A Revolução dos Bichos (A Fazenda dos Animais), de George Orwell (resenha)

Todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros. Você já deve ter ouvido esta frase uma infinidade de vezes. É do livro Animal Farm, A Fazenda dos Animais na tradução literal, mas que em português recebeu o título (bem apropriado) A Revolução dos Bichos. A frase completa é “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros”. Este livro teve um papel especial na minha vida. Foi um dos dois livros que tive que estudar, os prescribed books, para obter o Lower Certificate in English da Universidade de Cambridge após cinco anos de Cultura Inglesa, em 1966. Estudei naquela Cultura Inglesa que ficava num casarão na Avenida Atlântica, na altura do Posto 6. Eu tinha então completado 15 anos. Pois esse inglês da Cultura Inglesa seria a base do que, décadas depois, se tornaria meu ganha-pão: a tradução. Aqui está meu diploma. Observem que minha nota nos prescribed books não foi tão brilhante assim, foi um pass, ou seja, passei pela tangente. Nas outras duas provas tive good.

Esse diploma tem uma historinha. Na época não fui lá na Cultura Inglesa pegar. Deixei pra lá. Muitos anos depois, quando eu já era adulto, pensei: “Vou lá apanhar aquele meu antigo diploma”. Pensei também: “Será que guardaram, será que vai ser difícil achar?” Fui lá no balcão, perguntaram que ano fiz o exame, abriram um arquivo e... presto!... me entregaram o diploma como se eu tivesse feito o exame um mês antes. Eficiência britânica. Se fosse uma repartição pública tupiniquim o diploma teria sido tragado por algum buraco negro! E eu teria de pagar uma propina a alguém para localizar.


Relendo o livro aos 67 anos de idade, me pergunto como consegui entender aquele inglês com quatorze, quinze anos. Não é um inglês difícil como, digamos, do Moby Dick, mas também não é um inglês elementar. Bem, a gente tinha um professor que lia o livro conosco em sala de aula e explicava o vocabulário, os episódios. Era o Mr. Alexander, um inglesão arquetípico.


Em casa eu falava tanto daquele livro que acabou despertando a curiosidade de minha família, e meu pai e meu irmão mais velho também leram. Eles ficavam discutindo as analogias com a Revolução Russa, que o Major era o Marx, que o Snowball (Bola de Neve) era o Trostski, que o Napoleão era o Stalin. Para mim naquela idade aquelas analogias eram irrelevantes, não significavam nada. Para mim aquela era um historieta de bichos, e bastava.


Mas o fato é que o livro é uma grande fábula sobre o totalitarismo. Aplica-se como uma luva à Revolução Francesa que começou cheia de ideais e acabou descambando no Terror, guilhotina e enfim a restauração dos Bourbons e dos títulos de nobreza quando a sociedade se cansou daquela orgia de violência. Mas na verdade Orwell o escreveu tendo em mira a revolução russa. Orwell era um esquerdista, lutou na Espanha ao lado dos Republicanos contra os fascistas e foi ferido. Mas se desiludiu com os descaminhos da Revolução Soviética, como vários outros intelectuais também se desiludiram. Outros continuaram acreditando no Guia Genial dos Povos, o Stalin, até que viesse a morrer e Kruschev denunciasse seus excessos. E outros, mesmo após as denúncias de Kruschev, acusaram Kruschev de revisionista, e o movimento comunista internacional rachou, dividiu-se na linha soviética e linha chinesa, esta última continuando a venerar o assassino Stalin. A Albânia, por exemplo, mesmo ficando na Europa, adotou a linha chinesa. Comunismo não tem lógica.


As analogias entre o livro e a revolução são claras: o Major, profeta da revolução dos bichos, é o Marx. A canção Beasts of England, beasts of Ireland, Beasts of every land and clime, Bichos ingleses e irlandeses / Bichos de todas as partes! é a Internacional Comunista. O ataque dos fazendeiros vizinhos à Granja dos Bichos após a rebelião é a reação dos russos brancos apoiados pelas potências europeias contra os russos vermelhos. No início do Capítulo III a gente lê que “os porcos não trabalhavam, propriamente, mas dirigiam e supervisionavam o trabalho dos outros.” É a Nova Classe dos burocratas que surge nos países socialistas e passa a controlar tudo e a usufruir de privilégios. Eu vi isso em Angola (como você pode ver clicando aqui). 


O grande filósofo Bertrand Russell, que visitou a União Soviética nos primórdios da revolução, em 1920, foi um dos primeiros a perceber o surgimento dessa nova aristocracia. Escreve ele em The Practice and Theory of Bolchevism (p. 29 - vou traduzir o trecho para o português): os comunistas [...] têm todos os traços bons e ruins de uma aristocracia que é jovem e vital. São corajosos, enérgicos, capazes de comandar, sempre prontos a servir o Estado. Por outro lado, são ditatoriais, carecendo de uma consideração comum pela plebe. São praticamente os únicos detentores do poder, e usufruem inúmeras vantagens em consequência. A maioria, embora longe do luxo, recebe melhor comida que as outras pessoas. Somente pessoas de certa importância política conseguem obter automóveis ou telefones. Permissões para viagens ferroviárias, para fazer compras nas lojas soviéticas (cujos preços são cerca de um quinto daqueles do mercado), para ir ao teatro [...] são mais fáceis de obter para amigos daqueles no poder do que para os mortais comuns. Em milhares de formas, os comunistas têm uma vida que é mais feliz do que aquela do resto da comunidade.” Isto foi escrito em 1920, e o Russell não era nenhum reacionário, ao contrário, foi até preso por pregar o pacifismo durante a Primeira Guerra Mundial e liderou um tribunal não oficial que julgou os EUA por crimes de guerra no Vietnã nos anos 1960.


A revolução dos bichos depois degringola. O líder da Revolução passa a fazer acordos com os fazendeiros vizinhos, antes inimigos. Lembra o acordo entre Stalin e Hitler. Os cães ferozes que mantêm a ordem via terror são a polícia secreta do Stalin. O passado vai sendo reescrito, e a participação heroica de Bola de Neve na revolução acaba sendo negada, e ele é acusado de ter sido, na verdade, um traidor da revolução. Stalin fez isso em relação a Trostki, que havia comandado o Exército Vermelho na guerra civil. Fotos históricas mostrando a participação de Trotski foram retocadas, e Trotski foi removido. Até os processos do stalinismo, em que as pessoas confessavam crimes que não cometeram e eram fuziladas, têm seu correspondente nesse livrinho de Orwell, curto mas poderoso. Os mandamentos originais vão sendo desvirtuados. “Nenhum animal matará outro animal” vira “Nenhum animal matará outro animal sem motivo”. QUATRO PERNAS BOM, DUAS PERNAS RUIM vira QUATRO PERNAS BOM, DUAS PERNAS MELHOR. E o mandamento “Todos os animais são iguais” acaba sendo transformado no famoso “Todos os animais são iguais mas alguns animais são mais iguais do que os outros.”


Orwell também foi autor de 1984, livro publicado em 1949, quatro anos após a derrota do nazismo, e quatro anos antes da morte de Stalin, que prevê um futuro sombrio para a humanidade, dominada por regimes totalitários e controlada pelo Big Brother, o Grande Irmão, que você deve conhecer do programa da televisão. Existem semelhanças entre essa distopia e a realidade para a qual estamos caminhando.


Como se dizia nos anos 1960, "é isso aí, bicho!"