Quando: Terça-feira, 4/11 — 15h-17h
Onde: Sala 14 da Sociais
Mediação: Maurício Reimberg (DTLLC)
Em seu Garotas em tempos suspensos (2022 [2021]), última obra publicada em vida pela argentina Tamara Kamenszain (1947-2021), a escritora problematiza o uso de termos como “poetisa”, “garotas” e “feminicídio”. Em uma escrita que flui entre poesia e ensaio, desierarquizando gêneros, Kamenszain relaciona a história de outras poetisas à sua própria, em uma espécie de “grafia de uma vida atravessada pelas de outras” (Vidal, 2022, p. 64). Sua poesia aponta para a primeira pessoa do plural no feminino, unindo estética e política. Ao insistir no coletivo, a poetisa retoma vozes que, unidas, parecem finalmente poderem ser escutadas. Para a filósofa Audre Lorde (1977), as mulheres foram socializadas para respeitar mais ao medo que às próprias necessidades de linguagem e definição, sendo fundamental “examinar não só a verdade do que falamos mas também a verdade da linguagem em que o dizemos” (p. 19). Nesse sentido, se consideramos que a primeira pessoa do plural no feminino constitui a própria forma daquilo que Kamenszain escreve, é possível aproximar sua poesia da formulação de assembleia elaborada por Judith Butler (2018): “quando as pessoas se reúnem nas ruas, uma implicação parece clara: elas ainda estão aqui e lá; elas persistem; elas se reúnem em assembleia e manifestam, assim, o entendimento de que a sua situação é compartilhada, ou o começo desse entendimento” (p. 22-23). Ao pensar sobre a produção literária contemporânea de autoras como Tamara Kamenszain, formulo então uma pergunta: com suas vozes que ao mesmo tempo são individuais e se somam em coletivos, quais as formas possíveis para que as mulheres comecem a contar aquilo que antes lhes era impossível (ou proibido) dizer?
Palavras-chave: Violência patriarcal; Tamara Kamenszain; Crítica feminista; Literatura e filosofia; Formas e gêneros literários.
Não se pode propriamente dizer que Elvira Vigna dispensa apresentações. Apesar de ter sido publicada por algumas das maiores editoras do país e resenhada por grandes veículos de comunicação, a autora jamais atingiu um patamar de vendas muito expressivo e até o momento não conta com uma fortuna crítica que se possa considerar vasta. Mesmo no meio literário especializado, o reconhecimento de sua obra permanece aquém do alcance que poderia e eventualmente poderá obter. Em 2012, no Estado de São Paulo, Vinicius Jatobá teceu elogio que nos oferece uma medida: “Elvira Vigna é a melhor ficcionista brasileira viva que só um reduzido número de leitores ouviu falar.” Nascida no Rio de Janeiro em 1947, ao falecer em 2017 nos legou uma dezena de livros de ficção, além de um número pouco maior de títulos infanto-juvenis e considerável colaboração como ilustradora, crítica de arte e jornalista. De suas publicações, podemos destacar Nada a dizer (2010), O que deu para fazer em matéria de história de amor (2012), Por escrito (2014) e Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas (2016). Nesta apresentação, o foco será em Nada a Dizer, com o qual a autora foi agraciada com o prêmio de melhor ficção da Academia Brasileira de Letras. Neste romance Elvira Vigna nos traz uma narradora angustiada com a traição do marido, Paulo, de quem ela busca extrair o máximo de detalhes dos encontros sexuais que teve com a amante, N. As palavras que chegam ao leitor partem portanto de um relato em segunda mão, do pouco ou nada a dizer das confissões a contragosto de Paulo. O escrutínio de fatos inacessíveis para a narradora e a elaboração traumática daquilo que não pode assimilar resultam em um romance circular, incompleto, claudicante. A obra está longe de se reduzir a juízos moralizantes sobre traição conjugal, sendo a narradora a primeira a reconhecer o perigo de soar demasiado banal. O texto desenvolve-se com tensão psicológica, exploração de nuances das relações interpessoais, a dimensão existencial que atinge a narradora e o posicionamento político das personagens. A narrativa em si é traiçoeira, vingando-se ao remodelar o que é relatado por Paulo, desgastando a experiência rememorada à exaustão, deslocando o adultério para o ponto de vista de uma receptora crítica que busca narrar o indizível.
Palavras-chave: Romance brasileiro; Literatura contemporânea; Feminismo; Metalinguagem.
Num artigo recente (Folha de S. Paulo, 28/09/2025), Dirce Waltrick do Amarante articula, muito oportunamente, argumentos de um livro de Lorenzo Mammì que discute tensões entre arte e indústria cultural. Parte da comunicação esboçada a seguir deve-se a uma reflexão a esse respeito, questionando condições de produção e circulação da literatura contemporânea. Hoje, no Brasil, a proliferação de “festivais literários” é inversamente proporcional aos índices de leitura e ao alcance da literatura de ficção. O ambiente editorial privilegia a recuperação (por demais necessária) de vozes que até poucos anos atrás eram sujeitas a violenta exclusão; assim como a exploração comercial dos lugares de fala. O “nicho” tornou-se mainstream. Ao lado desse ingrediente sociológico, ganham destaque autores-revelação, que são como campeões nos quais grupos econômicos de influência transnacional resolvem apostar suas fichas e seus departamentos de marketing. Há todo um “ecossistema” de reprodução dessa literatura modelar: planos de promoção de editoras; agentes literários atuando nas feiras de negócios; podcasters e influenciadores; clubes do livro; festivais literários; eventos de captação de público em bibliotecas públicas; veículos onde se publicam resenhas na cada vez mais rarefeita imprensa escrita. Esse sistema se deixa resumir num instantâneo: as famigeradas “oficinas de escrita criativa”, um popularizado oxímoro em que se ensina a mecânica ficcional sob a tutela de modelos de sucesso – além de serem, não de somenos, um recurso de subsistência aos autores que as ministram. Ainda que em parte (e admitidamente) reducionista, o recorte esboçado revela uma dinâmica perfeitamente mapeável de intenções e interesses: uma batalha pela atenção do público leitor. Nessa espécie de sobrevida capitalista, não parece haver muito lugar para a literatura que não seja “nichada” ou encampada por grandes agentes econômicos, que costumam promover novos autores de alegada inédita inventividade ou bem nomes consagrados por trilogias e trajetórias recordistas de romances seriados. Nesse cenário da literatura como consumo, ávida por “novidades” facilmente reconhecíveis, não está excluído que algoritmos refinados venham um dia a comer uma fatia de autoras e autores. Propositivamente: há ainda espaço para uma literatura para além de sua dimensão política? Ela precisa obedecer a preceitos modelares para chegar a ser publicada, eventualmente lida? Ora, autoras e autores continuarão escrevendo, mesmo que não seja para atender a expectativas de mercado ou por um empuxo rumo à sanidade mental, como o fez, talvez, Carlos Sussekind. O que está em xeque é a autonomia da criação artística. E o jogo não acabou.
Palavras-chave: Autonomia artística; Indústria cultural; Dimensão política da literatura.