Crônica da Passagem do Inglês, de Eliezer Moreira (resenha impressionista* de Ivo Korytowski)
“Sentiremos saudade da hospitalidade franca e disposta de Januária [...]”
“Em 1833, o porto tornou-se vila Januária, em homenagem à princesa Januária, irmã do imperador D. Pedro II.”
Richard Burton, Viagens aos Planaltos do Brasil
Esta Crônica da Passagem do Inglês é um livro sobre a memória e o esquecimento. Gira em torno da passagem, por uns poucos dias, do eminente orientalista e aventureiro inglês Richard Francis Burton – que nos legou uma versão inglesa clássica do clássico dos clássicos da literatura árabe, As Mil e Uma Noites – pela cidade de Januária, no norte de Minas Gerais, à margem do Rio São Francisco. No capítulo XVII, “From São Romão to Januária” de Explorations of the Highlands of the Brazil, livro monumental no qual relata a viagem que fez através do país em 1867, Burton descreve sua passagem pela Januária com a mirada contida de um misto de naturalista & antropólogo empenhado em descrever a paisagem natural e humana, assim:
Encontramos no porto certo número de canoas e oito barcas, movidas a varas como habitualmente. A praia, como chamam a margem do rio, lembrou-me imediatamente um mercado africano. A cantoria dos negros, monótona, medindo o feijão, concorria para assemelhar as cenas a que assistira no distante Zanzibar. As mulheres, aqui mais numerosas que os homens, ou lavavam roupa no rio, ou andavam acima e abaixo transportando potes de água. Os meninos, mais que seminus, catavam pedaços de madeira ou navegavam em pequenas jangadas feitas de paus, pedinchando o pão de cada dia. etc.
Mas seu relato frio e objetivo, embora longo, deixa muitos detalhes de fora, o que levou um dos personagens do romance – figura real, aliás, e nesta mescla de personagens reais e fictícios, e de episódios reais e imaginários, reside a grande sacada do autor –, Cândido José de Senna, que encomendou, recebeu e leu o livro do viajante inglês, a se irritar, pois ao adquirir a obra imaginara “que ia encontrar nela o relato do que se passara na cidade durante os dias de permanência do cônsul, e nada estava lá [grifo meu]”. Senna, sob o pseudônimo de Belizário Bastos, resolve então preencher as lacunas e escrever sobre os fatos omitidos pelo inglês, a “rebelião de pretos”, o duelo, e a disputa por Quirina envolvendo Ballard e Arcanjo, salvando-os do esquecimento.
O manuscrito lendário deixado por aquela testemunha ocular da passagem do viajante inglês por Januária, intitulado “Crônica da Passagem do Inglês”, a que poucas pessoas na época tiveram acesso, seria décadas depois legado pela neta do cronista, Antonieta de Senna Pacheco, ao aspirante a pintor e aprendiz de jornalista Heleno Silva (alter ego do escritor em carne e osso Eliezer Moreira). Mas, infelizmente o manuscrito acabaria se perdendo numa enchente do São Francisco em 1979, e Heleno Silva, sentindo-se culpado pela perda daquela crônica inestimável, tomou a si a “penitência para se resgatar de sua culpa”, reconstituindo os episódios até então não revelados da passagem de Burton por Januária. Daí esta Crônica da Passagem do Inglês atual, de Eliezer Moreira, onde a reconstituição anda de mãos dadas com a imaginação, resultando numa obra ímpar e primorosa da literatura brasileira contemporânea.
Por se tratar de um romance em parte “histórico” (entre aspas, porquanto um romance dessa complexidade e sutileza fica difícil de enquadrar numa caixinha), o autor, neste nem tão admirável assim mundo novo pós-moderno do “politicamente correto”, vê-se às voltas com realidades agora consideradas anátema: escravidão, assédio sexual, racismo escancarado. Mas, fiel à sua vocação de escritor, opta por nada filtrar, pois “no dia em que a literatura se curvar a esse tipo de patrulha política estaremos todos fodidos” (pág. 229). Bravo!
À semelhança dos grandes romances da literatura russa, o autor cria (ou recria já que alguns são reais) uma multiplicidade de personagens, dando-lhes nomes exuberantes, que enchem a boca quando proferidos, seja aos protagonistas ou aos personagens secundários ou mesmo terciários que fazem apenas uma “ponta” na trama: Argemiro Nóbrega, Aristides de Holanda, Rochus Schüch, Januário Carneiro. Ao final desta resenha o leitor encontrará um glossário dos personagens do livro, uma vez que são numerosos como nas novelas de televisão.
O romance transcorre em três tempos, pelo menos, que se entrelaçam na trama. 1) O tempo mais recente, 1974, quando o aprendiz de repórter recebe a incumbência de localizar a crônica da passagem do inglês Burton, até cinco anos depois, 1979, quando a crônica encontrada volta a se .perder. 2) O tempo histórico, 1867, em que transcorre a passagem do inglês por Januária, período que constitui o núcleo da narrativa, e 3) os flashbacks que esclarecem os antecedentes dos protagonistas que testemunharam essa passagem: Senna, Ballard, Arcanjo, Quirina.
Januária já figurara antes na obra de Eliezer, embora oculta sob o nome ficcional de Candeias (vide pág. 228, antepenúltima linha de baixo para cima, desta Crônica da Passagem do Inglês), no seu livro de estreia, A Pasmaceira, romance "urbano-interiorano" como o autor gosta de classificar, mas se escrito setenta anos atrás seria enquadrado na categoria de romance regionalista, fazendo companhia aos mestres do gênero como José Lins do Rego e Graciliano Ramos.
Logo no início da trama ficamos sabendo que a “passagem do viajante estrangeiro tinha sido anunciada na véspera” e travamos conhecimento com a negra "mulher fatal" Quirina, que se dividia entre dois homens, Arcanjo e Balalrd, mas não se entregava a nenhum deles. A partir daí, à semelhança de um thriller policial, os fatos vão se desvelando aos poucos à medida que avança a investigação de Heleno Silva em busca da crônica, surpreendendo o leitor.
A gente mede a maestria do escritor pelas grandes linhas, pela trama, pelo enredo, mas também pelos pequenos detalhes, e Eliezer é mestre neles também. Por exemplo, na cena tragicômica (trágica do ponto de vista do animal) em que Quirina persegue e mata um porco:
Para tornar tudo mais cômico, o porco preso a uma estaca [...] se soltou. Foi outra correria, risos, até encurralarem o fugitivo. Quirina pegou-o por um pé, Bibiana pelo outro [...] Uma luta ligeira – e o porco tomou novo impulso, ia fugir. Mas Quirina o agarrou pelas orelhas, saltou-lhe no dorso e o cavalgou.”
Ao final do capítulo 7, Burton, que acabara de deixar Januária para prosseguir sua viagem, proclama a um dos tripulantes do ajoujo que “há destinos que não devem ser lembrados” e rasga algumas páginas de seu caderno, jogando-as na água. São as páginas que se referiam a Ballard, Quirina e Arcanjo, e caberá ao cronista Senna, sob o pseudônimo de Belizário Bastos, fazer o seu próprio relato a fim de evitar que “se perdessem aqueles destinos obscuros”. Memória e esquecimento.
Um penúltimo detalhe: com a concorrência do livro eletrônico, o livro físico, impresso precisou se tornar um objeto esteticamente atraente, e neste quesito a equipe da Editora Cepe está de parabéns. A capa com suas gravuras antigas do tipo que ilustrava antigos almanaques, as páginas escuras delimitando os capítulos, a fonte tipográfica, o papel, tudo no livro é primoroso.
E finalmente, perguntei ao autor se a crônica deixada por Cândido de Senna existiu mesmo ou se foi inventada pelo escritor. Ele me respondeu: “A crônica é o objeto misterioso do livro, o objeto desconhecido, ignorado, incógnito, e ele permanece incógnito. É bom que assim seja, porque isso faz parte do estatuto da ficção.”
NOTA:
* O que é uma resenha ou crítica impressionista? É aquela baseada não em critérios objetivos ou num conjunto de ideias/ideologia (marxismo, psicanálise, estruturalismo, etc.), e sim nas impressões subjetivas, pessoais do resenhista.
LINKS:
Para acessar a obra de Burton que deu origem à obra de Eliezer:
no original: clique aqui
em português na tradução de Américo Jacobina Lacombe: clique aqui
Eliezer Moreira
GLOSSÁRIO DOS PERSONAGENS DO LIVRO (protagonistas em negrito; personagens reais, que participam da ação, citados na obra de Burton, indicados com “*”, além de outros contemporâneos do autor mencionados no romance.)
TEMPO “HISTÓRICO” (1867)
Agripina – mãe de santo, escrava de Cândido José de Senna.
Ana – filha de Senna, mãe de Antonieta, aos doze anos foi internada num colégio de freiras de Diamantina.
Argemiro Nóbrega – líder dos simpatizantes de Arcanjo.
Aristides de Holanda – preto pernambucano, mestre da fundição dos sócios Ballard & Senna.
Bernardino Martins de Senna – capitão, um dos protetores de Cândido José de Senna, que lhe deu o nome e em cuja casa este morou até os nove anos.
Bibiana – neta de Agripina, amiga de Quirina.
Cândido José de Senna* – avô de Antonieta, filho natural de um padre, estudou no seminário de Olinda e no Caraça. Organizou a comitiva de recepção a Burton no porto e se tornou autor de uma crônica “lendária” sob o pseudônimo de Belisário Bastos sobre a passagem do inglês por Januária, crônica que poucas pessoas leram e que sua neta Antonieta confia a Heleno Silva, alter ego do autor do livro. Foi expulso do seminário de Olinda por ter participado de uma revolta popular. Tornou-se sócio de Ballard na fundição de ferro.
Cocking – amigo de Ballard e procurador da sra. Maguire, liquidou o espólio de Ballard.
Chico Serrão – capitão, cunhado de Manuel Caetano e seu auxiliar na Câmara.
Francisco de Paula Pereira Proença – comerciante, chamado Chico Três-Pés pelos amigos.
Gaio - português dono de um ajoujo (tipo de embarcação).
Gonçalo José de Pinho Leão* – protótipo do “chato” que fala pelos cotovelos.
Gordon – superintendente da mina de Morro Velho, em Sabará.
Heinrich Schüch – vulgo Henrique Chuí, mulato filho de Rochus Schüch com uma “bela preta”, liquidante do espólio da fundição.
Honorata – mulher do Ballard, a quem deu dois filhos.
Januário Carneiro – agitador, contrário ao recrutamento para a Guerra do Paraguai.
Joaquim Farias – dono da casa de pasto e albergue.
José Antônio Marinho* – padre, depois cônego, pai natural de Cândido José de Senna, personagem real, liberal e líder revolucionário de 1842, autor da História do movimento político que no ano de 1842 teve lugar na Província de Minas Gerais.
José Eleutério de Souza* – capitão em cuja casa Quirina trabalhava, e onde foi oferecido um almoço a Burton.
Joseph Ballard – irlandês agregado do doutor Wageman na fazenda Riacho do Peixe. No passado, conheceu Burton na Guerra da Crimeia. Trabalhou por um tempo na mina inglesa de Morro Velho, de onde foi expulso porque fazia vista grossa quando escravos roubavam ouro para poderem comprar sua alforria. Chegou em Januária pobre mas conseguiu enriquecer explorando uma fundição de ferro em sociedade com Cândido de Senna. Disputava com Luís Arcanjo o amor de Quirina.
Luísa Mahin – suposta mãe de Quitéria, por sua vez mãe de Quirina.
Luís Arcanjo Lisboa – vulgo Cumbé, ex-escravo de Cândido José de Senna, que o recebeu em pagamento de serviços prestados numa fazenda e o trouxe consigo para Januária. Enviado como soldado à guerra do Paraguai, na condição de “substituto”, retorna a Januária depois de três anos. Tido como desertor, volta para reivindicar e obter sua liberdade e recuperar o amor de Quirina. Antes de ir à guerra, ele a trouxera de um quilombo, como sua mulher, cujo amor passou a disputar com o irlandês Ballard.
Moisés Mamlofsky* – judeu polonês, amigo de Ballard.
Manuel Caetano de Souza Silva* – tenente-coronel, presidente da Câmara.
Manuel Felipe Barbosa – vulgo Manuel das Moças, Barba de Veneno ou Manuel Diabo – versejador, autor de quadrinhas como:
O rio é de São Francisco
Mas meu ele é também
Me dá peixe, me dá água
Me deu o amor de meu bem!...
Maria da Anunciação, vulgo Mocinha, criada como filha na casa de Manuel Caetano, apaixonada por Ballard, com a morte deste acabou se casando com Senna, com quem teve um relacionamento conflituoso.
Molly Maguire – velha senhora irlandesa, mãe de Ballard, vem ao Brasil em busca do filho.
Olegário – capataz na fazenda do alemão Wageman.
Olímpio – carcereiro.
Otto Wilhelm Wageman* – médico sanitarista, dono da fazenda Riacho do Peixe, adquirida do austríaco Rochus Schüch, parte da qual vendeu a Cândido de Senna.
Quirina Mahin – negra hauçá, suposta neta de Luísa Mahin, trazida por Arcanjo de um quilombo para Januária, cujo amor Ballard e Arcanjo disputam. Tenta se aproximar de Burton para que este traduza um pergaminho, escrito em árabe, que ela traz dentro de seu patuá.
Quitéria – suposta filha de Luísa Mahin, e mãe de Quirina.
Richard Francis Burton* – Orientalista e aventureiro inglês, tradutor das Mil e Uma Noites. Sua passagem por Januária em 1867, narrada em seu Explorations of the Highlands of the Brazil (Viagem aos Planaltos do Brasil, na tradução de Américo Jacobina Lacombe), faz com que essa pequena cidade às margens do Rio São Francisco saia de sua pasmaceira habitual (descrita no livro de estreia de Eleazar Moreira, A Pasmaceira, embora em época diferente) e os ânimos se exaltem.
Rochus Schüch – vulgo Roque Chuí, austríaco da comitiva da princesa Leopoldina.
Samuel Warner* – judeu, vulgo Percheron, alusão “à sua robustez e tornozelos grossos como os daquele cavalo de carga”.
Seu Ramiro – remeiro na barca da firma Senna & Ballard.
Severiano Saraiva – adversário do presidente da Câmara.
Srta. Daly – irlandesa, antiga noiva de Ballard, acompanha a Sra. Maguire na vinda ao Brasil.
Vidal – preto jovem.
Vitória Regina Lisboa – mulher que Ballard trouxe de Morro Velho e que morreu de parto.
Wilhelm Halfeld* – último viajante estrangeiro, antes de Burton, a visitar Januária, em 1852.
TEMPO MAIS RECENTE (1974-9)
Aldemário Colares – fotógrafo, idoso, amigo de Heleno.
Ambrósio Batista – tenente.
Andersen Longuinhos – assumiu o espólio do jornal Correio de Januária, tornando-se o "Randolph Hearst" de Januária.
Antonieta de Senna Pacheco – neta do cronista Cândido José de Senna, entrevistada por Heleno Silva, alter ego do autor do livro.
Antônio Régis Filho — artesão, entalhador de carrancas conhecido como “Bufunfa”, bastante popular em Januária nos anos 1970. (O autor me confessou ter cometido um anacronismo proposital, pois deu um jeitinho de fazer esse personagem real, seu amigo, aparecer no livro em ligeira conversa com Burton em pleno século 19.)
Carlos Pego, o Carabina – estudante, amigo de Heleno.
Clemente Finaflor – fundador do Correio de Januária, ex-prefeito, assassinado na zona boêmia (ou seja, de prostituição).
Doutor Vale – professor emérito no ginásio local.
Euler Bastos – vice-prefeito no início dos anos 1970.
Firmino Finaflor – vulgo Mino, filho de Clemente Finaflor e amigo de Heleno.
Gumercindo Montenegro – marido de dona Nelly, proprietário da quinta onde se hospeda Antonieta de Senna Pacheco.
Heleno Silva – alter ego do autor do livro. Em seu “primeiro desafio de aprendiz de repórter”, procura desvendar/reconstituir a história da passagem (verídica) de Richard Burton pela cidade de Januária e para isso sai em busca do “paradeiro da crônica lendária” escrita por Senna.
Levy Maciel – tabelião, bisneto de Otto Wageman, consultado por Heleno na busca da crônica e de informações sobre a passagem de Burton por Januária.
Nelly Montenegro – amiga de infância de Antonieta, em cuja casa esta se hospeda.
Nestor Bulhões – comerciante.
Saul Martins – estudioso da história da cidade.
Sivico – barbeiro.