--- Do internamento à libertação – A saga dos prisioneiros de guerra (POW) alemães em Moçambique ---
( Editado em: 13/09/2024 )
Original publicado no Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira – Volume LXXVIII – Ano de 2020
Altino Silva Pinto *
Jorge Alberto Flores de Almeida Nunes **
Introdução
Menos conhecido do grande público, o longo e penoso caminho percorrido pelos alemães aprisionados em Moçambique, na Grande Guerra, que os conduziu até à metrópole, aos campos de internamento de Peniche e Caldas da Rainha, e de lá, uns tantos até à longínqua Angra do Heroísmo, campos onde permaneceram internados até ao seu repatriamento muito para lá do Armistício, é mote para que neste ensaio, os autores, filatelistas e estudiosos da história postal dos Prisioneiros de Guerra Alemães na Primeira Guerra Mundial, rondando a audácia, se aventurem na revelação de alguns factos históricos quase caídos no esquecimento e que, direta ou indiretamente terão influenciado o destino desses prisioneiros.
Embora outros já antes o tenham feito com detalhe, pelo interesse filatélico e histórico que suscita a correspondência postal a eles associada, não poderia também este ensaio deixar de revisitar o seu estudo e caracterização, fundamentado em parte no que já se conhece da literatura filatélica portuguesa, e sustentando-se onde possível, em peças filatélicas da correspondência postal dos POW e outras, algumas de grande raridade e/ou mesmo únicas, que enriquecem a sua compreensão.
Longe de esgotado o tema, alguns períodos temporais onde a escassez de informação continua notória ficam ainda algo difusos e necessitando de mais aprofundada investigação.
Os campos de concentração/ Depósitos de Prisioneiros
Com o deflagrar da Grande Guerra os navios das várias companhias mercantes alemãs e austríacas procuraram refúgio nos portos dos países que se mantiveram neutrais, entre os quais os de Portugal e seus territórios ultramarinos.
A 23 de fevereiro de 1916, pressionado pelo aliado britânico, o Governo Português aprisiona os 72 navios alemães e 2 austríacos que estavam atracados nos portos portugueses (destes, 6 em Lourenço Marques e 1 na Beira), e com eles as suas tripulações.
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* Licenciado em Medicina, filatelista e articulista especializado em História Postal de Moçambique. Aposentado. Natural de Moçambique.
** Licenciado em Engenharia Eletrotécnica, colecionador e estudioso de História Postal. Diretor de Serviços de Viação e Transportes Terrestres de Angra do Heroísmo. Natural de Angra do Heroísmo.
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Na viagem de mar de Moçambique para Lisboa, que coincidiu com o Natal de 1917, a bordo do “Lourenço Marques”, morreram dois prisioneiros. Este navio – o “Admiral” antes de apresado aos alemães (Figura 1 – In Ilustração Portuguesa, 1917) – terá efetuado nos últimos meses desse ano algumas viagens transportando prisioneiros de Moçambique para Portugal, e nos primeiros meses de 1918, tropas de Portugal para Moçambique.
Figura 1 – O ‘Kronprinz’ e o ‘Admiral’ dois navios apresados aos alemães em 1916 – Os tripulantes do segundo, antes de o abandonarem, tirarem-lhe peças que não podiam ser substituídas em África, mas este inconveniente foi remediado.
Goradas as negociações diplomáticas para que Portugal se mantenha como país neutral, a 9 de março a Alemanha declara-nos guerra, acusando Portugal de estar ao serviço da Inglaterra e ser “vassalo da Inglaterra”, expressão que desencadeou o sentimento de afronta e que levou Portugal a responder, em 4 de abril de 1916, com uma veemente declaração de guerra no Parlamento amplamente apoiada na imprensa, sobretudo através de incitamentos no jornal O Século, acusando os alemães de bárbaros, hunos, etc. e insistindo na sua expulsão do país.
Em Moçambique, os poucos alemães e austríacos que aí viviam, e respetivas famílias, foram aprisionados juntamente com os alemães e austríacos que integravam as tripulações dos navios que estavam acostados nos portos e que foram apresados, e internados em “Depósitos de Prisioneiros” (designação oficial) que, entretanto, se constituíram, concretamente em Lourenço Marques, em Quelimane, na cidade da Beira, mas que foi transferido logo depois para Macequece, em Tete, e em Porto Amélia.
A Alemanha exerceu grande pressão sobre o Governo em relação à forma como estavam a ser tratados 14 prisioneiros militares que tinham sido capturados em combates no território, ameaçando a título de represálias internar 3 portugueses na prisão de uma fortaleza. O Governo cedeu e colocou-os em Peniche. [1]
Em 1917, por acordo como os Aliados, Portugal encerrou os campos de concentração que mantinha em África, e transferiu os prisioneiros para território europeu.
No entanto, em Moçambique nem todos os prisioneiros terão sido transferidos, tendo alguns deles lá permanecido internados até ao fim da Guerra, conforme o demonstra a peça de correspondência escrita por um prisioneiro alemão já no final da Guerra e remetida do campo de Lourenço Marques.
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[1] Pedro Jorge Castro. Artigo publicado na Revista Sábado – edição nº 510, de 6 de fevereiro de 2014-- 2 --
Figura 2 – Carta enviada por prisioneiro de guerra internado em Lourenço Marques
Sobrescrito de carta com inscrição manuscrita – Serviço de Prisioneiros de Guerra – e por isso isento de pagamento de taxa, remetido a cidadão alemão, presumivelmente internado no campo militar de Moshi, na África Oriental Alemã, nesta época sob ocupação das tropas britânicas e aliadas.
Censurada na Repartição de Informações do Quartel General, em Lourenço Marques, seguiu para o circuito postal onde lhe foi aplicado o carimbo de censura civil ‘PASSOU PELA CENSURA’, e o carimbo hexagonal da Estação Central de Lourenço Marques, datado de 2 de outubro de 1918.
Seguiu por via marítima até Mombasa (22/11/1918), daí foi encaminhada para Tanga (08/01/1919) onde lhe foi aplicada a marca retangular a preto, de Censura de Tanga, seguindo por via-férrea para Moshi, onde chegou a 10 de janeiro de 1919.
De realçar a particularidade de entre a data de expedição e a de chegada, já ter terminado a Guerra – 11 de novembro de 1918.
E existem igualmente evidências [2] que, após o final da Guerra, alguns dos prisioneiros, aqueles que eram já residentes em Moçambique, optaram mesmo por continuar a residir em Moçambique.
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Os Depósitos de Prisioneiros em Moçambique
Terão sido 5 os Depósitos de Prisioneiros constituídos em Moçambique, todos nas capitais de distrito, concretamente um em Lourenço Marques, um em Quelimane, um na Beira (mas que foi transferido logo depois para Macequece), um em Tete e provavelmente outro em Porto Amélia, de que não existe registo oficial da sua existência.
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[2] Um dos coautores deste ensaio, natural de Moçambique, e que lá residiu por longo período de tempo, conheceu pessoalmente descendentes de alemães que estiveram detidos em Lourenço Marques, e que continuaram a viver em Moçambique após o fim da Guerra.
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Lourenço Marques – Nesta cidade localizada na baía do mesmo nome, ou Delagoa Bay, nome que lhe davam os ingleses, esteve instalado o 1º Depósito de Prisioneiros, o maior em Moçambique, e também o que esteve ativo por mais tempo.
Situava-se num recinto vedado com fio de arame, com uma área de 26000 m2, junto à Avenida da República, num local conhecido por “pântano”, nome que lhe vinha do tempo em que, antes de ser aterrado, efetivamente o era.
Figura 3 – Barracões construídos no Pântano, destinados a alojar os tripulantes dos navios alemães apresados
In Ilustração Portuguesa, 1917
Figura 3A – Planta do Campo de Prisioneiros Alemães em Lourenço Marques
Por este campo passaram 537 prisioneiros. Desses, 375 eram provenientes dos navios apresados nos portos de Moçambique, sendo 358 tripulantes e 17 passageiros. A estes juntaram-se 109 cidadãos alemães residentes na colónia, internados durante o mês de março de 1916, sendo a grande maioria até ao dia 27. Outros cidadãos, em menor número, tiveram o mesmo destino entre os meses de abril a novembro do mesmo ano.
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Posteriormente e provenientes doutros campos de prisioneiros em Moçambique, 21 vieram transferidos de Tete, 17 de Quelimane e 15 de Macequece e Beira.
A grande maioria dos tripulantes e passageiros internados neste campo foram transferidos para Lisboa, com destino a outros campos, entre 18 de outubro e 23 de dezembro de 1917. Os últimos a deixarem o campo, fizeram-no em outubro de 1918, já perto do final da guerra.
Quelimane – Em Quelimane capital do distrito do mesmo nome funcionou o designado 2º Depósito de Prisioneiros, onde foram aprisionados, nos dias 15 de março, 1 e 15 de abril de 1916, 29 súbditos alemães, incluindo 3 mulheres e 4 crianças, todos eles residentes no território de Moçambique.
Eram na sua maioria empregados comerciais de várias firmas alemãs no Chinde e Quelimane, 1 maquinista, 2 engenheiros e 4 missionários provenientes de Chupanga, Quelimane e Chinde.
Ficaram instalados numa propriedade murada na rua da Segura, pertencente a uma missão religiosa. O pontão “Diu” fundeado no porto da cidade passou a ser considerado um anexo ao Depósito, destinado ao encerramento dos prisioneiros que, pela sua conduta, fosse conveniente separar dos outros internados.
Estes internados foram transferidos primeiro para Lourenço Marques e depois para Lisboa em 24 de setembro e 16 de dezembro de 1917.
Beira – Na cidade da Beira, capital do distrito de Manica e Sofala, que era administrado pela Companhia de Moçambique, foi criado um Depósito de Prisioneiros logo após a declaração de guerra, em março de 1916, situado no bairro do Maquinino, na margem direita do rio Chiveve.
A partir de 11 e até 18 de março de 1916, aí foi internada a maioria dos cidadãos alemães residente na região. No entanto, a 21 de abril, este depósito foi desativado, sendo os prisioneiros transferidos para um novo campo em Macequece.
Macequece – Para os prisioneiros de guerra que saíram do Depósito da Beira em abril de 1916, foi criado o designado por 3º Depósito de Concentrados de alemães, um campo com melhores condições de habitabilidade e em muito melhor clima, em Macequece. A prova de que esta instalação não era provisória reside no facto de que a designação oficial que recebeu era Campo de Concentração de Macequece e não Depósito de Prisioneiros de Macequece.
Situava-se esta povoação a cerca de 25 Km da fronteira com a Rodésia e era escala importante na linha de caminho-de-ferro que ligava a Beira (principalmente o seu porto) à Rodésia – era a principal via de escoamento do hinterland.
O campo encontrava-se dividido em dois setores, e nele foram internados os cidadãos alemães residentes na Beira, alguns vindos de Buzi, Chimezi, Munene, Muza, Revue, Vumba, Manica e também em Bartolomeu Dias,
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Chimoio, Mandigos e Neves Ferreira. De Tete veio apenas um prisioneiro. Os primeiros a chegar foram os residentes na cidade da Beira, logo a partir do dia 21 de abril, e alguns (poucos) mais tarde em julho e outubro.
Figura 4 – Vista parcial de Macequece
Apenas alguns eram tripulantes dos navios mercantes alemães apresados, sendo a maioria engenheiros, cozinheiros, agricultores, empregados e gerentes comerciais, e ainda dois agentes consulares, o da Beira e o de Uganda.
Ficaram instalados nas várias dependências do Quartel da Companhia Indígena, edifício da repartição de minas e edifício da escola Freire de Andrade.
Nestas instalações foram concentrados 60 cidadãos alemães, sendo 17 mulheres e crianças. Estiveram internados desde 21 de abril de 1916 até 17 de abril de 1917, tendo regressado à cidade da Beira [3] onde terão aguardado o transporte para Lisboa, que aconteceu em 11 de outubro e 10 de novembro de 1917.
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[3] Não se sabe ao certo a cidade onde terão permanecido esses cidadãos durante o período de seis meses até à sua transferência para Portugal, não sendo de afastar a hipótese de terem regressado às instalações do Bairro do Maquinino, ou mesmo de terem sido internados a bordo do “Lourenço Marques” que serviu como depósito temporário de prisioneiros.
As muitas peças de censura sobre correspondência civil supervisionada por militares na Beira, precisamente nesse período, poderão ser prova circunstancial e indireta de que havia suporte militar e condições logísticas para os manter na Beira, sendo aqui de especular que possam entretanto ter sido encaminhados para Lourenço Marques, donde partiram para Lisboa, com destino a outros campos, tal como aconteceu com todos os prisioneiros que se encontravam nos outros depósitos em Moçambique, à medida que iam sendo encerrados. Contudo, sendo este o percurso natural tal carece de confirmação por peça ou peças de correspondência desses prisioneiros, que se venham ainda a conhecer.
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Terão sido razões de segurança, que levaram a que este Depósito fosse encerrado em abril de 1917, sendo que, quanto a isso, ousamos afirmar que estariam relacionadas com uma revolta que, entretanto, eclodira na região do Barué, e esse será porventura o nosso contributo inédito ao já publicado sobre o assunto.
A segunda revolta do Barué e a sua repercussão no Campo de Concentração de Macequece:
a) A região geográfica
A região do Barué, na parte central de Moçambique, é limitada ao norte pelo curso do rio Luenha; ao sul pelo curso do rio Pungué, englobando o prazo Gorongoza; a leste por uma grande linha que define os prazos [4]: Massangano e Tambara até ao rio Zambeze; e a oeste pela fronteira da Rodésia. O seu máximo comprimento, medido do Luenha ao Pungué é de 370 km aproximadamente.
Figura 5 - Mapa de Moçambique, com a região do Barué detalhada
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[4] Os conhecidos por prazos da coroa estabelecidos pelos portugueses, no vale do Zambeze, na segunda metade do século XVI, eram unidades políticas onde a classe dominante era formada por mercadores portugueses estabelecidos como proprietários de terras que tinham sido doadas, compradas e até mesmo conquistadas aos chefes locais. Ou por outra, eram territórios concedidos por um período de três gerações aos mercadores portugueses e indianos. A sua transferência era feita por via feminina.
Ao surgirem os prazos, a coroa portuguesa pretendeu nacionalizá-los, outorgando-lhes um estatuto legal e atribuindo aos prazeiros a obrigação de pagarem foros. Portugal pretendeu assim dar aos prazos do vale do Zambeze, o estatuto de feudos portugueses e a natureza da estrutura feudal que dominava a sua sociedade, atuando numa espécie de senhor feudal na colónia.
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b) Os habitantes e a sua organização
Descendentes do Reino do Monomotapa, e após a decadência deste reino, o Barué fortaleceu-se com o comércio de ouro e marfim, o que permitiu adquirir armas e munições e assim manter a sua autonomia.
Com a derrota dos “estados militares” do Vale de Zambeze pelos portugueses, emergiu Barué como único grande reino desta região fora do controlo português, constituindo no final do século XIX o maior centro da atividade anticolonial.
As rebeliões das tribos do Barué, nomeadamente do Bonga em Massangano, que já tantas derrotas militares tinham custado a Portugal, e compreendendo o perigo que o Barué representava a coroa portuguesa solicitou à Companhia de Moçambique que cumprisse as suas obrigações de pacificar a região. Face à incapacidade desta e ao crescimento do poderio do Barué, Portugal decidiu intervir.
Foi assim que João de Azevedo Coutinho comandou a Campanha do Barué em 1902, e com o apoio de tropas europeias venceu a primeira importante revolta da região, derrotando o “invencível” estado do Barué, refugiando-se os seus líderes na Rodésia.
Não tendo a Companhia de Moçambique capacidade financeira para pagar a campanha, nem o pessoal e os meios administrativos suficientes, Portugal manteve informalmente a posse da região desde essa altura.
Por um lado, os “chefes” europeus ao intensificarem a exploração sobre os Baruítas, por outro, os maus tratos e abusos praticados pelos “sipaios” em nome da Companhia de Moçambique, na cobrança do imposto (mussoco), permitidos pelos fracos ou ausentes meios administrativos, levaram a que se degradassem as condições de vida, e aumentasse o latente sentimento de revolta.
Dois outros fatores agravaram a situação e foram as causas da união dos chefes tribais, determinando a segunda revolta do Barué.
c) As causas próximas da revolta
Desde logo, em 1914, quando o Governo Português decidiu mandar construir uma estrada ligando Tete a Macequece atravessando terras do Barué, o que também permitia maior controle destas zonas do interior, e depois o desencadear da Primeira Guerra Mundial com o teatro de operações militares no Norte de Moçambique. Ambas as situações levaram a um recrutamento maciço, coercivo e mal pago de mão-de-obra quer para a construção da estrada, quer como carregadores para o exército em operações no Norte (cerca de 5000), o que envolveu milhares de camponeses e pretendia, eventualmente, recrutar todos os homens capazes da região.
Os principais chefes, Nongwe-Nongwe e Makosa, ultrapassaram as suas rivalidades e reorganizaram o exército, construíram aringas[5] estrategicamente localizadas e prepararam-se para a luta contra os portugueses. Organizaram uma força calculada entre dez a quinze mil homens.
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[5] Campos fortificados, entre os indígenas de África.
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A revolta começou em março de 1917, e rapidamente alastrou até ao distante Zumbo e até Sena, e só terminou já no final de 1917.
d) O enquadramento da revolta na situação militar de Moçambique
Do ponto de vista militar a situação em Moçambique, em 1917, não era tranquilizadora. Tinha havido alguns insucessos militares nas operações no norte de Moçambique. Era patente a deficiente preparação do exército Português, havia já uma percentagem significativa de baixas, principalmente por doença, e a moral das tropas não era elevada, nem valorizada a sua competência pelos comandantes Aliados.
Por outro lado, os exércitos alemães empurrados pelos britânicos e pelos belgas estavam em deslocação para sul, em direção à fonteira norte de Moçambique, aumentando a preocupação de eventualmente a atravessarem e invadirem Moçambique. Isso veio a acontecer em novembro de 1917, numa extraordinária demonstração tática por parte do seu Comandante, General Von Lettow.
Estes acontecimentos explicam o enorme sobressalto que se instalou nos civis e nos militares portugueses quando em março de 1917 explodiu, com violência e várias destruições, a revolta na região do Barué, que alastrou rapidamente até ao Zumbo e que fazia prever desastrosas consequências na já frágil situação de Moçambique.
e) Telegramas de Moçambique com informações sobre a revolta
Não é pois de admirar o teor do telegrama [6], datado de 10 de abril de 1917, remetido pelo Encarregado do Governo-Geral de Moçambique, em Lourenço Marques, para o Ministério das Colónias, onde se manifesta a preocupação pelos acontecimentos no Barué e as suas repercussões, e explicam os constrangimentos da situação que nessa altura se vivia localmente.
Figura 6A – Extrato do telegrama da Direção Geral das Colónias, de 10.04.1917
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[6] Fundação Mário Soares – Dossier “Casa Comum” (pasta 07205.033)
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Deste telegrama, o primeiro a seguir ao início da revolta, cuja primeira página se reproduz parcialmente (Figura 6A), destacam-se alguns excertos:
“(…) Cerca 26 Março receberam-se primeiras informações governador Tete alguns chefes indígenas Barué se haviam revoltado tendo sido abandonado Posto Mungari seguidamente retirada administrador Barué do posto comando Catandica (mais tarde Vila Gouveia) visto revoltosos estar a 25 Kilometros comando. Telegrafou-se imediatamente governador Tete perguntar elementos carecer mandou-se pôr prevenção companhias indígenas Quelimane avançar lancha Sena. (…)”
De seguida o telegrama refere que se prevenira o Administrador da Rhodesia do Sul e o Governador do Nyassa inglês no sentido de vigiarem a sua fronteira não permitindo que os revoltosos entrassem no seu território, e de proceder à sua captura em caso de o invadirem.
“(…) Com comunicações cortadas com Tete Quelimane com lancha Tete destruída (explosão da caldeira) com lancha Sena impossibilitada de navegar (…) impossível saber princípio situação com nitidez enviar socorros. Entretanto chegavam informações rebelião alastrar norte direcção Tete prazos Massangano Inhacatipué. (…)”
O telegrama prossegue relatando as medidas tomadas na mobilização para a região das companhias indígenas, companhias europeias e uma secção de artilharia da bateria mista de Lourenço Marques, bem como de destacamentos da guarda policial da Beira, a quem foram dadas instruções para sufocarem a rebelião.
Chega mesmo a referir que o distrito de Tete estava completamente desguarnecido de armas e munições, que tinham sido enviadas para as operações no norte contra os Macondes.
E continua … – ficou assente guarnecer o sul do Barué, junto ao Pungué, para proteger à distância, o campo de prisioneiros alemães de Macequece, e evitar que possam ligar-se aos revoltosos, o que decerto aproveitariam. Foi recomendada grande vigilância do inimigo.
Prossegue ainda relatando que uma força de cipaios enviada de Tete para Luenha foi obrigada a retirar por falta de munições, como o governador Tete já havia informado. Que o pequeno posto policial de Pungué foi obrigado a retirar devido ao fogo dos revoltosos, factos devidos a ainda não terem chegado forças regularmente organizadas.
Termina o Encarregado do Governo dizendo que irá informando da marcha dos acontecimentos.
Alguns dias depois, conforme telegrama [7], de 14 de abril de 1917, em cópia para a Presidência da Republica, de que se reproduz extrato (Figura 6B), aquele informa que – grande número de revoltosos estão acampados próximo de Pungué tendo atravessado a estrada para Macequece, e que havia boers brancos com os revoltosos.
E prossegue comunicando que – 2 prisioneiros alemães de Macequece tentaram evadir-se, sendo determinada a transferência dos prisioneiros alemães de Tete para Lourenço Marques e de Macequece para a Beira. Está aqui explicita razão do encerramento desses Campos
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[7] Fundação Mário Soares – Dossier “Casa Comum” (pasta 07205.036)
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Figura 6B – Extrato do telegrama da Direção Geral das Colónias, de 14.04.1917
A sul os revoltosos ameaçavam a destruição da linha de caminho-de-ferro da Beira à Rodésia passando por Macequece, chegando a atacar e devastar algumas plantações de europeus, próximas da linha.
Acrescentavam-se várias informações, em forma de boatos, porque não confirmadas, por exemplo, afirmando que alemães comandavam revoltosos no ataque a Chicoa e ao Zumbo. Era pois intenso o clima de instabilidade e de muita apreensão.
Como o Campo de Concentração de Macequece era muito perto da zona sul da região do Barué e era sabido que era diminuta a capacidade de segurança do Campo, não admira que tivesse sido decidido encerrar o Campo de Concentração de Macequece, entre 14 e 17 de Abril, como se comprova pelo teor do telegrama de 14 abril de 1917, sendo os prisioneiros alemães transferidos para a Beira, e havendo notícia que a 1 de junho já estaria encerrado, ficando apenas um Posto Militar que se manteve em funções até finais de 1919.
O Governador-Geral de Moçambique em coordenação com os Comandos da Expedição Militar em campanha no Norte, mobilizou tropas, quer locais quer as desviadas do principal teatro de operações, utilizou meios fluviais e tropas da Companhia de Moçambique, para combaterem estes revoltosos, que foram vencidos em novembro de 1917. Estas operações militares, distintas das do Norte, foram acompanhadas diariamente pelo Governador- Geral, em articulação com as tropas no terreno e disso era dado conhecimento através de telegramas ao Senhor Presidente da República.
Que o campo de concentração de Macequece tenha sido encerrado em abril de 1917, parece comprová-lo também o facto de até princípio desse mês serem conhecidas peças de correspondência dos prisioneiros lá internados, e a partir daí existir um hiato até à sua transferência para a metrópole em finais do ano.
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Tete – O distrito de Tete, o maior de Moçambique, com uma população indígena de cerca de 360 000 habitantes, era uma região rica em carvão, ouro e outros minérios. Pelo ancoradouro de Tete (Fig. 07) localizado nas traseiras da igreja que mal se vê na foto, transitavam mercadorias e passageiros, pois a via fluvial era de longe a mais utilizada na época, e mesmo algumas décadas depois. [8]
Figura 7 – Ancoradouro de Tete
Na vila de Tete, sede do distrito, localizada na margem direita do rio Zambeze, ficou instalado o 4º Depósito de Prisioneiros alemães, na Praça de São João Tiago Maior (Figura 8), fortaleza de forma quadrangular, com torreões aos cantos, antigas instalações militares que se encontravam muito degradadas. Em 1911-12, o então Governador do Tete havia solicitado, sem sucesso, a sua demolição por imprestável, vindo por essa altura a transformar-se em armazém e depósito de viaturas.
Neste depósito estiveram internados 22 alemães, sendo o campo em Moçambique que concentrou menor número de prisioneiros. A maioria era constituída por 14 padres missionários católicos provenientes das missões de Boroma e Angonia, 5 eram empregados da casa comercial alemã “Deuss & Companhia”, 2 eram comerciantes, e um era agricultor.
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[8] No entanto, esta importância foi-se esbatendo com a ligação por linha férrea, do porto da Beira (na linha Beira – Umtali) através da junção no Dondo com a linha da TZR (Trans Zambézia Railways), que atingiu a 1 de julho de 1922 a margem direita do rio Zambeze, e impôs a construção da magnífica obra de engenharia que foi a primeira ponte sobre o Zambeze, permitindo não só a ligação ao sistema ferroviário do Nyasaland, em 1934, como também foi o principal catalisador do desenvolvimento de todo o hinterland, Tanto no Nyasaland como em Moçambique, influenciou o desenvolvimento de toda a região da margem direita, ao sul desde a confluência do Rio Chire até bem para norte até ao planalto da Angónia.
Em Moçambique, este transporte ferroviário promoveu a exploração mineira das minas de carvão de Moatize e permitiu o desenvolvimento agrícola das regiões da Marávia e da Angónia, o que obrigou, muito mais tarde, a executar a segunda ponte ligando agora Tete à margem esquerda.
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Figura 8 – Vista geral da Praça de São Tiago Maior
Aprisionados e internados na sua maior parte a 20 de março, e alguns mais tarde a 17 e 27 de abril de 1916, eram provenientes de Tete, Chifumbazi, Chinde, Boroma, Miruru e Angonia.
Os prisioneiros do campo de Tete foram transferidos para Lourenço Marques a 3 de maio de 1917, como consequência imediata da revolta do Barué, conforme o comprova o já anteriormente mencionado telegrama [9], de 14 de abril de 1917, remetido pelo Encarregado do Governo-Geral de Moçambique, em Lourenço Marques, para o Ministério das Colónias.
Desses, três seguiram para Lisboa em outubro desse ano. Só a 11 de outubro de 1918 foram os restantes transportados a bordo do “África”, vindo a ser internados nos campos de Peniche e Caldas da Rainha.
Porto Amélia – Originalmente denominada de Pemba, nome que recuperou após a descolonização, Porto Amélia encontrava-se situada à saída da baía de Pemba, uma das mais bem protegidas do litoral moçambicano. [10]
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[9] Fundação Mário Soares – Dossier “Casa Comum” (pasta 07205.036)
[10] Não há registo de no local ter havido ocupação permanente no período pré-colonial, sendo a área visitada por pescadores suaílis e malgaxes. A primeira tentativa de ocupação portuguesa apenas ocorreu em meados do século XIX com a construção de um fortim, que foi abandonado poucos anos depois. A ocupação definitiva apenas viria a ter lugar em 1898 quando a recém-formada Companhia do Niassa, que detinha poderes de administração do território, elevou um pequeno posto comercial à categoria de povoação. Pouco tempo depois Pemba torna-se Porto Amélia em homenagem à última rainha portuguesa.
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Figura 9 – Porto Amélia, África oriental portuguesa
Pese embora não se conheçam elementos históricos que nos informem quanto à respetiva localização e capacidade, nem quantos prisioneiros terão estado concentrados nessas instalações, admite-se que tenha existido também um depósito de prisioneiros em Porto Amélia [11].
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Os Depósitos de Prisioneiros em Portugal
Conforme já aludido, o Governo Português, decidiu em 1917 transferir para território europeu os prisioneiros que se encontravam nos depósitos ou campos de concentração em Moçambique, enviando-os para Peniche e para as Caldas, e de lá alguns para os Açores.
Os Depósitos de Prisioneiros de Peniche e das Caldas
Como o campo de Angra do Heroísmo já tinha então, em finais de 1917, 750 prisioneiros e mais não cabiam, o Governo criou dois novos depósitos de prisioneiros, ambos relativamente perto de Lisboa, à distância de 25 km um do outro: um na fortaleza de Peniche e outro no Hospital D. Leonor nas Caldas da Rainha.
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[11] Armando Bordalo Sanches. Portugal na Primeira Guerra Mundial – Prisioneiros de Guerra em Moçambique. A Filatelia Portuguesa, nº 9 – Ano II. (Citação fundamentada no Boletim da Cruz Vermelha Portuguesa.)
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Figura 10 – O comboio que trouxe os prisioneiros alemães chegados de Moçambique para as
Caldas da Rainha. A foto terá sido tirada em Alcântara.
Arquivo Histórico Militar
No Arquivo Histórico Militar, em centenas de documentos sobre os prisioneiros recebidos nas Caldas nos meses de novembro de 1917 a março do ano seguinte, destacam-se os muitos telegramas enviados por Lisboa ao Delegado do Ministério da Guerra no Hospital D. Leonor, ao Comandante do Depósito Internato ou a algum outro oficial específico. Existe ainda outra correspondência entre o Ministério da Guerra e o administrador do concelho, e também alguns telegramas do Governo Civil de Lisboa para as Caldas da Rainha.
É grande o fluxo de telegramas entre Lisboa e Caldas da Rainha, quase todos classificados de “urgente” ou “muito urgente”, e alguns não disfarçando alguma irritação quando a resposta não é pronta, indo mesmo ao ponto de responsabilizar diretamente quem não obedecer às ordens emanadas [12].
É neste contexto, que a 18 de novembro, o Ministério da Guerra comunica o envio 21 súbditos inimigos para as Caldas.
Telegrama
18 de Novembro de 1917
Capitão D. T. Hospital D. Leonor
Seguem hoje comboio 17h30 21 súbditos inimigos e uma força de um cabo e oito soldados.
Pelo Chefe de Gabinete L. J. Major
Dois dias depois um outro telegrama dá conta de mais prisioneiros enviados para as Caldas, pedindo informação sobre quantos reúnem condições para serem transferidos para o estrangeiro, e que sejam escolhidos os que devem partir para Angra do Heroísmo.
[12] Carlos Cipriano. Os prisioneiros alemães nas Caldas da Rainha durante a I Grande Guerra Mundial. Gazeta das Caldas, Ano LXXXIX, nº 5011 – abril de 2014
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Telegrama
20 de Novembro de 1917
Urgente. Duzentos sessenta súbditos alemães partem amanhã de Lisboa ao meio dia previna capitão D. F. para preparar alimentação e informar esta repartição do número de súbditos inimigos com condições de serem transferidos para estrangeiro. Bagagens de súbditos chegados hoje ficarão detidas até próximo domingo para que possam escolher os que devem partir Angra Heroísmo.
Telegrama
25 de Novembro de 1917
Para Delegado do Ministério da Guerra – Hospital Rainha D. Leonor Caldas da Rainha. Urgentíssimo. Embarque primeiro comboio para Lisboa todos súbditos primeira classe vinte segunda classe quarenta sete terceira classe tornando para responsável pelo não cumprimento desta ordem.
Telegrama
27 de Novembro de 1917
Para Delegado do Ministério da Guerra – Hospital Rainha D. Leonor Caldas da Rainha. Torna-se necessário que ainda hoje telegraficamente informe número de todos súbditos que amanhã envia Lisboa para seguirem Açores discriminando classes a que pertencem visto que é preciso tomar lugares na empresa não esquecendo virgulação para telegrama ser legível devendo para maior percalço guia ser aí formulada. Exmo. ministro manda também comunicar que está tratando sua substituição.
Pelo chefe de gabinete major Galhardo
O ano de 1917 aproxima-se do fim e continuam a ser enviados mais prisioneiros para as Caldas da Rainha. Em meados de dezembro há notícia, desta vez do Governo Civil de Lisboa, de que serão enviados mais 56 “súbditos inimigos que ficarão recolhidos nesse depósito”.
Figura 11 – Foto do internato de “súbditos alemães” instalado no Hospital Rainha D. Leonor.
Arquivo Histórico Militar
A 28 de dezembro o chefe de gabinete do ministro da Guerra avisou o comandante do campo de concentração das Caldas por telegrama do envio de 112 alemães. Uma semana antes já havia sido autorizado o fornecimento de 250 mantas, 150 talheres, 250 toalhas, 130 travesseiros e duas caldeiras.
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Telegrama para Comandante do Depósito Internato
28 de Dezembro de 1917
Sr. Ministro encarrega-me comunicar v. Exa. que amanhã serão enviados para aí cento e doze alemães. Digne-se arranjar alojamento para os receber. Conduzem um oficial e trinta praças.
Ilustração Portugueza, Nº 217, Dezembro 17 1917
Alemães internados nas Caldas
Ha poucos dias chegaram-nos mais de duzentos que estavam na Africa Oriental, entre eles comerciantes e pessoas de certa distinção, que viviam na melhor roda, antes da rotura de relações.
Homens, mulheres e creanças, apenas desembarcaram em Lisboa seguiram para as Caldas da Rainha, ficando instalados no hospital daquela vila e gozando da largueza do respectivo parque.
Figura 12 – Súbditos alemães saindo Hospital de D. Leonor
Em resumo, sabe-se que nos meses de novembro e dezembro terão sido enviados de Lisboa para as Caldas da Rainha, pelo menos 430 prisioneiros vindos de Moçambique, e em sentido contrário, terão sido devolvidos a Lisboa, para embarcarem para os Açores, pelo menos 120, havendo ainda notícia de alguns que foram expulsos para Espanha.
Este conjunto de documentos dá-nos uma ideia precisa do vai e vem de prisioneiros alemães que transferidos de Moçambique são enviados para Peniche e para as Caldas, e de lá para os Açores ou até para o estrangeiro.
Relatos da vida dos prisioneiros nestes Depósitos
De acordo com critérios estabelecidos pelos próprios, os prisioneiros alemães estavam divididos em três classes consoante a sua profissão e classe social. Os comandantes, professores, guarda-livros, proprietários e comerciantes importantes eram classificados como primeira classe; os oficiais de bordo e telegrafistas na segunda; marinheiros e pessoal menor de bordo, fogueiros e também os agricultores pertenciam à terceira. Cada classe tinha privilégios próprios, sendo a terceira, naturalmente, a que menos privilégios tinha.
Entre os que foram chegando, em grande parte tripulantes de navios, encontravam-se representantes de todas as profissões: alfaiates, pasteleiros, tipógrafos, barbeiros, padeiros, cozinheiros, engenheiros, fogueiros, criados, telegrafistas e músicos. Mas havia também prisioneiros com profissões mais exóticas, como um negociante de pássaros para os jardins zoológicos e um russo domador de feras.
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Não se sabe ao certo porque viria um russo entre eles, mas conhece-se de alguns cidadãos estrangeiros [13] terem sido libertados do Campo de Concentrados de Angra do Heroísmo, após comprovação da respetiva nacionalidade, casos de um dinamarquês, um russo (não seria este o vindo de Moçambique?), uma criada espanhola e mesmo de austríacos.
Com eles veio um dos prisioneiros preferidos do comandante do campo de Macequece, o agricultor Willy Hager, de 26 anos, que internado duas vezes com paludismo, sobreviveu e dirigia um coro acompanhado a violino. No Depósito de Peniche conquistou rapidamente a confiança dos outros prisioneiros e do comandante do depósito que escreveu sobre ele: “Este internado é muito prestável e ajuda-me aqui muito no meu serviço”. Passou a ser o presidente dos prisioneiros, competindo-lhe distribuir a correspondência e as pequenas mesadas que chegavam das organizações de assistência internacionais.
Em Peniche havia 15 famílias, com 16 crianças. O comandante como já não tinha espaço para mais prisioneiros, quando chegaram 15 freiras alemãs, missionárias das Irmãs da Caridade, colocou-as fora da fortaleza em quartos alugados a famílias religiosas. O Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros opôs-se à possibilidade de irem para o estrangeiro, enquanto não fossem atribuídas pelas autoridades alemãs concessões semelhantes em relação aos prisioneiros portugueses. Contudo, admitiu repatriá-las para a casa mãe da sua congregação, mas ao abrigo do estatuto de enfermeiras.
Elsa Bruegmann uma das prisioneiras da 1ª classe em Peniche, queixou-se ao secretário-geral da Cruz Vermelha da situação das 9 mulheres e 14 crianças ali internadas, no meio de mais de 250 homens, muitos deles solteiros – “Além dos dissabores do internamento, passam por sofrimentos de ordem moral que tornam a vida detestável para elas”. [14]
Um prisioneiro que já antes gerira uma tasca no campo de concentração de Lourenço Marques quis continuar o negócio em Peniche e pediu para edificar uma pequena cantina junto à capela, para vender vinho e petiscos até às 22 h. Foi autorizado desde que não provocasse problemas de disciplina. Mas estes aconteciam. Muitos alemães embriagavam-se e envolviam-se em confrontos entre si, mesmo correndo o risco de serem castigados com dias de prisão. [15]
Além disso, as fugas eram frequentes. O maestro da orquestra de um dos navios alemães conseguiu fugir, mas passados dois dias foi capturado em Santarém. Também um engenheiro naval, Weinand Loeser, prisioneiro de 2ª classe nº 1598, arriscou fugir de Peniche, apesar de sofrer de doença cardíaca, celebrando o seu 25º aniversário em liberdade, mas pouco depois foi capturado em Alcoentre, a 50 quilómetros do campo. Ambos foram punidos com 30 dias de reclusão. [16]
O Depósito de Concentrados Alemães em Angra do Heroísmo (DCA)
Dos prisioneiros que seguiram para o internamento no Campo de Concentrados de Angra pouco se conhece. Contudo, Yolanda Corsépius, cujo pai Max Corsépius e o tio Gustav Corsépius estiveram internados nesse campo,
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[13] Sérgio Resendes. As Memórias de uma Reclusão Forçada. Universidade dos Açores – Pós-Graduação. Ponta Delgada, 2001
[14] Pedro Jorge Castro. Artigo publicado na Revista Sábado – edição nº 510, de 6 de fevereiro de 2014
[15] Ibidem
[16] Ibidem
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transferidos da ilha do Faial, onde eram funcionários da Deustche-Atlantische Telegraphengesellschaft, companhia do cabo submarino alemão na Horta, publicou uma lista de prisioneiros que aí foram internados, se bem que não na sua totalidade (apenas 382), incluindo, onde possível, nomes, origens, profissões e datas e locais de internamento, compilada de registos existentes na Biblioteca e Arquivo de Angra do Heroísmo, no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa, e no Museu Militar de Ponta Delgada.
Dessa lista, 16 prisioneiros constam como vindos dos campos de internamento de Moçambique:
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O internamento gradual dos prisioneiros alemães provenientes de vários locais do país e colónias, onde inicialmente foram concentrados, fez-se na Fortaleza de S. João Batista, situada no promontório do Monte Brasil, onde se constituiu o Depósito de Concentrados Alemães (DCA).
Continuando com Yolanda Corsépius [17], quando a 1 de maio de 1916, um primeiro contingente de cerca de 80 prisioneiros, incluindo vários casais – alguns com mulheres portuguesas – e 11 crianças, aí chegou proveniente de Lisboa, no navio mercante Sagres (antes o Taygestor alemão, apresado naquela cidade), ainda se mantinha aquartelado no castelo o Regimento de Infantaria 25, com mais de 700 praças, oficiais, sargentos e famílias, ou seja cerca de 1000 pessoas, o que tornava a vida no DCA muito difícil, devido sobretudo à insuficiente iluminação elétrica, e à inexistência de água canalizada, bem como de instalações sanitárias adequadas. O transporte de água, que era feito em 3 carros de bois que a traziam em pipas, era insuficiente e caro.
Assim, em junho de 1916, aquando de uma visita do general Augusto de Magalhães, constatando este a gravidade da situação exigiu ao Ministério da Guerra a urgente canalização de água. Temia-se o pior, caso os surtos de febre tifoide, peste e outras doenças que se faziam sentir pela ilha, se alastrassem ao castelo.
Escasseavam o material e as condições de aquartelamento, e alguns prisioneiros tinham de dormir no chão. Pediu-se também o arranjo do teto da igreja da fortaleza (Figura 13) para esta servir de refeitório.
Figura 13 – Concentrados reunidos por grupos em frente à Igreja de São João Baptista
Cortesia do Museu de Angra do Heroísmo
Tinha sido um fluxo inesperado de centenas de prisioneiros o que colocou inúmeras dificuldades às autoridades militares, sendo ainda necessária a expansão da rede elétrica, e obras fundamentais para a higiene, alimentação e instalação adequada desses prisioneiros.
Respeitando a orientação da Conferência Internacional de Washington de 1912, desde o início que o governo português, através da Comissão Central da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, e o Comando Militar dos Açores, procuraram proporcionar as melhores condições possíveis aos concentrados, o que obviamente não se mostrou fácil.
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[17] O Depósito de Concentrados Alemães no Castelo de S. João Baptista, Angra do Heroísmo (1916 – 1918 – I Grande Guerra). Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, LXVII e LXVIII – 2010.
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Em setembro de 1916, havia já 14 doentes entre os concentrados, alguns em estado grave, e a 15 de novembro morria de febre tifoide o primeiro alemão – Helmut Offer, de 19 anos. Mais tarde outros dois, um deles de tuberculose pulmonar. Os cuidados de saúde no campo eram assegurados pelo Dr. Soromenho, que contava com o apoio de 3 médicos existentes entre os aprisionados, Hans Kassner, vindo da Madeira, Georg Schaede e Wilhelm Cordes, curiosamente este último era o médico do navio Kronprinz, apresado aos alemães em Lourenço Marques. Face ao agravar da situação sanitária no campo, pediram-se então mais médicos. Apesar de grassar a peste na ilha, no campo a situação conseguiu manter-se controlada.
Ultrapassados os primeiros tempos de dificuldade, as condições de vida no campo foram melhorando, para o que contribuiu a iniciativa e orientação dos próprios internados. Dividindo as grandes casamatas com panos dependurados em cordas conseguiram que as famílias se mantivessem juntas e com alguma privacidade. Organizaram atividades desportivas, recreativas, escola para crianças e para adultos, escola de violino e de piano, uma orquestra, modelismo, jardinagem, avicultura, horticultura, pesca, natação, etc. adaptando as instalações e os redutos, e aproveitando o espaço e a natureza que os rodeava no Monte Brasil.
Valeu-lhes ainda como atenuante da longa retenção sem culpa, o bom relacionamento estabelecido com a guarnição militar e a possibilidade de troca de correspondência gratuita com o exterior, ao cuidado da Cruz Vermelha, pela qual também chegava dinheiro enviado pelas famílias através do Consulado de Espanha. Ao findar da guerra iniciou-se o processo de repatriação dos concentrados e, em outubro de 1919, quase um ano depois, foram informados que poderiam sair, caso pudessem pagar as despesas com o transporte.
Figura 14 – Concentrados aguardando o embarque no vapor Lothar Bohlen, no cais da Figueirinha – Angra do Heroísmo
Cortesia do Museu de Angra do Heroísmo
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A maior parte partiu a bordo do vapor Lothar Bowlen, que saíra de Hamburgo com esse propósito. Para alguns deles terminava assim a longa jornada que os trouxera dos distantes depósitos de prisioneiros de Moçambique.
Os Depósitos de Prisioneiros e a sua correspondência postal
Elo de ligação a familiares e amigos residentes na Alemanha e em diversos países, ou ainda de relações profissionais interrompidas pela guerra, a correspondência postal destes prisioneiros e o seu encaminhamento é fonte privilegiada de informação para quem pretende conhecer o caminho que percorreram desde o internamento até à sua libertação.
Pelo seu interesse filatélico e histórico não poderia este trabalho omitir uma abordagem ao seu estudo e caracterização.
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Reconhecidamente muito escassa a correspondência proveniente quer de Peniche quer das Caldas da Rainha, e a merecer estudo mais acurado, que não no âmbito deste ensaio, deste último campo apresenta-se um postal circulado para Berlim (Figura 15), e a carta da (Figura 16) que é uma peça de grande raridade, ambas ostentando a marca PASSOU PELA CENSURA, aplicada em Lisboa.
Figura 15 – Postal de internado no campo de concentração das Caldas da Rainha
Postal ilustrado circulado das Caldas da Rainha (23.03.1918), para Berlim. Isento de porte.
Marca a violeta Commission Portugaise des Prisonniers de Guerre – Lisbonne, e circular a preto PASSOU PELA CENSURA
Marcas da Cruz Vermelha alemã Abeitlung für Gefangenenfürsorge des Central Commitees Vom Rotem Kreuz - Berlin S.W. 11 (Abgeordnetenhaus), e dos Correios Alemães BERLIN 15.5.18
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Figura 16 – Carta de internado no Hospital Termal Dª Leonor. Cortesia de Luís Fernandes
Carta circulada das Caldas da Rainha para a Alemanha, c/ trânsito pelo Bureau Internationale de la Paix, em Berne, Suíça. Isenta de porte.
Marca a violeta Commission Portugaise des Prisonniers de Guerre – Lisbonne, e circular a preto PASSOU PELA CENSURA
Marca da Cruz Vermelha alemã Abeitlung für Gefangenenfürsorge des Central Commitees Vom Rotem Kreuz - Berlin S.W. 11 (Abgeordnetenhaus)
(Reprodução reduzida do verso)
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Da correspondência dos internados no depósito de Peniche, e não de menos raridade, a carta da (Figura 17) dirigida ao Bureau Internationale de la Paix, em Berna, e um bilhete-postal (Figura 18) endereçado a um internado no Castelo de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo.
Figura 17 – Carta de prisioneiro internado no Forte de Peniche
Marca a vermelho Commission Portugaise des Prisoniers de Guerre - Croix Rouge Portugaise - Lisbonne, e circular a preto CENSURA Nº 44, aplicada em Lisboa – Carimbo LISBOA CENTRAL 25.9.18 3ª SECÇÃO
Marca da censura suíça OUVERT 203 Par l´Autorité Militaire e cinta de fecho Controle Postal Militaire
– Carimbo BERN 14.XI.18 DHIEFTRAGER
(Reprodução reduzida do verso)
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Figura 18 – Postal de prisioneiro internado no Forte de Peniche
Inteiro Postal (de 2 centavos) remetido de Peniche (29.Mai.1919), para o Castelo de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo. Raro de encontrar com esta circulação.
Marcas da Comission Portugaise des Prisonniers - Croix Rouge Portugaise e Delegação da Comissão de Prisioneiros - Angra do Heroísmo.
Marca da censura CENSURADO ? .JUL.1919
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Sendo vasta e inegavelmente interessante a correspondência conhecida proveniente do Depósito de Concentrados Alemães de Angra do Heroísmo (DCA), não é, no entanto, objetivo deste ensaio alongar-se ao seu estudo e caraterização.
Contudo, a presença de muitos prisioneiros alemães vindos dos campos de internamento de Moçambique, justifica que se ilustrem embora de forma aligeirada algumas das marcas postais mais relevantes aplicadas na correspondência postal expedida deste Depósito, nomeadamente a marca mais conhecida e que melhor o identifica (Figura 19), nesta peça batida a verde (a versão menos comum), e a marca mais rara D.C.A., aplicada no inteiro postal (Figura 20).
Embora as peças apresentadas, não se possam garantir como de prisioneiros provenientes de Moçambique, é desafio dos autores virem, mais tarde ou mais cedo, a descobrir exemplar ou exemplares da correspondência que estes terão expedido a partir do DCA.
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Figura 19 – Carta de prisioneiro internado no Depósito de Concentrados Alemães de Angra do Heroísmo
Sobrescrito de carta circulada para Altana, na Alemanha, ao cuidado da Cruz Vermelha - Lisboa e Comité International de la Croix Rouge, em Genève.
Marcas a verde do Depósito de Concentrados Alemães na Ilha Terceira, e da censura CENSURADO/ 17 DEZ 1916. A preto a dos correios locais Corrº e Telº Angra do Heroísmo /10.DEZ.16
Marca da censura suíça OUVERT Par l’Autorité Militaire (203), e cinta Controle Postal Militaire
(Reprodução reduzida do verso)
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Figura 20 – Postal de prisioneiro internado no Depósito de Concentrados Alemães de Angra do Heroísmo
Inteiro Postal (de 1 centavo) circulado para Berlim, endereçado à família Lehmann.
Marca a violeta da Delegação da Comissão de Prisioneiros - Angra do Heroísmo (quase ilegível), e a vermelho, a rara marca D.C.A. (Depósito de Concentrados de Angra), e a da censura CENSURADO /2.AGOS.1918
Marca a vermelho da Comission Portugaise des Prisonniers de Guerre - Croix-Rouge Portugaise - Lisbonne
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Conforme já referido terão sido 5 os Depósitos de Prisioneiros em Moçambique. Da correspondência remetida pelos prisioneiros de guerra internados nesses depósitos conhece-se que era em regra sujeita à censura militar, ou então “pré-censurada”, com escolha limitada, pré impressa em alemão e portanto de resposta condicionada.
Na sua maioria, esta correspondência era encaminhada pela Delegação Provincial da Cruz Vermelha, em Lourenço Marques, através do seu Serviço de Prisioneiros de Guerra, que usou para o efeito o carimbo com a inscrição “PROVÍNCIA DE MOÇAMBIQUE /LOURENÇO MARQUES /SERVICE DES PRISONIERS DE GUERRE”, batido habitualmente a azul e violeta ou, se bem que raramente a preto.
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Correspondência pré-censurada
Expressamente para uso dos internados do campo de Lourenço Marques foram distribuídos inteiros postais isentos de franquia, com a inscrição na frente SERVIÇO POSTAL /Correspondência de prisioneiros de guerra /Correspondence des prisonniers de guerre, e no verso, texto em alemão com informação simples sobre a sua situação (Figura 21). Semelhantes a estes foram também impressos inteiros postais para uso no campo de Macequece.
Figura 21 – Postal pré-impresso enviado por prisioneiro internado em Lourenço Marques
Marca “PORTE FRANCO” da Delegação Provincial da Cruz Vermelha, indicativa da isenção de franquia – Carimbo oval a violeta do "Service des Prisonniers de Guerre - Província de Moçambique - Lourenço Marques”
Marca do "Comité International de la Croix Rouge -GENÈVE- Agence des Prisonniers de Guerre" – Marca "GENÉVE 1/ EXP.LETTR / 28.II.1917”. Aplicadas no trânsito pela Suíça.
Marca da censura alemã "Überwachungsstelle /Geprüfte Freiburg".
Postal previamente impresso em alemão, com texto de escolha condicionada.
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Lourenço Marques – Nesta cidade esteve instalado o 1º Depósito de Prisioneiros, o que esteve ativo por mais tempo em Moçambique, pois os últimos prisioneiros que deixaram o campo já o fizeram no final da guerra, em outubro de 1918.
Figura 22 – Carta enviado pelo prisioneiro de guerra nº 214, internado em Lourenço Marques (Delagoa Bay)
Sobrescrito de carta remetida do depósito de prisioneiros de Lourenço Marques. Isenta de franquia, conforme marca, de dupla oval a azul, específica do Serviço de Prisioneiros de Guerra.
Marca de censura militar do 1º DEPÓSITO DE PRISIONEIROS DE GUERRA EM LOURENÇO MARQUES.
Carimbo hexagonal a preto da Estação Postal de Lourenço Marques, datado de 23 de julho de 1917.
No verso: Marca e cinta da censura da África do Sul, OPENED BY CENSOR 99 e PASSED CENSOR, e marca de dupla oval a lilás de CAPE TOWN – 31.JUL.1917, de trânsito pela cidade do Cabo.
Carimbo de chegada a BERN, em 3 de setembro de 1917.
(Reprodução reduzida do verso)
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Grande parte da correspondência desses prisioneiros circulou isenta de franquia, através da Delegação Provincial da Cruz Vermelha, em Lourenço Marques, e/ou das instituições de apoio aos prisioneiros de guerra da Cruz Vermelha Internacional em Zurique (Bureau Zuricois pour la Recherche des Disparu), em Genève (Comité International de la Croix Rouge /Agence Internationale des Prisonniers de Guerre) e em Berna (Bureau International de la Paix), na Suíça, ou mais raramente para a Suécia através da Cruz Vermelha Sueca e outros organismos de apoio.
Alguma era encaminhada por representantes diplomáticos dos países não-beligerantes, como o Consulado da Holanda, em Pretória, ou por alguém que o fazia na Holanda neutral.
Embora isentos do pagamento de franquia, eventualmente receando atrasos que a sua correspondência pudesse sofrer, alguns prisioneiros franqueavam-na com os portes devidos e inclusive com os selos da taxa de guerra de 1 Centavo.
Na expedição da correspondência dos prisioneiros, a Delegação Provincial da Cruz Vermelha, em Lourenço Marques, usou três marcas diferentes, batidas a vermelho ou violeta:
1 – Marca elíptica com a inscrição DELEGAÇÃO PROVINCIAL DA CRUZ VERMELHA /LOURENÇO MARQUES;
2 – Marca circular com inscrição semelhante à anterior à qual juntou a inscrição PORTE FRANCO;
3 – Marca retangular a vermelho com a inscrição em francês DÉLÉGATION PROVINCIALE DE LA CROIX ROUGE /FRANC DE PORT /Prisonniers de Guerre / LOURENÇO MARQUES.
Nos primeiros dias após a sua instalação existem provas [18] que a censura da correspondência era efetuada na Repartição de Informações do Quartel General, enquanto não era organizada a censura no campo. Foi utilizada uma marca semicircular com a inscrição “QUARTEL GENERAL / Repartição d’ Informações”, e uma linear “Censurado”, batidas a vermelho.
Mais tarde foi utilizada uma marca oval com a inscrição “PROVÍNCIA DE MOÇAMBIQUE /LOURENÇO MARQUES /REPARTIÇÃO DE INFORMAÇÕES”, e a marca em duplo círculo “PASSOU PELA CENSURA /LOURENÇO MARQUES”, habitualmente batidas a vermelho, como se pode ver na Figura 2.
O carimbo de censura postal do campo é circular, não datado e não numerado batido a azul, e mais raramente a preto, com a inscrição “1º DEPÓSITO DE PRISIONEIROS DE GUERRA /CENSURA /Lourenço Marques” (como na Figura 22).
Foi de uso exclusivo do campo, embora não se encontre presente em toda a sua correspondência [19].
Na censura das cartas remetidas de Lourenço Marques também foram utilizadas cintas de cores creme e carmim, com a inscrição a preto “ABERTO PELA CENSURA /LOURENÇO MARQUES”.
Aos prisioneiros era permitido escrever as suas cartas e postais em português, francês e inglês. Uma vez por mês podiam fazê-lo em alemão [20].
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[18] Suportadas em peças de correspondência postal conhecidas no meio filatélico.
[19] São descritas um conjunto de diferentes marcas de encaminhamento e de censura utilizadas na Delegação Provincial da Cruz Vermelha em Lourenço Marques, no tratamento da correspondência dos Prisioneiros de Guerra. Dado o seu número e diversidade, integram uma parte importante da marcofilia específica deste tema, onde devem ser explanadas. Seria fastidioso fazê-lo aqui.
[20] Eduardo e Luís Barreiros. 1ª Guerra Mundial - Moçambique. Depósitos de Prisioneiros de Guerra – Lourenço Marques, Quelimane, Macequece/Beira e Tete. Boletim do Clube Filatélico de Portugal.
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Quelimane – No Depósito de Prisioneiros de Quelimane estiveram internados 29 súbditos alemães, todos eles residentes no território de Moçambique.
Beneficiaram os internados de isenção de franquia na correspondência por si expedida; para esse efeito era a mesma identificada com uma marca oval, não datada e nem numerada, geralmente batida a violeta e preto, com a seguinte inscrição: “Correspondência de Prisioneiros de Guerra/ Depósito de Quelimane/Isento de Franquia”.
Figura 23 – Carta enviada por prisioneiro de guerra, internado no campo de Quelimane
Sobrescrito de carta isenta de franquia – Marca de dupla oval a preto, de censura militar, específica do Depósito de Quelimane – Marca de duplo círculo a preto -Tipo Quelimane 2-, de censura civil, e carimbo hexagonal a preto datado de 28 de maio de 1917, aplicados na estação postal de Quelimane – Marca de duplo círculo a violeta -Tipo 3-, da censura da Beira – Marca de dupla oval a violeta, datada de 10 de junho de 1917, da censura de Cape Town, África do Sul.
A correspondência era escrita em português, francês e inglês, e inicialmente enviada à Secretaria Militar do Distrito, para ser previamente visada pela censura, onde recebia o carimbo circular a violeta ou o carimbo linear “PASSADO PELA CENSURA”.
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Algumas cartas apresentam o carimbo de censura civil retangular a violeta, e mais raramente a preto, com a inscrição “PASSOU PELO CENSOR /data/ Quelimane”, posteriormente substituído por carimbo de duplo círculo, não datado, batido a preto com a inscrição “PASSOU PELA CENSURA /QUELIMANE”.
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Beira – Como já referido, o campo de prisioneiros da Beira teve uma duração muito curta, pouco superior a 1 mês, pois foi criado em março de 1916 e desativado em abril desse ano, com transferência dos prisioneiros para um novo campo em Macequece.
Dos poucos artigos conhecidos sobre este tema, sabe-se apenas [21] da existência de outra peça circulada a partir deste campo, antes da sua transferência para Macequece, de que não se consegue distinguir data, sendo que a apresentada na (Figura 24), se destaca para além da raridade, mais ainda pela sua excelente qualidade.
Figura 24 – Inteiro postal enviado por prisioneiro de guerra, internado na Beira
Inteiro postal da Companhia de Moçambique, emissão “Elefantes c/ sobrecarga República”, de 10 réis, e selo adicional de 15 réis da emissão semelhante para completar o porte para o estrangeiro. Enviado do campo de concentração do Bairro do Maquinino, na cidade da Beira, a 31 de março de 1916.
Foram-lhe aplicados – Carimbo de censura -Beira Tipo 2- sem legenda, de duplo círculo a violeta – Carimbo linear a azul ‘PASSED CENSOR”, na África do Sul. No verso – Carimbo de trânsito de Cape Town, a 11 de abril de 1916.
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[21] Eduardo e Luís Barreiros. 1ª Guerra Mundial - Moçambique. Depósitos de Prisioneiros de Guerra – Lourenço Marques, Quelimane, Macequece/Beira e Tete. Boletim do Clube Filatélico de Portugal.
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Macequece – O campo de concentração de Macequece, em que estiveram concentrados 60 cidadãos alemães, teve igualmente uma vida breve, cerca de um ano, pois foi encerrado em abril de 1917.A grande maioria da correspondência dos prisioneiros, cartas e sobretudo inteiros postais circulou isenta de franquia e foi endereçada aos seus familiares na Alemanha, através da Cruz Vermelha de Lourenço Marque, Lisboa, da Suíça, e mais raramente da Cruz Vermelha Sueca.
Figura 25 – Carta enviada por prisioneiro de guerra alemão internado em Macequece
Sobrescrito de carta remetida do campo de Macequece – Marca hexagonal do Correio de Macequece, datada de 10 de janeiro de 1917, com a rara etiqueta EXEMPTÉ, indicativa de isenção de franquia.
Marca da censura militar de duplo círculo a azul “PASSOU PELA CENSURA – BEIRA” – Carimbos a preto "AMBULÂNCIA / RESSANO GARCIA / 20.1.17" e marca “QUARTEL-GENERAL / LOURENÇO MARQUES/ 21.JAN.1917” – Marca de duplo círculo a lilás “PASSOU PELA CENSURA - LOURENÇO MARQUES"
Marca e cinta da censura "PASSED BY CENSOR 99", por ter transitado pela África do Sul.
(Reprodução reduzida do verso)
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Aos prisioneiros foram distribuídos gratuitamente inteiros postais de 10 réis, da Companhia de Moçambique que são os objetos postais mais frequentes deste campo. Conhecem-se cartas isentas de franquia circuladas internamente, por exemplo, para Mandigo, e para o exterior de Moçambique.
Em todas as cartas que se conhecem, e em alguns inteiros postais, foi aplicada uma etiqueta retangular, em papel de cor verde com denteado num dos lados e com a inscrição “EXEMPTÉ / Prisonniers de Guerre”
Tal como em Lourenço Marques, foram também utilizados inteiros postais impressos, com texto em alemão, para uso exclusivo do campo e com a inscrição “Campo de Concentração de Macequece / (Território da Companhia de Moçambique) ”.
A correspondência expedida era censurada em Macequece por uma comissão composta pelo Secretário da Circunscrição, Diretor do Hospital e Encarregado da Repartição de Minas. Para o efeito foi usado um carimbo próprio de duplo círculo com a inscrição “PASSOU PELA CENSURA”, batido a preto, semelhante aos 3 tipos que foram usados na Beira, mas sem a indicação do topónimo.
Não se conhece qualquer cinta de censura nem marca de eventual delegação da Cruz Vermelha nesta localidade.
Figura 26 – Correspondência civil enviada de Macequece para a Beira
Sobrescrito comercial franqueado com selo de 2 ½ centavos, da emissão em curso na área da Companhia de Moçambique, para pagamento do porte simples na circulação interna, obliterado por carimbo hexagonal a preto, de Macequece, datado de 21 de maio de 1919. No verso carimbo de chegada à Beira no dia seguinte.
– Carimbo de censura militar, de Macequece, datado de 21 de maio de 1919 (mês em inglês)
– Carimbo de censura civil, da Beira, aplicado a 22 de maio de 1919
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Apesar de terminada a Guerra em novembro de 1918, a Censura Militar em Moçambique prolongou-se até julho de 1919, e é muitas vezes através das peças de Censura Postal que é possível dar continuidade à “fita do tempo”. É disso prova a peça de correspondência civil censurada, apresentada na (Figura 26), única conhecida até à data.
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Tete – O Depósito de Prisioneiros em Tete teve concentrados apenas 22 prisioneiros alemães, e teve igualmente vida curta, com a transferência destes prisioneiros para Lourenço Marques a 3 de maio de 1917.
Embora estivesse prevista a censura pelo Comando Militar de toda a correspondência expedida pelos prisioneiros, julga-se que ainda não terá sido encontrada qualquer marca da Secretaria Militar ou de censura específica aplicada no campo de Tete. O reduzido volume de correspondência de lá proveniente torna remota a probabilidade de tal acontecer. Subsiste mesmo a dúvida, se efetivamente chegou a existir alguma marca.
Provavelmente única conhecida [22], a peça proveniente deste campo de que há referência, um inteiro postal editado pela Cruz Vermelha de Lourenço, com texto pré-impresso em alemão, remetido a 22 de dezembro de 1916, foi marcada com a censura civil a vermelho, já em Lourenço Marques, para onde terá sido encaminhada.
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Porto Amélia – Como atrás referido, não há certeza de ter existido um depósito de prisioneiros nesta localidade [23].
Contudo, há notícia nos meios filatélicos nacionais, de suposta peça de correspondência de prisioneiro alemão que terá estado internado em Porto Amélia, que tendo fundamento dará consistência à ideia de que esse depósito terá efetivamente existido.
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[22] Eduardo e Luís Barreiros. 1ª Guerra Mundial - Moçambique. Depósitos de Prisioneiros de Guerra – Lourenço Marques, Quelimane, Macequece/Beira e Tete. Boletim do Clube Filatélico de Portugal.
[23] Armando Bordalo Sanches. Portugal na Primeira Guerra Mundial – Prisioneiros de Guerra em Moçambique. A Filatelia Portuguesa, nº 9 – Ano II. (Citação baseada no Boletim da Cruz Vermelha Portuguesa.)
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Comentário final
Baseado em telegramas inéditos e na correspondência desses prisioneiros, bem como no que se conhece da literatura filatélica portuguesa e de artigos de natureza jornalística, o tema dos Prisioneiros de Guerra Alemães na Primeira Guerra Mundial foi abordado no presente artigo numa perspetiva diferente da seguida pelos escassos, mas extensos e bem documentados, trabalhos anteriormente publicados, acrescentando onde possível algo de inédito, ou de menos conhecido, em áreas que aqueles omitem ou só muito superficialmente tocam.
Merece assim realce a alusão à segunda revolta do Barué, que consideramos a verdadeira causa da transferência dos prisioneiros dos Campos de Macequece e Tete, respetivamente em abril e em maio de 1917, e que é apresentada pela primeira vez neste ensaio.
Merece igualmente realce toda a documentação, peças e ilustrações que nos dão a conhecer, o caminho que estes prisioneiros percorreram dos depósitos de prisioneiros situados em Moçambique, passando pelos campos de internamento de Peniche, Caldas da Rainha, e Angra do Heroísmo, até à data do seu repatriamento, no final da Guerra, temas muito raramente tratados e pouco ou nada documentados nas publicações conhecidas.
Com este contributo, foi ainda intenção relançar a investigação em torno do percurso destes Prisioneiros de Guerra, de que alguns hiatos no conhecimento de factos então ocorridos, por inexistência ou desconhecimento de documentação ou correspondência postal que lhes dê suporte, necessitam ainda de maior aprofundamento.
Agradecimentos
Ao MAH - Museu de Angra do Heroísmo, e ao filatelista e grande amigo Luís Fernandes, pela cortesia na cedência de peças que trouxeram uma inquestionável mais-valia a este trabalho.
Bibliografia:
Armando Bordalo Sanches. Portugal na Primeira Guerra Mundial – Prisioneiros de Guerra em Moçambique. A Filatelia Portuguesa, nº 9 – Ano II. JUN86
Carlos Cipriano. Os prisioneiros alemães nas Caldas da Rainha durante a I Grande Guerra Mundial. Gazeta das Caldas, Ano LXXXIX, nº 5011 – abril de 2014
Eduardo e Luís Barreiros. 1ª Guerra Mundial - Moçambique. Depósitos de Prisioneiros de Guerra – Lourenço Marques, Quelimane, Macequece/Beira e Tete. Boletim do Clube Filatélico de Portugal.
Pedro Jorge Castro. Artigo publicado na Revista Sábado – edição nº 510, de 6 de fevereiro de 2014
Sérgio Resendes. As Memórias de uma Reclusão Forçada. Universidade dos Açores – Pós-Graduação. Ponta Delgada, 2001
Yolanda Corsépius. O Depósito de Concentrados Alemães no Castelo de S. João Baptista, Angra do Heroísmo (1916 – 1918 – I Grande Guerra). Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, LXVII e LXVIII – 2010
Boletim da Cruz Vermelha Portuguesa 1865 - 1925. Editado pelo Centro Tipográfico Colonial, 1926
Boletim Oficial da Província de Moçambique
Arquivo Histórico Ultramarino
Arquivo Histórico Militar
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