A partir de uma perspectiva sancionada por robusta tradição – tradição comumente associada a esta Faculdade –, é estreita a relação entre a literatura nacional, brasileira, tomada como sistema, e o processo de institucionalização do país. Nos joelhos do tripé autor-obra-público, a partir do qual se dá o estabelecimento e a continuidade de uma tradição literária, estão os mediadores que determinam as condições de recepção e circulação – mídia, mercado editorial, sistema educacional (dentro do qual, é claro, a Universidade), entre outros. Se nosso eminente crítico pôde cravar a literatura brasileira como formada entre os séculos XVIII ao XIX; e se pudemos ver ao longo do século XX uma riquíssima produção literária, de qualidade estética (quase) unânime, na qual a crítica literária brasileira se debruçou contente; hoje não raro se ouve, pelas esquinas, salas e arredores do Edifício Antonio Candido – bem como frequentemente se pode ler no jornal –, que a literatura está em processo de falência (se não, dizem, já falida).
Ao mesmo tempo, não deixa de nos acometer a impressão de que floresce a circulação de livros entre diferentes contextos culturais, ou seja, de que crescem tanto a oferta de quanto a demanda por obras produzidas fora dos eixos tradicionalmente dominados por uma dita elite cultural e obras que fogem aos critérios estéticos reproduzidos, às vezes apenas tacitamente, em nossos cursos. Soma-se a isso o fato de que as noções de literatura nacional — ou de nacionalidades múltiplas — já não se sustentam sem fissuras, e as fronteiras se revelam móveis, nômades, ou em disputa.
Reconhecer a falência parece-nos infecundo. Escolhemos pensar que, se hoje circulação e legitimação da literatura seguem mediadas pelo mercado literário e pelas mesmas instituições, há também novos agentes e novos discursos que tensionam o quadro – assim há de ser, se a realidade está também tensionada por novos desafios. Entre o afã de lidar, de forma justa, com os espólios da colonização, da escravatura, da ditadura, e responder às ondas da maré global de autoritarismo e à mercantilização geral da cultura, a Universidade reitera-se como campo de batalha (vocação que se revela com mais contundência em tempos sombrios). No que cabe a nós, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, consideramos urgente que os espaços de diálogo produtivo sejam fortalecidos. Nossos corpos docente e discente apresentam uma arquipelágica diversidade de objetos e modos de pensar e ler a literatura; mais uma razão para mapeá-la, conhecer o fio de suas margens.
A metáfora tem lastro concreto: a demanda pelo reconhecimento da margem como lugar de enunciação, de um lado, e a resistência dos limites já mapeados, de outro, são análogas às condições materiais da contemporaneidade. Há a internet, que torna tudo e todos imediatamente disponíveis, com efeitos drásticos nos sujeitos e na esfera pública; há as crises migratórias, que desvelam o enorme poder institucional das exclusões historicamente postas; há os modos vigentes, antigos e originais, de uso, expropriação, exploração dos territórios (de modo que sejam apagados ou renovados os mecanismos colonizatórios); há, mesmo, a emergência de uma literatura que contesta o cânone estabelecido, levando-nos a considerar se há, no mundo, centros fixos. Nas ex-colônias, por exemplo, escrever é lidar com uma língua herdada, simultaneamente marca de subordinação e espaço de reinvenção. Nesse embate, as literaturas locais transformam a língua, criando repertórios que escapam tanto ao nacionalismo fechado quanto a uma cosmopolitização ingênua.
Assumir a metáfora mapa/margem é assumir o espaço no qual se tensionam produção artística, produção intelectual, noções como centro/periferia, memória nacional, hegemonias globais, experiências pós-coloniais, etc. A crítica se vê, então, desafiada a rever seus modos de operação. Nessa busca, talvez nos caiba multiplicar abordagens, arriscar hipóteses provisórias, atravessar fronteiras disciplinares.
É nesse horizonte que se inscreve a homenagem a Conceição Evaristo neste II Seminário Internacional e XIV Seminário Nacional do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada. Trata-se de um momento histórico, tanto para o reconhecimento da trajetória da autora, já consagrada, quanto para o Departamento, que se enriquece ao celebrá-la em diálogo com seus aportes literários e teóricos.
Seja em forma de romance, com Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória (2006) e Canção para Ninar Menino Grande (2022), seja nos versos de Poemas da recordação e outros movimentos (2017); seja, ainda, nos contos de Olhos d’água (2014), entre outros, a obra de Conceição Evaristo abala as estruturas hegemônicas da literatura e da crítica. Tendo iniciado suas publicações nos Cadernos negros do grupo Quilombhoje, sua literatura é um marco na história literária brasileira. Como pesquisadora, defendeu, em 1996, a dissertação de mestrado intitulada Literatura Negra: Uma Poética de nossa Afro-Brasilidade e, em 2011, a tese de doutorado Poemas malungus, cânticos irmãos, cujo objeto de estudo foi a análise comparativa entre as poéticas de Nei Lopes, Edimilson de Almeida Pereira e do angolano Agostinho Neto.
Tanto em seu trabalho literário quanto em suas pesquisas teóricas, Conceição Evaristo desenvolve o conceito de escrevivência, fundamentado nas narrativas tecidas pela figura excluída da História oficial e do cânone literário: a mãe preta. Essas narrativas, conforme a autora, não são para ninar os da casa-grande, mas para despertá-los de seu sono injusto. Nesse sentido, as linguagens, narrativas, poéticas e epistemologias das escrevivências têm por ponto de partida a amefricanidade e a experiência ficcionalizada da mulher na diáspora negra. Portanto, escrevivências não são escritas de si, mas formas tecidas a partir de uma experiência coletiva ficcionalizada. Como apontou a escritora em aula ministrada em 2025 na Casa Rui Barbosa, o espelho usado não é o de Narciso, voltado para a individualidade, mas o de Oxum, o qual, em lugar de uma autorreferencialidade que leva à morte, confere movimento e dinâmica.
Em diálogo com o conceito da autora mineira, interessa-nos, então, o debate sobre teorias que ampliam e/ou deslocam a concepção de literatura. Convidamos, portanto, o corpo discente e docente a enfrentar concretamente – nos cursos, bibliografias, pesquisas e extensão – os desafios apresentados à crítica literária e à universidade pelo nosso tempo histórico.
Bibliografia
Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul; São Paulo: FAPESP, 2009. 12º ed.
Moretti, Franco. Conjectures on World Literature. New Left Review, 1, pp. 73-81, 2000.
Pereira, Edimilson de Almeida. Entre orfe(x)u e exunouveau: análise de uma estética de base afro-diaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.
Rocha, João Cezar de Castro. Notas iniciais sobre o positivismo pós-moderno, ou: todos os gatos são pardos. Ainda: o vale tudo da crise do sujeito. In: Literatura e artes na crítica contemporânea / Heidrun Krieger Olinto, Karl Erik Schøllhammer, Mariana Simoni, orgs. – Rio de Janeiro :Ed. PUC-Rio, 2016.
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Agradecemos à artista visual Júlia Contreiras pela concessão da imagem de sua obra Sola Fértil (2022): xilogravura sobre papel japonês / matriz perdida / impressões únicas / 140 x 75 cm.