Retrato (óleo sobre tela) do poeta francês François de Malherbe (1555-1628) de 1822 por Robert Lefevre
CONSOLATION À M. DU PÉRIER SUR LA MORT DE SA FILLE / CONSOLAÇÃO AO SENHOR DU PÉRIER PELA MORTE DE SUA FILHA
Poema original completo de François de Malherbe + tradução e notas explicativas de Ivo Korytowski
INTRODUÇÃO
Antes do advento da penicilina e dos antibióticos em geral, a morte prematura de crianças não era incomum, e os casais tinham vários filhos porque contavam com essa possibilidade. Se você percorrer os meandros dos cemitérios mais antigos, deparará com túmulos de crianças, e num morrinho do Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, esconde-se o “Cemitério dos Anjinhos”, covas rasas de crianças, não identificadas, como mostra um vídeo do autor desta tradução disponível no YouTube.
Para consolar seu amigo François du Périer pela morte de sua filha Marguerite aos cinco anos, o poeta François de Malherbe escreveu, em 1599, um dos mais célebres poemas do idioma francês, intitulado “Consolation à M. du Périer sur la mort de sa fille” (“Consolação ao Senhor du Périer pela morte de sua filha”), cujos versos “Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses, / L’espace d’un matin” popularizaram-se. No século XIX os escritores, quando queriam dizer que algo era fugaz, passageiro, diziam que durou como “as rosas de Malherbe”. O próprio Machado de Assis valeu-se amiúde dessa comparação, por exemplo, na crônica em O Futuro de 30 de novembro de 1862 quando escreveu: “Durarão as nossas palestras o intervalo de um charuto, mais infelizes nisto que as rosas de Malherbe.”
O poema compõe-se de 21 estrofes de quatro versos, os versos pares alexandrinos (12 sílabas, com acentos na sexta e décima-segunda) e os ímpares com metade disto, ou seja, hexassilábicos. Em alguns sites da Internet o poema está truncado, tendo sido eliminadas aquelas estrofes que fazem referências à mitologia ou história. Aqui está a versão original completa seguida de sua tradução para o português (pela primeira vez, ao que me consta), obedecendo à métrica e esquema rímico do original.
CONSOLATION À M. DU PÉRIER SUR LA MORT DE SA FILLE, de FRANÇOIS DE MALHERBE
Ta douleur, Du Périer, sera donc éternelle,
Et les tristes discours
Que te met en l’esprit l’amitié paternelle
L'augmenteront toujours?
Le malheur de ta fille, au tombeau descendue
Par un commun trépas,
Est-ce quelque dédale où ta raison perdue
Ne se retrouve pas ?
Je sais de quels appas son enfance était pleine,
Et n’ai pas entrepris,
Injurieux ami, de soulager ta peine
Avecque son mépris.
Mais elle était du monde, où les plus belles choses
Ont le pire destin;
Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses,
L’espace d’un matin.
Puis quand ainsi serait que, selon ta prière,
Elle aurait obtenu
D’avoir en cheveux blancs terminé sa carrière,
Qu’en fût-il advenu?
Penses-tu que, plus vieille, en la maison céleste
Elle eût eu plus d’accueil,
Ou qu’elle eût moins senti la poussière funeste
Et les vers du cercueil?
Non, non, mon du Périer; aussitôt que la Parque
Ôte l’âme du corps,
L’âge s’évanouit au-deçà de la barque,
Et ne suit point les morts.
Tithon n’a plus les ans qui le firent cigale,
Et Pluton aujourd’hui,
Sans égard du passé, les mérites égale
D’Archemore et de lui.
Ne te lasse donc plus d’inutiles complaintes;
Mais, sage à l’avenir,
Aime une ombre comme ombre, et des cendres éteintes
Eteins le souvenir.
C’est bien, je le confesse, une juste coutume,
Que le cœur affligé,
Par le canal des yeux vidant son amertume,
Cherche d’être allégé.
Même quand il advient que la tombe separe
Ce que nature a joint,
Celui qui ne s’émeut a l'âme d'un barbare,
Ou n’en a du tout point.
Mais d’être inconsolable, et dedans sa mémoire
Enfermer un ennui,
N’est-ce pas se haïr pour acquérir la gloire
De bien aimer autrui?
Priam, qui vit ses fils abattus par Achille,
Dénué de support
Et hors de tout espoir du salut de sa ville,
Reçut du réconfort.
François, quand la Castille, inégale à ses armes,
Lui vola son Dauphin,
Sembla d’un si grand coup devoir jeter des larmes
Qui n’eussent point de fin.
Il les sécha pourtant, et comme un autre Alcide
Contre fortune instruit,
Fit qu’à ses ennemis d’un acte si perfide
La honte fut le fruit.
Leur camp, qui la Durance avait presque tarie
De bataillons épais,
Entendant sa constance eut peur de sa furie,
Et demanda la paix.
De moi, déjà deux fois d’une pareille foudre
Je me suis vu perclus,
Et deux fois la raison m’a si bien fait résoudre
Qu’il ne m’en souvient plus.
Non qu’il ne me soit grief que la terre possède
Ce qui me fut si cher;
Mais en un accident qui n’a point de remède,
Il n’en faut point chercher.
La mort a des rigueurs à nulle autre pareilles;
On a beau la prier,
La cruelle qu’elle est se bouche les oreilles,
Et nous laisse crier.
Le pauvre en sa cabane, où le chaume le couvre,
Est sujet à ses lois;
Et la garde qui veille aux barrières du Louvre
N’en défend point nos Rois.
De murmurer contre elle et perdre patience
Il est mal à propos;
Vouloir ce que Dieu veut est la seule science
Qui nous met en repos.
CONSOLAÇÃO AO SENHOR DU PÉRIER PELA MORTE DE SUA FILHA, tradução de IVO KORYTOWSKI
Tua dor, Du Périer, será pois imortal,
E o triste padecer
Que na alma tua pôs o amor paternal
Não vai esmorecer?
O infortúnio da filha, ao túmulo descida,
Pela morte vulgar,
Seria um labirinto onde a razão perdida
P’ra sempre vai penar?
Sua infância, sei bem, abundava em encantos,
E não é meu intento,
Inconsolado amigo, aliviar o teu pranto
Ignorando o tormento.
Mas ela era do mundo onde as coisas formosas
Têm u’a sina malsã;
Sendo rosa, viveu o que vivem as rosas,
Uma breve manhã.
Mas, tendo sido ouvido teu tristonho orar,
Tivesse ela obtido
Com os cabelos brancos a vida deixar,
Que teria ocorrido?
Pensas que, se mais velha, na morada célia,1
Melhor a recepção?
Ou menos sentiria a poeira funérea
E os vermes do caixão?
Não, meu bom Du Périer, no momento em que a Parca2
Tira as almas dos corpos
A idade já não existe para cá da barca3
E não mais segue os mortos.
Titônio já não tem a idade da cigarra,4
E atualmente Plutão,5
Sem contar o passado, os méritos iguala
De Arquemoro e do ancião.6
Não te deixes vencer por lamúrias baldadas
Mas com discernimento
Ama a sombra qual sombra, e das cinzas caladas
Afasta o pensamento.
É um costume bem justo, devo confessar,
Que o coração dorido,
Pelas lacrimais vias vertendo o penar,
Procure seu alívio.
Ainda que aconteça que a tumba separe
O que o mundo juntou,
Tem barbárie na alma o ser que não se abale,
Ou sem alma ficou.
Mas não se consolar e encerrar na memória
Uma incessante mágoa,
Seria se odiar para adquirir a glória
De amar outra pessoa?
Príamo, cujos filhos Aquiles matou,7
Tristonho e abandonado,
Vendo que sua cidade ao final se salvou,
Sentiu-se consolado.
Francisco, ao ver Castela, inferior em poder,
Roubar o seu Delfim,8
Por um tão rude golpe devia verter
As lágrimas sem fim.
Mas conseguiu secá-las e, qual outro Alcides,9
Do fado se vingou,
E aos inimigos seus um ato tão terrível
Vergonha provocou.
O campo do adversário, devido ao Durance
Sem batalhões compactos,10
Temendo aquela fúria, sentindo a constância,
Assinou um tratado.
Eu próprio, por duas vezes, por um raio intenso
Já me vi atingido,
Nas duas ocasiões me levou o bom senso
A esquecer o ocorrido.
Não que não me abale que possua o chão
O que foi tanto amado,
Mas tudo o que acontece sem ter solução
Está solucionado.
A nada se assemelha a morte em seus castigos;
Podemos suplicar,
Mas em sua crueldade ela tampa os ouvidos
E nos deixa chorar.
O pobre na cabana com teto de palha,
‘Stá sujeito às suas leis,
E quem deve guardar do palácio a muralha
Dela não livra os reis.
Murmurar contra ela e perder a paciência,
Em nada nos acalma;
A vontade de Deus é a única ciência
Que dá paz à noss’alma.
NOTAS
1. Célio = celeste. As exigências da métrica por vezes obrigam o tradutor a lançar mão de palavras menos usuais.
2. As Parcas ou Moiras eram as três divindades da mitologia que fiavam, desenrolavam e cortavam os fios das vidas humanas, determinando assim a duração da vida.
3. A barca de Caronte, que conduzia os mortos para o Hades.
4. Titônio, príncipe troiano, obteve de Zeus a imortalidade, mas esqueceu de pedir a eterna juventude. Decrépito, acabou sendo transformado pela Aurora em cigarra.
5. Plutão é o deus do Hades, o mundo dos mortos.
6. Arquemoro foi o apelido de Ofeltes, filho de Licurgo, rei da Nemeia, morto na infância por uma serpente. Como no Além a idade com que morremos já não conta, sob este aspecto o imortal Plutão tem tantos méritos quanto o ancião Titônio ou o prematuramente falecido Arquemoro – foi assim que entendi esta estrofe.
7. Príamo, rei de Troia. Aquiles, herói da Guerra de Troia, personagem central da Ilíada.
8 A morte súbita, em 1536, do delfim (príncipe herdeiro) Francisco, filho do rei Francisco I, fez com que se suspeitasse de ter sido envenenado pelo inimigo Carlos V, imperador do Sacro-Império Romano Germânico, herdeiro por parte de mãe do reino de Castela, entre outros.
9 Alcides é um dos nomes de Hércules.
10 O Durance, mais importante rio da Provença, outrora temido por suas enchentes, que no poema dispersaram as tropas adversárias.