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"Auto da Barca do Inferno" é um auto que nos mostra que, após a morte, vamos parar a um rio que havemos de atravessar.
Gil Vicente inspirou-se na lenda de Caronte, da antiguidade clássica. Na mitologia grega, Caronte é o barqueiro do Hades, que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas dos rios Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Uma moeda para pagá-lo pelo trajeto, geralmente um óbolo, era por vezes colocado dentro ou sobre a boca dos cadáveres, de acordo com a tradição funerária da Grécia Antiga.
Gil Vicente, neste auto, substituiu Caronte por dois barqueiros (Diabo e Anjo) e o destino final (Infernos) pelo Inferno ou Paraíso.
Ao criticar os costumes, hábitos e vícios da sociedade, Gil Vicente queria transmitir uma moral a toda a sociedade; pretendia que todos, ao verem a peça, se rissem, mas, em simultâneo, criticava os '' podres '' da sociedade daquele tempo.
Estrutura
O auto não tem uma estrutura definida, não estando dividido em atos ou cenas, por isso, para facilitar a sua leitura, divide-se o auto em cenas à maneira clássica, de cada vez que entra uma nova personagem.
Personagens
As personagens desta obra são divididas em dois grupos: as personagens alegóricas e as personagens–tipo.
No primeiro grupo, inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respetivamente o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno. Ao longo de toda a obra estas personagens são como que os «juízes» do julgamento das almas, tendo em conta os seus pecados e vida terrena.
No segundo grupo, inserem-se todas as restantes personagens do Auto, nomeadamente o Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Parvo (Joane), o Frade, a Alcoviteira, o Judeu, o Corregedor e o Procurador e os Quatro Cavaleiros.
Fazendo uma análise das personagens, cada uma representa uma classe social, ou uma determinada profissão ou mesmo um credo. À medida que estas personagens vão surgindo, vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam a sua vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento dos seus pecados.
Humor
Surgem ao longo do auto três tipos de cómico: o de carácter, o de situação e o de linguagem.
O cómico de carácter prende-se com a maneira de ser de uma personagem (personalidade, comportamento, apresentação ou temperamento).
O cómico de situação resulta da situação ridícula criada pela própria personagem face ao que se está a passar em palco.
Por fim, o cómico de linguagem tem que ver como o modo como as personagens se expressam (calão, latim macarrónico, interjeições ou ironia), provocando o riso.
Argumento
Este auto considerado por Gil Vicente como sendo um auto de moralidade (peça de carácter didático-moral onde as personagens encarnam vícios ou virtudes com o objetivo de moralizar a sociedade) inicia com uma dedicatória à Rainha D. Leonor (presença do mecenatismo), recorrendo a captatio benevolentiae (Expressão da retórica latina que significa literalmente “conquista da benevolência”, muito difundida em todas as literaturas , quando um escritor quer ganhar a simpatia de alguém, interpelando-o no sentido de receber louvor e solidariedade para a causa que está a ser defendida).
Feito o elogio à Rainha, Gil Vicente apresenta o argumento da peça: quando morremos (“no ponto que acabamos de espirar”), as nossas almas dirigem-se a um rio, que tem de ser atravessado para atingirmos o nosso destino final (Inferno ou Paraíso). No cais, para atravessar o rio, encontram-se dois barcos com os respetivos barqueiros, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno.
O primeiro a chegar é um fidalgo, a seguir: um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alcoviteira, um judeu, um juiz, um procurador, um enforcado e quatro cavaleiros.
O seu percurso em cena é praticamente idêntico em quase todas as personagens. Um a um dirigem-se à barca do Diabo, carregando com eles os seus pecados (símbolos cénicos). Perguntam para onde vai a barca, mas ao saberem que vai para o inferno, ficam apavorados e dizem-se dignos do Céu. Aproximam-se, então, do Anjo, que os condena ao inferno pelos seus pecados.
O Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Frade (e a sua amante), a Alcoviteira (Brísida Vaz), o Judeu, o Corregedor (juiz), o Procurador e o Enforcado são todos condenados ao inferno pelos seus pecados. Apenas o Parvo é absolvido pelo Anjo. Os Cavaleiros nem sequer são acusados, pois deram a vida a lutar pela Igreja.
Precisas de uma ajuda para compreenderes/reveres esta obra de Gil Vicente? Podes consultar este resumo.
Este quadro, contém um resumo do "Auto da Barca do Inferno", retirado do manual Paratextos 9, da Porto Editora. Aqui podes recordar as personagens, a classe social a que pertencem, o(s) símbolo(s) cénico(s) e o(s) significado(s) do(s) mesmo(s), o percurso cénico, a sentença, os argumentos de acusação e de defesa, as características e os comportamentos das personagens, a crítica social (aspetos criticados) e os tipos de cómico.
Já conheces esta animação/audiolivro do "Auto da Barca do Inferno"? Diverte-te a vê-la e a ouvi-la.
Faz estas atividades sobre o "Auto da barca do Inferno", de Gil Vicente:
Exercícios sobre o "Auto da barca do Inferno"
DICIONÁRIO DE ARCAÍSMOS E TERMOS MENOS COMUNS utilizados no "Auto da barca do Inferno"
- A -
albarda = sela dos cavalos
alcoviteira = gerente de um bordel
aleivosa = prostituta
alija = afrouxa
alheia = riqueza
apercebida = preparada
asinha = depressinha
assombrado = aspeto
atavio = apetrecho para subir ao barco
atesa = estica
aviado = perdido
azará = desgraçado
- B -
badana = velha (mãe ou avó)
baraço = corda
barzoneiro = preguiçoso
beca = veste dos juízes
bolina = vela
boninas = margaridas
borregada = insultos
breviários = livros
broquel = escudo
- C -
cárrega = carga
carro à ré = virar a traseira do barco
cato = procuro
chantado = aconchegado
cordovão = mentiroso
corregedor = magistrado
corrença = diarreia
cortiço = reles
coxins = almofadas
- D -
demandais = desejais
derradeira = nas traseiras
desassombrou = libertou
detença = demora
driça = corda de levantar as velas
- E -
embaraçadas = desavergonhadas
enleios = seduções
espingarda = besta (arma medieval)
- F -
fantasia = vaidade
feitada = golpe de esgrima
fendente = golpe de esgrima
fragoados = martelados
fumoso = arrogante
- G -
grão peguilho = incómodo
grosa = censura
guarecer = salvares-te
guarida = salvação
guia = reviravolta
- H -
houlá = venham lá
- J -
jericocins = burros
- L -
leito = convés
levada = ataque
- M -
má rabugem = insulto
marchetada = chicotada
mártela = mártir
martelada = martirizada
meirinho = figura autoritária
mester = ofício
muitieramá = em má hora
- N -
nebri = um tipo de falcão
- O -
onzeneiro = aquele que empresta dinheiro com juros altos
ora sus = mas então
- P -
palanco = corda
peitas = peitos das aves; suborno
peleja = luta
pingos = lugar
poja = corda de virar as velas
(de) praça = descaradamente
prestes = depressa
procurador = mandatário da justiça
pulha = manguito
- Q -
quebranto = morte
quedos = parados
queixadas = caras
- R -
requebrar-se = ter relações sexuais
rolão = reles
roldão = perdida
roloa = ordinária
- S -
salvanor = com o devido respeito
sandeu = tolo
Saturno = deus romano do tempo
- T -
tangerei = tocarei
tordião = canto
tornais = devolveres
trinchão = pedaço de carne
- U -
uxiquer = qualquer lugar
- V -
ventura = destino
verga = vela
virgos = hímens
- Z -
zambuco = barcaça
EXPRESSÕES LATINAS:
Beleguinis ubi sunt = Onde estão os carcereiros
Domine, memento mei = Deus, lembrai-vos de mim
Ego latinus macairos = O meu latim é macarrónico
Embarquetis in zambuquis = Embarcai no barco reles (latim macarrónico)
Et pernis perdigotorum = E pernas de perdiz
Et vobis quoque cum ea = E vós também com ela
Habeatis = Tende
Hoc nom potest esse = Isso não pode ser
Ignorantis peccatorum = Pecaste ao ignorá-los
Imbarquemini in barco meo = Embarcai no meu barco
Imbarquemini in batel = Embarcai no batel
Ita = Sim
Non est de regulae juris = Não está prescrito nas leis
Non es tempus, bacharel = Não há tempo, bacharel
Nonne accepistis rapina = Não aceitaste suborno
Nonne Legistis = Não lestes
Non sunt pecatus meus = Não são pecados meus
Peccavit uxore mea = Quem pecou foi a minha esposa
Quia judicastis malitia = Que a justiça é maldita
Quia speramus in Deo = Porque esperamos por Deus
Rapinastis coelhorum = Rapinaste o coelho
Sanguinis laboratorum = Com o sangue de quem trabalha
Sed aliquid tradidistis = Se algo é dado em troca
Semper ego justitia fecit = Eu sempre agi com justiça
Super juris magestatis = Acima do direito de magestade
Ut quid eos non audistis = E porque não os atendeste
Videtis qui petatis = Vede o que pedis
Retirado de https://www.youtube.com/watch?v=cki6FD86ukY&t=123s