin, 1965, 41)

Assim, para Lenin, a ditadura da burguesia é substituída pela ditadura do proletariado, durante a transição do capitalismo para o comunismo. E quanto ao famoso argumento de Engels segundo o qual, sob o socialismo, o Estado "se extinguirá"?[3] Lenin discute essa questão detalhada mente (1965, 17-25), porém, para nossos objetivos, seu ponto mais importante é aquele onde Engels fala da extinção do Estado, ele "refere-se sem nenhuma ambiguidade possível ao período posterior à ‘apropriação dos meios de produção, por parte do Estado em nome de toda a sociedade’, isto é, posterior à revolução socialista. Nesse período, não há necessidade de um Estado, porque não há necessidade de reprimir um grupo para os propósitos de outro; todos estão trabalhando conjuntamente, todos possuem os meios de produção conjuntamente e a forma política do 'Estado' é a democracia mais completa". (Lenin, 1965, 21) A justificação para a existência de um Estado sob essas circunstâncias, mesmo um Estado completamente democrático, deixa de existir se, como fizeram Engels e Lenin, consideram-se as funções do Estado como primariamente repressivas.

3. Nas palavras de Engels, "O primeiro ato no qual o Estado aparece realmente como o representante de toda a sociedade - a tomada de posse dos meios de produção em nome da sociedade - é, ao mesmo tempo, seu último ato independente enquanto Estado. A interferência do poder de Estado nas relações sociais torna-se supérflua em uma esfera após outra, e por fim entra em letargia. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção do processo de produção. O Estado não é 'abolido', ele se extingue". (em Lenin, 1965, 19)

Todavia, em sua discussão sobre a democracia e o Estado democrático; Lenin distingue muito claramente entre uma democracia burguesa e uma democracia operária (que pode se extinguir uma vez subjugada a oposição burguesa). Lenin, concordando com Marx e Engels, considerava o aparelho do Estado como um "produto e manifestação da irreconciliabilidade dos antagonismos de classe". A democracia burguesa, afirma ele, é uma "democracia para uma minoria insignificante, uma democracia para os ricos" (Lenin, 1965, 104), onde os capitalistas não somente controlam as instituições políticas da sociedade capitalista, mas estruturam as instituições de um modo que garanta aquele controle (ver Wright 1974-75, 81). Esse é um argumento de importância crítica para o ponto de vista de Lenin, de que o aparelho do Estado em uma sociedade capitalista é um aparelho especificamente capitalista, organizado estruturalmente, em sua forma e conteúdo, para servir à classe capitalista e que não pode ser tomado pela classe trabalhadora para servir a seus propósitos. Ele deve ser destruído e substituído por uma forma de Estado radicalmente diferente; por um conjunto diferente de instituições organizadas pelo proletariado, para servir ao proletariado e eliminar a burguesia.

Wright (1974-75) desdobrou essa visão leninista da dominação da democracia capitalista pela burguesia em duas categorias: (1) o uso do parlamento - ostensivamente, a, instituição de representação democrática - corno um meio de mistificar as massas e legitimar a ordem social controlada pela burguesia; e (2) o controle burguês do parlamento. O parlamento apresenta-se de forma mistificadora como o órgão básico do poder na sociedade, parecendo dirigir o Estado através dos representantes eleitos, quando de fato todas as decisões importantes são tomadas nos bastidores, pelos "departamentos, chancelarias e Estados Maiores. Ao parlamento é dado tratar do objetivo específico de enganar as pessoas comuns" (Lenin 1965, 55). Além disso, o parlamento não é, na prática, nem mesmo um corpo representativo. "Se olharmos mais atentamente para o mecanismo da democracia capitalista, notaremos por toda a parte, nos 'insignificantes' - supostamente insignificantes detalhes do sufrágio (qualificações residenciais, exclusão das mulheres, etc.) na técnica das instituições representativas, nos obstáculos reais aos direitos de reunião... na organização puramente capitalista da imprensa diária, etc., – notaremos restrição atrás de restrição à democracia" (Lenin, 1965, 104). Essas restrições, acrescidas à exploração capitalista dos modernos escravos assalariados (que os torna tão esmagados que eles não podem ser molestados pela democracia ou pela política) excluem a maioria da população da participação na vida pública e na política.

Lenin adota um nítido enfoque "de fraude democrática" quanto à democracia burguesa. Há claros indícios em sua obra desse período de que a mistificação da democracia burguesa seria substituída pela democracia revolucionária, estendida à massa de trabalhadores. Em O Estado e a Revolução, por exemplo, ele discute a experiência da Comuna de Paris, de 1871, ressaltando o erro cometido pelos communards ao apoderarem-se do Estado burguês, sem destruí-lo: "Na realidade; ocorre precisamente o contrário. A ideia de Marx consiste em que a classe trabalhadora deve destruir, esmagar 'a máquina do Estado tal e como está' e não limitar-se simplesmente a apoderar-se dela". (Lenin, 1965, 44) Todavia, ele concorda que a Comuna agiu corretamente ao decretar uma democracia plena, com a abolição do exército permanente e a conversão de todos os funcionários públicos em funcionários eleitos e sujeitos à exoneração.

Mas, na realidade, este "somente" significa uma substituição gigantesca de certas instituições por outras de uma ordem fundamentalmente diferente. Esse é precisamente um caso de "quantidade transformada em qualidade": a democracia, introduzida o mais completa e consistentemente que se possa imaginar, converte-se de democracia burguesa em democracia proletária, de um Estado (= força especial de repressão de uma classe específica) em alguma coisa que não mais é realmente o Estado. E necessário ainda reprimir a burguesia e eliminar sua resistência ... Mas o órgão repressivo é agora a maioria da população e não a minoria, como sempre aconteceu seja sob a escravidão e a servidão, seja sob a escravidão assalariada. (Lenin, 1965, 50)

Lenin parece ratificar um Estado revolucionário baseado no conceito de "democracia operária", uma democracia ampliada, além da mistificação do parlamentarismo burguês, até a participação do povo, em todas as instituições sociais. Todavia, na prática, ele levou os bolcheviques a abolir todas as formas democráticas, incluindo gradualmente a retirada do poder dos sovietes, colocando-os nas mãos do Comitê Central do Partido Bolchevique, respaldado pelos Guardas Vermelhos. Essa estratégia era claramente compatível com a ideia de Lenin de derrotar o Estado burguês e esmagar a oposição à revolução, mas ela resultou na destruição de todas as tentativas de construção de um Estado democrático dos trabalhadores, antevisto por Marx, em seus trabalhos sobre a Comuna de Paris. Lenin, de fato, via a transição ao socialismo como tarefa do Comitê Central de um Partido Comunista de vanguarda, que guiaria os trabalhadores em direção ao comunismo, em vez de contar com eles para prover a dinâmica da transformação social.

Foi Rosa Luxemburgo, uma marxista polonesa, quem criticou Lenin e Trotski por seu centralismo e por seu abandono da democracia operária, depois de Outubro de 1917 (Luxemburgo, 1961). Ela argumentou ao mesmo tempo contra a posição, representada por Kautsky e pelos social-democratas alemães daquela época, de que a democracia burguesa tinha de ser preservada, e a posição leninista, que interpreta a ditadura do proletariado como a ditadura de um punhado de pessoas, uma ditadura, como Luxemburgo a considerou, no modelo burguês. Em outras palavras, ela acusava Lenin e Trotski de abandonarem o conceito marxista da ditadura do proletariado, o conceito que o próprio Lenin descreveu em O Estado e a Revolução como uma democracia operária com plena participação dos trabalhadores em um “parlamento operário”. Nunca foi possível tornar explícito o que a própria Luxemburgo propôs como uma alternativa institucional ao leninismo inicial (ela foi assassinada em 1919), porém, sabemos que, de acordo com Luxemburgo, o proletariado, quando tomasse o poder, deveria empreender medidas socialistas. Deveria exercer a ditadura, porém, uma ditadura de classe, não de partido ou grupo, o que significa uma ditadura baseada “na participação ilimitada e ativa da maioria do povo, na democracia ilimitada" (Luxemburgo, 1961, 76-77).

Nós sempre fizemos diferença entre o conteúdo social e a forma política da democracia burguesa: sempre revelamos o sólido núcleo de desigualdade social e de falta de liberdade escondido sob a agradável aparência da igualdade formal e liberdade – não para rejeitar a última, mas para estimular a classe trabalhadora a não ficar satisfeita com a aparência, mas, ao contrário, conquistando o poder político, criar uma democracia socialista para substituir a democracia burguesa - não para eliminar totalmente a democracia. A democracia socialista, porém, não é algo que começa somente na terra prometida, após a criação dos alicerces da economia socialista; ela não vem como algum tipo de presente de Natal, para o valoroso povo, que, nesse ínterim, teve de suportar lealmente vários ditadores socialistas. A democracia social começa simultaneamente com o início da destruição da dominação de classe e da construção do socialismo. Começa com o próprio momento da tomada do poder pelo partido socialista. É igual à ditadura do proletariado. Sim, ditadura! Essa ditadura, porém, consiste na maneira de aplicação da democracia, não em sua eliminação, em ataques resolutos e enérgicos contra os entrincheirados direitos e relações econômicas da sociedade burguesa, sem o que a transformação socialista não pode ser executada. Mas essa ditadura deve ser a obra da classe e não de uma pequena liderança minoritária em nome da classe, isto é, deve prosseguir, passo a passo, com a participação ativa das massas; deve estar sob sua influência direta, subordinada ao controle da atividade pública completa; deve surgir com a crescente prática política do povo. (Luxemburgo, 1961, 77-78)

Parece evidente, a partir dessa longa citação, que a crítica geral à teoria do Estado de Marx, de que conduz inerentemente à falta de participação política, ao desenvolvimento de um Estado poderoso e centralizado (por exemplo, ver Popeer, 1945, voI. 2), é realmente uma crítica do socialismo tal como se desenvolveu na União Soviética, com Lenin, Trotski e, em seguida, Stalin. Ainda mais importante, o poder econômico e militar da União Soviética, no mundo socialista, impôs a visão leninista da "ditadura do proletariado" aos países "socialistas", em vez de permitir aquilo que Rosa Luxemburgo defendeu como as necessárias garantias democráticas: "É um fato bem conhecido e inquestionável que, sem uma imprensa livre e sem censura, sem o direito ilimitado de associação e reunião, a autoridade da grande maioria do povo é completamente impensável". (Luxemburgo, 1961, 66-67)

É possível ter um tipo de democracia socialista, como a antevista por Luxemburgo, dada a continuação do poder da burguesia nos valores e normas vigentes na maioria das sociedades, até mesmo para grande parte da classe trabalhadora? Eis uma questão controvertida. Certamente, o Chile, durante a presidência de Allende, continha elementos passíveis de sustentar tanto a visão de Rosa quanto a de Lenin. Se tivesse sido possível, a Tchecoslováquia, após 1968, poderia ter servido como um importante modelo de socialismo democrático, uma rápida mudança do curso burocrático do comunismo para a visão de Luxemburgo sobre a participação da massa de trabalhadores na construção do socialismo. A Polônia poderia ter se tornado um Estado socialista democrático, se o movimento dos trabalhadores não tivesse sido reprimido pela burocracia e pelos militares poloneses com respaldo dos soviéticos. Contudo, em nossa opinião, é um erro atribuir o abandono da democracia a Marx, seja por sua visão da ditadura do proletariado, seja por sua suposta subestimação do papel do Estado no processo revolucionário, como coisa sem importância, ainda que o tema da participação democrática, depois de Lenin, tenha se tornado, definitivamente, um tópico ausente da agenda soviética. Contudo, essa ausência predominou depois que Lenin e Trotski fizeram a opção particular de dissolver a Assembléia Constituinte, em janeiro de 1918, em prol dos sovietes, como únicos representantes verdadeiros das massas trabalhadoras, e, em seguida, de abandonar os sovietes, em prol do Comitê Central do Partido Comunista. Outros marxistas, como Luxemburgo, previram corretamente que "com a repressão da vida política no campo, a vida dos sovietes se tornará também cada vez mais mutilada. Sem eleições gerais, sem liberdade irrestrita de imprensa e reunião, sem um debate livre de opinião, a vida se extingue em toda instituição pública e se torna uma mera aparência de vida, na qual somente a burocracia permanece como o elemento ativo", como escreveu Luxemburgo (1961, 71), em 1918. Ao mesmo tempo, ela insistia em que, totalmente de acordo com li teoria do Estado de Marx, a democracia plena era impossível enquanto a burguesia estivesse no poder. Embora tanto ela quanto os críticos burgueses de Marx defendessem ideias democráticas, eles tinham teorias diferentes sobre o Estado capitalista, os críticos burgueses acreditando que este pudesse ser modificado (o poder político como independente e superior ao poder econômico), e Luxemburgo concordando com Marx em que os dois são totalmente interligados e inseparáveis.

Basicamente, a discordância entre Lenin e Luxemburgo fundava-se em seus pontos de vista bastante diversos sobre o papel do partido de vanguarda em relação à classe trabalhadora. Lenin acreditava que a consciência deveria ser levada à classe trabalhadora a partir de fora e, para ele, a agência que o realizaria não era a intelectualida de tradicional mas o próprio partido revolucionário, um partido no qual os ex-trabalhadores e os ex-intelectuais profissionais de descendência burguesa se fundiram numa unidade coesa. Deixada aos seus próprios recursos, escrevia Lenin, a classe trabalhadora é incapaz de desenvolver qualquer concepção da missão histórica que Marx lhe atribuía. "O desenvolvimento espontâneo do movimento dos trabalhadores conduz precisamente a sua subordinação à ideologia burguesa... (e à) escravização ideológica dos trabalhadores pela burguesia". (Lenin, em Luxemburgo, 1961, 13) Lenin defendia que tal "partido de novo tipo" necessitava de uma organização de novo tipo. Ele devia ser organizado e centralizado como um exército, com todo o poder e autoridade residindo em seu Comitê Central (Luxemburgo, 1961, 13-14).

Em um panfleto anterior, Leninismo ou Marxismo escrito em 1904, Luxemburgo predisse que o futuro partido de Lenin e seu Comitê Central tenderiam a se perpetuar, a impor-se ao partido, enquanto este se imporia às massas. Ela acreditava na criatividade das massas e na sua autonomia, respeitava sua espontaneidade e também seu direito de cometerem seus próprios erros e de serem ajudados por eles. "Vamos falar francamente", dizia, "do ponto de vista histórico, os erros cometidos por um verdadeiro movimento revolucionário são infinitamente mais férteis do que a infalibilidade do mais inteligente Comitê Central". (Luxemburgo, 1961, 15)