Vamos começar falando um pouco do Goethe, autor do Fausto. Goethe é considerado o maior escritor de língua alemã de todos os tempos, o Shakespeare alemão, o Dante alemão. A gente sabe tudo sobre sua infância, juventude e início da vida adulta porque deixou um livro de memórias, Poesia e verdade. Quando alguém escreve um livro de memórias isso ajuda muito os historiadores futuros. Goethe nasceu numa família importante de Frankfurt, na época uma cidade imperial livre do Sacro Império Romano Germânico. A Alemanha unificada só passou a existir na segunda metade do século XIX. Estudou Direito e durante um tempo exerceu a advocacia. Ocupou cargos públicos e políticos e recebeu um título de nobreza, daí o von antes do sobrenome: Johann Wolfgang von Goethe. Foi autor de um clássico da literatura romântica, Os sofrimentos do jovem Werther, cujo protagonista morre de amor (suicida-se). Escreveu obras épicas, dramáticas, poéticas e também científicas, sobre mineralogia, teoria das cores, etc. Ou seja, um gênio com múltiplos talentos.
Até hoje pessoas acreditam que existe gente que faz pacto com o demônio e às vezes até apontam alguma celebridade, tipo Raul Seixas ou Marilyn Manson, que teria feito esse pacto. Na verdade essa crença do pacto com demônio é uma lenda medieval baseada numa personagem histórica, o alquimista Johann Georg Faust. Essa lenda circulou pela Europa em várias versões e ganhou até uma versão inglesa de Christopher Marlowe, publicada em 1604. Mas quem elevou essa lenda a um novo patamar, transformou-a num monumento da literatura universal, como se fosse uma Torre Eiffel literária, a obra máxima da literatura alemã, foi Johann Wolfgang von Goethe.
Vou contar agora um pouco da história, mas antes, para entenderem melhor, vamos ver os personagens. Os personagens são Deus e Mefistófeles, que é um demônio. Isso no céu. Aqui na terra, Fausto, um médico, filósofo e sábio frustrado com sua sabedoria, o criado do Fausto, Wagner, a Margarida (Gretchen), que é uma mocinha ingênua e romântica, a Marta, amiga mais velha da Margarida, a família da Margarida, irmão, mãe, e tem as feiticeiras que participam de um festival sinistro, a noite de Walpurgis. Tem personagens secundários também que vão aparecendo, tem uma cena, por exemplo, numa taberna, pessoas numa mesa se divertindo, mas são como figurantes num filme, aparecem brevemente e não voltam mais.
Trata-se de uma história sinistra que eu vou aqui resumir. Lembrando que o resumo é um esqueleto, mas o corpo tem muito mais que o esqueleto. A história começa com um Prólogo no Teatro em que se discute o papel do teatro. Depois vem o Prólogo no Céu com uma aposta entre Deus e o Diabo, igual aquela no começo do Livro de Jó, na Bíblia. Nesta Deus elogia Jó e o Diabo diz: ah é? quer ver como eu consigo desencaminhar esse Jó. A mesma coisa no Fausto, Deus elogia Fausto e Mefistófeles diz: ah é, você me da carta branca que eu desencaminho Fausto. Esse é o Prólogo no Céu. Depois a primeira cena do corpo da obra é o monólogo de Fausto frustrado porque fez tantos estudos, estudou filosofia, estudou teologia, direito mas no fundo, no fundo continua tão ignorante quanto antes, porque ele não conseguiu entender realmente a essência do mundo. Que é a sensação que a gente tem até hoje: a ciência descobre tantas coisas, os átomos, os quarks, a relatividade, etc. Mas a gente continua sem saber como surgiu o mundo (tá, surgiu no Big Bang, mas o que causou o Big Bang?), qual é a razão da vida, com toda a ciência que a gente tem hoje continuamos frustrados porque as questões metafísicas não têm resposta e isto está lá no início do Fausto. O Fausto, com todos os conhecimentos da época dele, a filosofia e a teologia da época dele, está frustrado porque a essência mesmo do mundo ele não consegue desvendar. Aí resolve recorrer à magia, invoca o espírito da terra, mas nada funciona até a hora em que ele sai para passear com seu criado e observa um cachorro meio estranho com jeito meio diabólico e comenta com o criado: você viu aquele cachorro esquisito, o criado diz, é um cachorro comum, normal, não vejo nada de mais, deve estar procurando o dono, só que o cachorro vai seguindo Fausto até em casa, entra na casa e se acomoda lá, e uma hora o cachorro começa a incomodar, começa a latir, a ganir, aí o Fausto reclama, para com essa barulheira, e uma hora aparece um clarão e o cachorro se transforma no Mefistófeles, o cachorro era Mefistófeles. E aí ocorre o chamado pacto faustiano: Mefistófeles promete tirar Fausto daquela depressão, promete realizar todos os desejos dele, ajudá-lo a descobrir um mundo novo, vai fazer isso tudo por ele aqui neste mundo, mas em compensação depois que o Fausto passar para o outro mundo, ou seja, depois que morrer, vão inverter os papéis, Fausto é que vai ter que servir ao diabo, ou seja, é a história da venda da alma para o diabo. Fausto assina um pacto com o próprio sangue e saem. Vão a uma taberna mas para Fausto nada tem graça. Mefistófeles leva Fausto a uma feiticeira que prepara uma poção mágica e devolve ao Fausto a sua juventude. Que é um dos velhos sonhos da humanidade. Um era voar, o mito do Ícaro que acabou se realizando no século XX, o outro era achar a fonte da eterna juventude, a lenda do Eldorado. Com a medicina a gente vai vivendo cada vez mais, mas essa eterna juventude até hoje não se encontrou, não há como deter o envelhecimento. O Fausto rejuvenescido seduz e desencaminha uma mocinha romântica e inocente, a Margarida, depois o diabo o leva para um impressionante festim de bruxas, a noite de Walpurgis. Enquanto isso Margarida é condenada à morte porque assassinou o bebê que teve de Fausto. Quando Fausto toma conhecimento do destino da moça, exige que Mefistófeles o ajude a resgatá-la do cárcere. E temos depois o clímax dramático da peça, que não vou contar para não me acusarem de estraga-prazeres.
Aqui falei apenas do primeiro Fausto, publicado em 1808, mais ou menos fiel à lenda original. Mais na velhice Goethe escreveu uma continuação, extremamente filosófica e imaginativa, que alguns consideram ainda melhor do que o primeiro Fausto. Essa continuação foi publicada postumamente e passou a ser conhecida como o Fausto II, e o Fausto original, como o Fausto I.
Para mim o Fausto foi mais que uma leitura, foi um projeto de vida. Foi também uma dívida que eu tinha com meu pai, falecido em 1981, que agora quitei. Porque quando eu era jovem meu pai dizia que eu tinha que estudar alemão para ler a literatura alemã, principalmente o Fausto. Passei uma vida estudando alemão. Vocês podem ler no meu blog Sopa no Mel o diário de minha aventura em Rothemburg tentando aprender o idioma de Goethe.
Eu tenho duas traduções do Fausto em português, a clássica da Jenny Klabin Segall e uma atribuída a Alberto Maximiliano em edição da Abril Cultural. A tradução da Jenny é elogiadíssima, mas no esforço quase sobre-humano de recriar métricas e rimas no português (porque as rimas do texto original se perdem na tradução, você tem que criar rimas novas), a tradução genial da Jenny soa artificial. O texto perde a naturalidade do original. Já o Alberto Maxililiano da edição da Abril, pelo que vejo na Internet, é um nome fake inventado pela Abril. O que a Abril fez foi plagiar as traduções de Silvio Meira e Galeão Coutinho. Correu ou ainda corre um processo na justiça envolvendo esse plágio. É o que acabo de ver na Internet.
Gerard de Nerval, um escritor romântico francês do século XIX, autor da terceira tradução do Fausto para o francês, escreveu que (vou traduzir) “considero impossível uma tradução satisfatória dessa assombrosa obra”. Por isso o Gerard optou por uma tradução em prosa. Em sua tradução abandona qualquer pretensão de reproduzir a poesia do texto alemão.
O problema é que em português inexiste uma tradução do Fausto em prosa. E a versão francesa do Nerval, se você sabe francês, é muito prolixa, um verso do original vira uma frase enorme na tradução. A solução é transformar a leitura do Fausto num projeto de vida e estudar o idioma de Goethe. Boa sorte!