Machado de Assis jovem
MACHADO DE ASSIS: UMA PAIXÃO VITALÍCIA
Ivo Korytowski
Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21/6/1839–29/9/1908), filho de mãe branca, açoriana, e de pai “pardo forro” (portanto, longe de ser um “negro” como queria Harold Bloom), além de suas vertentes de romancista e contista mais conhecidas do público leitor atual, foi também tipógrafo e revisor (no início da precoce vida profissional), repórter político (fazendo a cobertura das sessões do Senado), poeta romântico (que, ao contrário dos colegas de estro, não morreu jovem de tuberculose), crítico teatral, censor de peças de teatro, teatrólogo (com peças “datadas”, que não são mais encenadas), funcionário público (no bom sentido, trabalhador, usou de seu poder no serviço público para proteger os escravos), tradutor (sua tradução de Os trabalhadores do mar de Victor Hugo é lida até hoje), colunista de jornal.
Machado é difícil de ler? A julgar pelo sucesso que fazia na época, pelos poemas, contos, crônicas, folhetins que publicava nos jornais e revistas da época, não deveria ser difícil de ler. O problema é que as sociedades, com o passar do tempo, mudam: mudam os costumes, mudam as gírias, mudam os sentidos de várias palavras, por exemplo, irado antigamente significava zangado, mudam as tecnologias. Assim é sempre mais fácil ler um texto da nossa época, com as nossas gírias, as nossas maneiras de pensar, do que ler um texto de cem, 150 anos atrás, quando tudo era tão diferente. Mas a graça é exatamente essa diferença, esse estranhamento. A literatura é a máquina do tempo mais eficaz que já se inventou, transporta o leitor para outra época, outra mentalidade.
Para quem nunca leu Machado na vida, tem curiosidade de ler mas não sabe por onde começar, eu recomendaria iniciar pelos contos. Machado é um mestre do conto, gênero literário que, por exigir concisão e economia de recursos, poucos autores dominam à perfeição. Na minha modesta opinião, estes são seus treze melhores contos:
1- “Um esqueleto” é um dos raros contos góticos, macabros, do Machado de Assis.
2- “Miss Dollar”, conto escrito quando o autor tinha trinta anos e estava ainda na fase inicial, romântica, de sua literatura. Uma simpática cadela serve de pivô para uma história de amor “complicada”.
3- “O Relógio de Ouro”. Um relógio misterioso abala a harmonia de um casal.
4- “A Chinela Turca” conta como os planos de Duarte de ir a um baile são interrompidos por uma sucessão de acontecimentos insólitos.
5- “O espelho” é uma “história dentro da história” que explora os meandros misteriosos da alma humana.
6- “Último Capítulo” é o relato em primeira pessoa de um azarado que, como nada na sua vida dá certo, resolve se matar. Um texto tragicômico. O personagem consegue a proeza de cair no chão de costas e quebrar o nariz!
7- “Uns Braços”. Numa época de costumes recatados, Dona Severina, ao usar mangas curtas e deixar os braços à mostra, desperta o desejo do jovem Inácio, de quinze anos.
8- “Conto de Escola”. Gosto muito deste conto porque mostra, com grande sensibilidade, o ambiente de uma sala de aula em 1840.
9- “Um Apólogo”, história curta mas genial, onde os personagens são uma agulha, uma linha e um alfinete.
10- “Ideias do Canário”. História genial, do gênero fantástico ou surreal. Tem um canário falante na história.
11- “Um Erradio”. A história de um personagem singular, o Elisiário. O que acho incrível neste conto é a caminhada que ele faz, altas horas da noite, do Centro do Rio até São Cristóvão. Quem é que se aventuraria a fazer esse mesmo percurso a pé nesse horário hoje em dia?
12- “Missa do Galo” é um clássico da época em que o Natal brasileiro ainda não se germanizara. Em vez de árvore de Natal e troca de presentes, ia-se à Missa do Galo. Velhos tempos!
13- “Pílades e Orestes”. Esta história tem um detalhe interessante. Um dos personagens morre vítima de uma bala perdida. Naquela época! Sinistro, né?
Machado de Assis em 1880
Em vida, Machado de Assis publicou 26 livros: nove romances, quatro livros de poesias (Americanas, Crisálidas, Falenas e Poesias completas), cinco coletâneas de contos, seis livros de teatro, duas coletâneas de gêneros diversos (Páginas recolhidas e Relíquias de casa velha. Uma produção e tanto! Todavia, “grande parte da produção de Machado de Assis não foi, em vida do autor, reunida em livro, ficando dispersa em periódicos” (jornais e revistas), bem como “correspondências particulares, mensagens escritas em álbuns de autógrafos”, segundo Alex Sander Luiz Campos na conferência “Edições de Machado de Assis: Por Quê, Para Quê?” disponível na Machadiana Eletrônica.
Assim, depois que o “bruxo do Cosme Velho” deixou este mundo, começou o afã por coligir e publicar seus textos ainda inéditos em livro, como mostra a seção “Publicações póstumas” do verbete “Obra de Machado de Assis” da Wikipédia em língua portuguesa para a qual o autor deste artigo deu sua contribuição. As primeiras publicações póstumas devem-se a Mário de Alencar, filho do grande romancista romântico, praticamente adotado por Machado, que organizou sua obra de teatro, crítica literária, crônicas da seção “A Semana” da Gazeta de Notícias, e obras de prosa e verso reunidas nas Outras relíquias. Em 1932, Fernando Nery publica a correspondência do grande escritor e um volume de Novas relíquias. Em 1944 a crítica literária Lúcia Miguel Pereira traz a lume a novela Casa Velha. Nos anos 1950 R. Magalhães Júnior organizou e publicou vários volumes de contos e crônicas do autor. Em 1965 o pesquisador francês Jean-Michel Massa reúne 150 textos variados nos Dispersos de Machado de Assis. (Estes são apenas alguns exemplos.) E o garimpo nunca parou, entrando século XXI adentro.
Um caso pitoresco que merece menção foi uma carta de Machado de Assis datada de 22 de julho de 1890 contendo um soneto inédito por ocasião do aniversário de seu amigo e poeta Ernesto Cybrão, vendido em leilão em 5 de agosto de 2019 por Levy Leiloeiro. O interessante é que, em 26/2/2021, o mesmo manuscrito foi novamente vendido em leilão, desta vez por Vera Nunes Leilões, como mostra uma pesquisa no Google. O soneto foi divulgado pelo colunista Lauro Jardim de O Globo em 5 de agosto de 2019. Em e-mail enviado aos amigos em 23/7/2019, informou Alexei Bueno: “Um papeleiro encontrou no lixo, no Leblon, este lindo manuscrito do Machado, com um muito bom e espirituoso soneto para o aniversário do Ernesto Cipião, um poeta português que era seu amigo e vizinho, já que morava na rua Cosme Velho 33, e o Machado, então com 51 anos, no 18. Já está num leilão, por oito mil reais. O que se descobre no lixo no Rio de Janeiro é impressionante, a espantosa ignorância deste povo contribuindo bastante com tal espécie de garimpo. E se não fosse o papeleiro, adeus soneto.” Eis o soneto:
Acabo de saber que, não sabendo
Que havias de fazer, fizeste hoje anos;
Mas tão calado, ó deuses soberanos,
Que eu, sem nada saber, ia morrendo.
Em tratado de idade, compreendo
Que antes cantá-la que sentir-lhe os danos;
Mas tu, mas tu, tu quoque, Cyprianus?
Tu, eterno rapaz? Acho estupendo.
Nem por isso te livras deste frio
Soneto feito de versinhos bambos,
Que dão, ao lê-los, tédio e calafrio.
São farrapos, concordo, são molambos...
Mas uma cousa nos reforça o brio:
“Ambos na flor da idade, árcades ambos.”
Machado de Assis no Morro do Livramento
De 1861 (coluna “Comentários da Semana” no Diário do Rio de Janeiro) até 1900 (coluna “A Semana” no Diário de Notícias), Machado de Assis escreveu os então chamados “folhetins” onde abordou, em textos plenos de ironia e senso de humor (por vezes com pitada de nonsense, como em “O melhor remédio para não morrer de febre amarela é... morrer de outra moléstia”), os assuntos da época.
Cabe uma breve explanação sobre os termos “crônica” e “folhetim”. Crônica originalmente designava uma “compilação de fatos históricos” (ver Houaiss). O livro bíblico Crônicas relata episódios da história dos hebreus. A partir da segunda metade do século XIX, o termo passa a designar “um gênero híbrido, situando-se entre o jornalismo e a literatura, alimentando-se de acontecimentos do dia-a-dia” (Petar Petrov, “A Crônica Ensaística de Arnaldo Saraiva”). É neste sentido do termo que Machado de Assis assina uma coluna denominada CHRONICA na revista O Futuro. Já o folhetim era uma seção, geralmente no rodapé da página do jornal, onde um escritor publicava uma coluna com uma crônica (folhetim-crônica), ou um romance em capítulos (romance folhetinesco, que poderia depois ser lançado em livro). Neste último sentido, nas novas mídias do século XX, deu lugar à “novela” de rádio e televisão.
Os melhores folhetins/crônicas machadianos foram reunidos em duas excelentes coletâneas que estão à venda no mercado: Machado de Assis (coleção Melhores Crônicas) da professora e pesquisadora da USP Salete de Almeida Cara e Crônicas escolhidas do machadólogo inglês John Gledson. Além disso, a Nova Fronteira acaba de lançar um box com três volumes reunindo as crônicas de Machado, organizadas por André Seffrin. Seguem-se trechos extraídos (em ordem alfabética de assunto) de crônicas do autor. Divirta-se!
Ano Novo
Devo despedir-me dos leitores até para o ano. O de 1861 está a retirar-se, e o de 1862 bate à porta. Como todo ano novo, este antolha-se rico de esperanças, com uma cornucópia inesgotável de felicidades. Como todo o ano velho, o de 1861 desaparece coberto de maldições. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 29/12/1861)
Astronomia
A astronomia é, com efeito, uma bebedeira de léguas. As léguas são as polegadas do espaço. O menos que ali há, são milhares. Dá vertigem a leitura daqueles milhões de bilhões de trilhões de quatrilhões. Entendamo-nos: dá vertigem aos meus amigos, porque eu cá, – falo a minha verdade – acho que é muito mais longe ir a pé daqui da Rua do Ouvidor ao saco do Alferes [enseada, no atual bairro do Santo Cristo, que com a construção do cais do porto, desapareceu]. Que são trilhões de trilhões de léguas, em relação ao infinito? Nada; ao passo que daqui ao saco do Alferes é deveras um estirão [caminhada extensa]. (“Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 23/8/1885)
Aterro da Baía da Guanabara
Entre parêntesis, não se pense que sou oposto a qualquer idéia de aterrar parte da nossa baía. Sou de opinião que temos baía de mais. O nosso comércio marítimo é vasto e numeroso, mas este porto comporta mil vezes mais navios dos que entram aqui, carregam e descarregam, e para que há de ficar inútil uma parte do mar? Calculemos que se aterrava metade dele; era o mesmo que alargar a cidade. Ruas novas, casas e casas, tudo isso rendia mais que a simples vista da água movediça e sem préstimo. [Aparentemente trata-se de ironia, mas Machado mal imaginava que um dia uma faixa da baía seria aterrada, sim, para a construção de um parque!] (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 25/2/1894)
Catastrofismo
Um jornal desta Corte deu, há dias, aos seus leitores uma notícia tão grave quão sucinta. É nada menos que a predição de uma catástrofe universal. Diz a folha que o professor Newmager, de Melbourne, prediz que em 1865 um cometa passará tão próximo à terra, que esta corre sérios riscos de perecer. (“Ao Acaso”, Diário do Rio de Janeiro, 3/7/1864)
Chineses, capacidade de trabalho
Depois, o trabalho. Que outro bicho humano iguala o Chim [chinês]? Um cego, entre nós, pega da viola e vai pedir esmola cantando. Ora, o padre João de Lucena refere que na China todos os cegos trabalham de um modo original. São distribuídos pelas casas particulares e postos a moer arroz ou trigo, mas de dois em dois, “porque fique assim a cada um menos pesado o trabalho com a companhia e conversação do outro”. Os aleijados, se não têm pernas, trabalham de mãos; os que não tem braços, andam ao ganho com uma cesta pendurada ao pescoço, para levar compras às casas dos que os chamam, — ou servem de correio a pé. Aproveita-se ali até o último caco de homem. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 18/9/1892)
Cruzeiro como nome da nossa moeda
Tem a Inglaterra a sua libra, a França o seu franco, os Estados Unidos o seu dólar, por que não teríamos nós nossa moeda batizada? Em vez de designá-la por um número, e por um número ideal – vinte mil-réis – por que lhe não poremos um nome – cruzeiro – por exemplo? [...] Um cruzeiro, cinco cruzeiros, vinte cruzeiros. [A unidade monetária brasileira viria a receber o nome sugerido por Machado de Assis em 5 de outubro de 1942.] (“Bons Dias”, Gazeta de Notícias, 30/3/1889)
Desenvolvimento do Brasil, obstáculo ao
Mercê de Deus, não é capacidade que nos falta; talvez alguma indolência e certamente a mania de preferir o estrangeiro, eis o que até hoje tem servido de obstáculo ao desenvolvimento do nosso gênio industrial. E pode-se dizê-lo, não é uma simples falta, é um pecado ter um país tão opulento e desperdiçar os dons que ele nos oferece, sem nos prepararmos para essa existência pacífica de trabalho que o futuro prepara às nações. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 1/12/1861)
Espiritismo
Há muito que os espíritas afirmam que os mortos escrevem pelos dedos dos vivos. Tudo é possível neste mundo e neste final de um grande século. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 13/9/1896)
Evangelho do Diabo, versículos 20 e 21
“20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e donde os ladrões os tiram e levam.
“21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde nem a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 4/9/1892)
Feminismo
Eu quisera uma nação, onde a organização política e administrativa parasse nas mãos do sexo amável, onde, desde a chave dos poderes até o último lugar de amanuense, tudo fosse ocupado por essa formosa metade da humanidade. O sistema político seria eletivo. A beleza e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos cargos do Estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito de votar. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 21/11/1861)
Guanabara
Tudo pode acontecer. Um dia, quem sabe? Lançaremos uma ponte entre esta cidade e Niterói, uma ponte política, entenda-se, nada impedindo que também se faça uma ponte de ferro. [A ponte Rio-Niterói foi inaugurada em 1974.] (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 7/6/1896)
Inglês
Li até, que um condenado à morte, perguntando-se-lhe, na manhã do dia da execução, o que queria, respondeu que queria aprender inglês. Há de ser invenção; mas achei o desejo verossímil, não só pelo motivo aparente de dilatar a execução, mas ainda por outro mais sutil e profundo. A língua inglesa é tão universal, tem penetrado de tal modo em todas as partes deste mundo, que provavelmente é a língua do outro mundo. O réu não queria entrar estrangeiro no reino dos mortos. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 25/6/1893)
Inverno
Eu adoro o frio: talvez por ser filho dele; nasci no próprio dia em que o nosso inverno começa. [Machado nasceu em 21 de junho de 1839.] (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 1/8/1893)
Lei Áurea
Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 14/5/1893)
Pessimismo
Quem põe o nariz fora da porta, vê que este mundo não vai bem. A Agência Havas é melancólica. Todos os dias enche os jornais, seus assinantes, de uma torrente de notícias que, se não matam, afligem profundamente. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 6/10/1895)
Século XX
Que inveja que tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX! Que belas coisas que ele há de dizer, erguendo-se na ponta dos pés, para crescer com o assunto, todo auroras e folhas verdes! Naturalmente maldirá o século XIX, com as suas guerras e rebeliões, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo, coisas que não trará consigo o século XX, um século que se respeitará, que amará os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ciência, que é ofício de pacíficos. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 6/1/1895)
Xadrez [jogo do qual Machado foi aficionado]
[...] o xadrez, um jogo delicioso, por Deus! imagem da anarquia, onde a rainha come o pião, o pião come o bispo, o bispo come o cavalo, o cavalo come a rainha, e todos comem a todos. Graciosa anarquia, tudo isso sem rodas que andem, nem urnas que falem! (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 25/2/1894)
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