Efígie de Balzac: Medalhão por David d'Angers
Existem escritores que florescem na juventude (alguns para viverem vidas breves, como os poetas românticos brasileiros), enquanto outros despontam na maturidade – caso do lusitano Saramago, do carioca Helio Brasil e do genial memorialista brasileiro Pedro Nava, que publicou o primeiro volume de suas memórias aos 69 anos. Por outro lado, existem escritores que a gente gosta de ler na juventude, geralmente os românticos, que abordam os sentimentos elevados – Victor Hugo é um bom exemplo – enquanto outros escritores mais calcados na dura realidade requerem certa “maturidade” do leitor. É o caso de Balzac, que só agora, na casa dos sessenta anos, aprendi a realmente apreciar. Porque Balzac é um escritor por demais realista, e os jovens preferem sonhar.
Balzac foi o maior romancista de todos os tempos? Pelo menos no quesito volume da obra, foi o maior da era pré-máquina de escrever/computador!
Sua Comédia Humana – segundo Paulo Rónai “a maior fusão já conseguida da literatura com a vida real” (“A Vida de Balzac”, Volume 1 da Comédia Humana) – compõe-se de 91 romances e novelas. Novela no sentido de um texto ficcional maior que o conto mas menor que o romance. Nada a ver com o folhetim televisivo. São mais de 13 mil páginas (na edição francesa em eBook da editora Librofilio vendida na Amazon), todas escritas a mão, na calada da noite, já que Balzac virava as noites escrevendo, a força de muito café. Dizem que para não ser interrompido por importunos, entre eles cobradores de dívidas. Eu que trabalhei três décadas como tradutor em casa sei como é difícil se concentrar na tarefa sem ser interrompido pelo telefone, filho, vizinhos, o diabo a quatro. Imagine: a cada não sei quantas palavras tinha que levar a pena ao tinteiro para repor a tinta. A caneta-tinteiro com um reservatório de tinta ainda não se disseminara.
Dizem que Balzac é o pai do realismo. Mas ele não é realista no sentido de denunciar as mazelas sociais, como faz um Dickens. O projeto de Balzac é retratar pura e simplesmente a sociedade ou, nas palavras de Paulo Rónai, “reproduzir a vida contemporânea com toda a sua riqueza de costumes e de tipos”. Balzac é o pintor, o fotógrafo da sociedade. Só que em vez de imagens usa letras, palavras, frases. Balzac é realista no sentido de que descreve com minúcias de um documentário do cinema os mais variados aspectos da realidade: mundo boêmio, dos jornalistas e intelectuais, da prostituição de luxo, financeiro, jurídico, do funcionalismo público, etc. Nesse sentido é mais realista do que os demais escritores ditos realistas, Tolstói, Dickens, o Machado da segunda fase, ao mostrar a mesquinhez do espírito humano e a força do dinheiro. E se existem duas coisas que movem o mundo, são elas sexo & dinheiro.
O dinheiro é uma obsessão em Balzac: ao apresentar um personagem, Balzac costuma deixar claro qual sua renda anual. Balzac traça perfis magistrais de avarentos (o pai de Eugénie Grandet), usurários (Gobseck, “filho de uma judia e de um holandês”), banqueiros (Nucingen), homens de negócios falidos (César Birotteau), credores que lançam mão da astúcia para cobrar de seus devedores (Cérizet). “Seus livros, em que pela primeira vez o dinheiro desempenha o papel dominante que efetivamente lhe cabe na realidade moderna, estão cheios de transações comerciais e empreendimentos industriais descritos em seus menores detalhes” (Paulo Rónai, “A Vida de Balzac”). Não à toa Engels, em carta a Margaret Harkness de abril de 1888, afirmou ter aprendido mais com Balzac sobre os pormenores econômicos do que com todos os historiadores, economistas e estatísticos (“[...] he groups a complete history of French Society from which, even in economic details [...] I have learned more than from all the professed historians, economists, and statisticians of the period together.”)
Sua visão do avarento é exposta à perfeição neste trecho do romance de 1833 Eugénie Grandet:
Os avarentos não acreditam numa vida futura, o presente é tudo para eles. Esta reflexão joga uma horrível clareza sobre a época atual em que, mais que em qualquer outro tempo, o dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Instituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspira para solapar a crença numa vida futura, sobre a qual o edifício social se apoia há mil e oitocentos anos. Atualmente, a sepultura é uma transição pouco temida. O amanhã que nos esperava além do Requiem foi transportado para o presente. Chegar per fas et nefas [por todos os meios] ao paraíso terrestre do luxo e das vaidosas alegrias, petrificar o coração e macerar o corpo em busca de bens passageiros como outrora se suportava o martírio em busca dos bens eternos, eis o pensamento geral. Pensamento que, aliás, está escrito em toda parte, até nas leis, que perguntam ao legislador: “Que pagas?” em vez de indagar: “Que pensas?” Quando essa doutrina tiver passado da burguesia ao povo, que será do país?
Balzac também é realista no sentido de ser dotado de um poder descritivo tão poderoso e detalhado que poderíamos dizer que ele pinta quadros literários. No que tange às pessoas, além de pintar seus retratos físicos, penetra em seu mundo mental com a perspicácia do psicólogo. Mas assim como Machado, Balzac tem um pé no romantismo. Não só escreveu romances fantásticos dignos de um E.T.A. Hoffmann (aqui vem à mente A pele de onagro), como em certas obras descreve amores quintessencialmente românticos, assexuados: o do príncipe veneziano Emílio pela sublime Massimilla Doni (expondo-o a ser seduzido por uma diva da ópera, o lado realista da história) ou do “filho maldito” (l’enfant maudit) pela delicada Gabriela, que não é a cravo e canela, compondo uma das mais belas páginas de amor platônico da literatura universal.
Na verdade, Balzac é um escritor completo, que domina variados gêneros: o romance histórico (como Les Chouans/A Bretanha em 1799), o romance de fundo místico (Louis Lambert, Séraphita), o ensaio à Montaigne (como Physiologie du mariage/Fisiologia do casamento), o conto picaresco (Contes drolatiques), o romance epistolar (Mémoires de deux jeunes mariées/Memórias de duas jovens esposas), o romance religioso (Jésus-Christ en Flandre/Jesus Cristo em Flandres), o romance “musical” (Gambara e Massimilla Doni). Mas predomina o “estudo de costumes” realista.
É comum acusar Balzac de escrever em excesso para suprir suas necessidades de dinheiro e tachar sua obra como desigual, com romances ou novelas melhores e piores, alguns até ruins. Ele tem seus altos e baixos, mas a grande maioria de sua obra é de uma qualidade literária excepcional. Se você sair daquelas obras mais badaladas, A mulher de trinta anos, O pai Goriot, e explorar os textos menos conhecidos, vai se surpreender. Por exemplo, em Adeus, temos uma descrição da trágica retirada das tropas napoleônicas das estepes geladas da Rússia digna de um Guerra e paz de Tolstói. Em O primo Pons lemos uma das histórias mais pungentes da ação predadora da ambição desmedida sobre um homem frágil e sensível, amante da música. Aliás, Balzac fez questão de aprender sobre música para melhor poder abordá-la em textos como Gambara (a história de um compositor genial mas incompreendido) e o já citado Massimilla Doni. Em Adeus temos a história de um oficial que, movido por uma antiga paixão, tenta resgatar uma mulher da loucura a que os sofrimentos da guerra a atiraram. Mas confesso que três de seus romances não li até o fim, enjoei e abandonei no meio: Les Employés ou la Femme supérieure/Os funcionários), com suas maçantes intrigas de “repartição pública” que conheci tão bem nos meus anos de Rede Ferroviária Federal; Les Chouans/A Bretanha em 1799, com tantos personagens que a certa altura eu já não sabia mais quem era quem; e Séraphîta/Seráfita, com sua overdose de misticismo swedenborgiano.
Interessante na Comédia Humana é que um mesmo personagem pode aparecer em diversos romances, em diferentes fases da vida. Como na vida real em que você deixa de ver um amigo e, anos depois, de repente o revê.
Um fato sobre Balzac que muita gente ignora é que, conquanto imerso na Europa do século XIX, tinha uma ideia da existência do nosso Brasil. A palavra Brasil (pesquisei no meu ebook) é citada 22 vezes em sua Comédia Humana. É o país de origem do barão Montès de Montejanos em A prima Bete (J’aime le Brésil, c’est un pays chaud), e foi lá que Maximiliano de Longueville enriqueceu, como lemos em O baile de Sceaux. Num momento de crise, Balzac chegou a cogitar em emigrar para cá, tanto é que escreveu para sua amada a condessa Hanska: “Creio que deixarei a França e irei levar meus ossos ao Brasil, num empreendimento louco e que escolhi justamente por causa da sua loucura” , como narra Paulo Rónai na biografia de Balzac que abre a edição por ele organizada da Comédia Humana, até hoje um marco da tradução literária no Brasil.
Uma curiosidade: em 1831 Balzac publicou, numa revista, um artigo sobre D. Pedro II, que com a abdicação do pai se tornava o sucessor do trono. “O brasileiro gosta de rir; em consequência, toma para imperador um cidadão de cinco anos”, escreve Balzac. Esse artigo, descoberto e traduzido para o vernáculo por Victor Wittkowski, foi publicado no jornal Correio da Manhã de 9 de julho de 1944, depois no suplemento Letras e Artes de A Manhã, em 14/3/1948, e atualmente pode ser lido na postagem “Raridade: Texto de Balzac sobre D. Pedro II” do meu blog LITERATURA, RIO DE JANEIRO & SÃO PAULO (procure no Google).
Se Shakespeare foi o maior gênio do teatro e Goethe, da poesia, digamos que Balzac foi o maior gênio do romance. Ou pelo menos, segundo Stefan Zweig, um dos “únicos três grandes romancistas” do século XIX – os outros dois são Dickens e Dostoiévski –, e aqui Zweig faz uma distinção entre o “autor de um romance” e o “romancista”: “Somente o gênio enciclopédico, o artista universal […] que constrói um cosmo inteiro, que habita seu próprio mundo com seus próprios personagens […] é um romancista no sentido último e mais elevado” (Stefan Zweig, Três mestres: Balzac – Dickens – Dostoiévski, ebook, Montecristo Editora, tradução e notas de Renata Russo Blazek). Concordo com Zweig apesar do fato de meu livro favorito sempre ter sido Os miseráveis de Victor Hugo!