Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire (resenha)

Voltaire

Hoje vou falar sobre o famoso conto filosófico “Cândido ou o Otimismo” de Voltaire. Na verdade, é mais longo que um conto, pode ser classificado como novela, que não é a novela da televisão, o folhetim, e sim um texto literário intermediário entre o conto e o romance. Mas muitos chamam de “conto filosófico”, portanto aqui vou usar esta designação.


Mas antes umas pinceladas sobre o autor, Voltaire, pseudônimo de François-Marie Arouet. Voltaire foi um desses chamados filósofos iluministas, filósofos que, nos séculos XVII e XVIII, defendiam as ideias, revolucionárias para a época, que deram origem ao Estado liberal democrático moderno: ideias de democracia, separação entre religião e Estado, predomínio da razão sobre a fé, liberdade de crença, essas ideias então subversivas hoje consideradas normais pelas pessoas sensatas. Vocês podem ver o verbete sobre Voltaire na Wikipédia.


Li esses contos filosóficos do Voltaire quando era novinho, sim, porque já fui novinho, ou vocês acham que nasci com estes cabelos grisalhos? Os contos filosóficos de Voltaire são geniais, e nem são difíceis de ler. Mesmo no original francês são relativamente fáceis de ler. A linguagem de Voltaire não é rebuscada.


Um desses contos filósofos chama-se “Micrômegas”, que é uma contradição, porque micro significa pequeno e mega, grande. É uma espécie de precursor da ficção científica: a história de um habitante de um planeta da estrela Sírius que, junto com um morador de Saturno, vem visitar a nossa Terra. Ao chegarem em nosso humilde planeta a primeira impressão que têm é de que “este astro é tão mal construído, tão irregular, tem uma forma que me parece ridícula! Aqui tudo parece estar em pleno caos”. “Na verdade, o que me faz crer que não existe ninguém aqui é que me parece que gente de bom senso não haveria de querer morar aqui.” Mas depois eles veem que estão enganados e travam contato com os terráqueos. E tudo termina com uma grande zoação às intermináveis discussões filosóficas a que os homens se entregavam. O siriano, que é um gigante em relação à pequenez dos humanos (ele mede oito léguas de altura!), fica “um pouco agastado de ver que os infinitamente pequenos tinham um orgulho infinitamente grande”!


Mas o assunto deste ensaio é o “Cândido”. “Cândido” é outra grande zoação. O que ele zoa é a tese do filósofo e matemático alemão Leibniz, defendida em seu Ensaio da Teodiceia, de que este nosso mundo é o melhor dos mundos possível. Como Leibniz chega a essa conclusão não sei, nunca li a Teodiceia. Mas o que significa “teodiceia”? É uma palavra criada por Leibniz a partir do grego Θεοũ δίκη, justiça divina. É uma tentativa de explicar como é possível que Deus, com todo seu poder e bondade, permite a existência do mal no mundo. O problema do mal é um problema filosófico espinhoso e insolúvel do qual já se ocuparam os gregos antigos. Tem um pensamento de Epicuro que acho de uma lógica impecável (e olha que foi dito uns três séculos antes de Cristo):

 

Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer, que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede? (“Antologia de Textos de Epicuro”, tradução de Agostinho da Silva, coleção “Os Pensadores”, volume V, 1973)

 

Claro que uma teoria de que este nosso mundo é o melhor dos mundos possível, em vista das calamidades recorrentes que o assolam, não escaparia incólume à verve, à ironia do grande Voltaire. Cândido, em suma (eu não vou contar a história nos seus detalhes para não estragar a sua leitura) é um jovem que vive num castelo da Vestfália e, tendo sido ensinado pelo seu mestre Pangloss, um leibniziano, de que não pode existir mundo melhor do que este, é expulso do castelo por ter dado um beijo na filha do barão. Ele sai por este mundo afora e tem sua cândida crença posta à prova por uma série de catástrofes com que vai se deparando em sua jornada. Recrutado pelas tropas búlgaras, testemunha os massacres da guerra; chega em Lisboa no dia do terremoto que destruiu a cidade; vem para a América do Sul, onde conhece a lendária terra do Eldorado; percorre a Europa; vai parar em Constantinopla. Um livro de viagens também, uma delícia de livro. Depois de tanta errância chega à conclusão de que a melhor coisa é cultivarmos nossos jardins. Leiam o livro!


O interessante é que, com todas as tragédias que acometem nossos heróis, o filósofo Pangloss não perde sua crença na maravilha do mundo. É como esses esquerdistas que, com todas as tragédias que ocorreram historicamente nas tentativas de implantação do socialismo, continuam acreditando na viabilidade do socialismo. Crença é uma coisa estranha. Vamos terminar este ensaio citando a fala final de Pangloss:

 

– Todos os acontecimentos – dizia às vezes Pangloss a Cândido – estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da senhorita Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra do Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache.