Espelho do Príncipe é o primeiro livro de memórias do diplomata, poeta consagrado, ensaísta e estudioso da história e cultura africana (com que teve contato mais íntimo como embaixador brasileiro na Nigéria e Benim) Alberto da Costa e Filho. Abrange o período da infância em Fortaleza (com viagens para fazendas de familiares no interior do Ceará) e o início da adolescência no Rio de Janeiro. Embora André Seffrin o enquadre como um livro “que nasceu para figurar entre os clássicos do gênero memorialístico” e José Paulo Paes afirme que com esta obra o autor “entra no memorialismo brasileiro pela estrada real, a que leva Joaquim Nabuco a Pedro Nava”, não é um livro de memórias convencional, já que é narrado em terceira pessoa, como se fosse uma obra de ficção, em que reconhecemos o autor no personagem central chamado “o menino” – daí o subtítulo “ficções da memória”. E, a não ser que o autor tenha memória fotográfica, dado o detalhamento com que descreve alguns acontecimentos, é possível que tenha “inventado” alguma coisa para completar eventuais lacunas. Afinal, como diz José Paulo Paes na “Apresentação” do livro, “estas são memórias de poeta, e em poeta que se preze o respeito pelo factual não pode excluir o gosto do ficcional […]”.
A obra é dividida em 130 capítulos numerados e sem títulos que, sem se alongarem demais, narram episódios completos, como se fossem crônicas independentes. A continuidade entre um capítulo e o próximo é tênue. Nas palavras de André Seffrin em "A Memória Acesa como um Círio Perfeito", "fotogramas densos de música e cor [...] que se desenvolvem em contraponto, em episódios que se desdobram ou enovelam". E como seria de esperar de um poeta, a prosa do autor está plena de poeticidade, com trechos de pura prosa poética.
Reza um ditado que “uma imagem vale por mil palavras”, mas existem uns raros autores cujo poder de descrição é tamanho que conseguem “pintar quadros” valendo-se da linguagem. O exemplo clássico é Balzac, mas Alberto também se enquadra nesse privilegiado grupo, como demonstra no capítulo 36 que descreve a estrutura do bonde elétrico, cujo ponto final ficava próximo da “casa do menino” (“Ao chegar ao fim da linha, motorneiro e cobrador desciam do veículo e desengatavam do fio elétrico, com o puxar de uma corda, a rodinha que rematava a longa haste metálica presa ao centro do teto do bonde. Em seguida, correndo ao redor deste, faziam-na girar até a posição oposta, para habilmente de novo inserir na canelura da pequena roldana o cabo elétrico.”) e no capítulo 46 que descreve o jogo de bolas de gude.
Embora vivesse sua dose de sofrimentos na infância e adolescência – a luminosidade solar provocava ataques frequentes de enxaqueca (com que começa o livro: “O menino sentia o sol na pálpebra. Doía-lhe a cabeça. Era como se uma colher lhe escavasse a órbita espicaçada pela luz, para trazer, na concha, o olho”); o pai, poeta conhecido, autor da letra do hino do Piauí, que transmitiu ao filho os rudimentos da poesia, vivia doente em casa, na cadeira de braços, livro aberto nas mãos, lendo ou fingindo que lia; e a sensibilidade exacerbada do menino fazia com que sofresse com o abate caseiro de animais (“A visão da moça a matar a galinha frequentou a sua infância”) – não guardou o ressentimento que vemos no Infância do Graciliano Ramos. Os acontecimentos do cotidiano têm como pano de fundo os conflitos daquela conturbada época (Guerra Civil Espanhola, seguida pela Segunda Guerra Mundial, acompanhadas pelo rádio de ondas curtas, com torcidas para um ou outro lado). No livro, desfilam pelas lembranças do autor uma profusão de primos(as), sobrinhos(as), cunhados(as), etc., membros da vasta família descendente de Antônio José da Costa e Silva, desembarcado no século XVIIII no Maranhão.