Flora Leite para

Ana Dias Batista

Então, sabe aquele trabalho que eu pensei pra você?

Ana tinha comentado, alguns meses atrás, de um trabalho que imaginava que eu pudesse fazer. Um trabalho que era dela, mas para mim. A partir do meu repertório, feito na minha casa, e com a minha força de trabalho. Era uma série de trabalhos executados por amigos. Naquele call de maio achei engraçado e depois esqueci.


Demanda

No começo da quarentena, fui tomada por uma ansiedade já muito conhecida, mas que em poucas circunstâncias teve terreno tão fértil para se desenvolver como nesta pandemia. Esta que não só oferece riscos concretos e decisivos à vida, mas sobretudo escancarou um campo social de privilégios e capitais muito desigual, obrigando a nos reposicionarmos. Acrescido a isso, assisti ao meio da arte responder de forma pujante às novas condições de trabalho remoto: feiras e galerias se adaptaram rapidamente a formatos virtuais; editais temáticos surgiram em pouco tempo; e artistas se reuniram em iniciativas colaborativas. Sinais de um sistema forte para uma tentativa necessária de continuidade.

Mas, para alguém atônita e interdita, a demanda intensa e cada vez mais desmesurada, forjada nos parâmetros usuais de produtividade, somada ao ritmo das notícias e das redes sociais, me deixou numa exaltação esfalfada. Isto é, considerando tamanha a precariedade já instaurada em nosso meio, e que a cada nova demanda parecia assumir contornos ainda mais nocivos. Demandas essas inescapáveis. No meu caso, se não ganharam mais corpo objetual desde março, foram transformadas em textos, debates, lives, a partir desse mesmo problema. O problema do trabalho.

Assim esqueci a proposta (de trabalho) da Ana. Anteontem ela me recontou: uma mergulhadora, projetada na água corrente da torneira da pia do banheiro. Estaria não mergulhando em direção à piscina, mas voltando para o encanamento. Uma espécie de contra-plongée.


Negociação

As estratégias de negociação do trabalho com o campo de capitais que constrói nossa atuação são tema recorrente nas nossas conversas. Concordamos e discordamos com frequência. Assim Ana seguiu a sua série de ressalvas, muito alerta às estratégias elaboradas pelo meio da arte durante a quarentena que discutimos continuamente ao longo dos últimos meses.

Respondi com uma risada, porque achei acima de tudo engraçado; é perfeito porque inclusive minha pia é azul e uso uma concha de saboneteira, como manda o clichê. E acrescentei que já estava há tempo demais sem trabalhar - isto é, produzir trabalhos de arte contemporânea, já que as contas são pagas com trabalhos de outra ordem.


Acordo

Ana então sugeriu que assinássemos em conjunto. Mas o problema do trabalho, o problema deste trabalho, é que não é meu trabalho. Ana se apropria de um trabalho meu, e o devolve, com sua assinatura. Este roubo é o que faz o trabalho. O roubo é o que faz o trabalho engraçado. Melhor: é a ideia de roubo que faz o trabalho, pois não obstante questões sociais e jurídicas, ou até morais, não existem referências e repertórios invioláveis.

Ana me fez um pedido, um pedido para explorar meu trabalho, ao qual concedi (digase a despeito da preguiça de fazer um trabalho que não é meu). Assinar de maneira conjunta seria, portanto, uma falsa simetria. Era preciso posicionar esse acordo mútuo, então mudei o título: Flora Leite para Ana Dias Batista.


Pelo ralo

O primeiro teste do trabalho deu errado. Adaptações às condições de plausibilidade são recorrentes na minha produção, que tende a habitar lugares um tanto precários. Já prevendo a insatisfação da Ana, e sua rotineira incredulidade na impossibilidade das ideias, não só mando um vídeo do insucesso, como também telefono com uma proposta de solução - projetar a imagem na poça da pia.

Foi preciso tampar o ralo parcialmente para que a torneira continuasse aberta, sem resultar numa mudança do volume, mantendo assim as nadadoras na água. A rotina do polvo teve que ser adaptada. O trabalho da Ana passa a ter o tempo e as dimensões determinadas pelo encanamento da pia do meu apartamento.

O trabalho - talvez como todo trabalho? - não só tem um tanto de inautenticidade, mas ficcionaliza e expõe a própria ideia de originalidade, contrabandeando consigo os problemas antigos, e contudo ainda muito caros, às nossas próprias atividades. A operação do trabalho é toda feita por rebatimentos e reflexos entre nossos procedimentos, sem nunca desembaralhar. Mas esse mesmo trabalho - enquanto uma projeção de nado sincronizado em uma pia doméstica - é resoluto.


*

Livre

Eu conheço bem a imobilidade das horas produtivas, e sou assediada pela cozinha, pelo livro, pelo celular, pelo sofá, pela bebida, com os quais preparo e adio meticulosamente o momento de fazer. Às vezes a imobilidade me dá trégua nas insônias. Insone, já não posso perder tempo.

Sei administrar a dissociação. Sou artista e funcionária pública, fui artista e revisora de português, artista e ghost writer, artista e montadora de exposições, artista e assistente de artista. Organizei uma biblioteca, atualizei currículos, dei aulas. O problema, claro, nunca esteve nas horas dedicadas, mas nas outras, as livres.


Quarentena

Foi só o distanciamento social ser decretado para eu ter sintomas. Fiquei em isolamento por quinze dias, sozinha no ateliê. Quinze dias sem fazer, sem pensar, sem ler sobre arte. Dentro do meu ateliê.

Eu estava exasperada, oscilando entre medo pela fragilidade e culpa pelo privilégio, empatia e raiva dos outros, aflição e excitação (culpada, claro) pela suspensão da normalidade. Veio um convite. Reagi com irritação: a imobilidade precisava ser defendida. Se o campo da arte se define criticamente em relação ao mundo da vida (mesmo quando pretende inserção, adesão, ação direta, a realidade é a contraparte que determina o seu contorno), o que acontece quando o mundo da vida se desorganiza assim? A arte se positiva, conciliada, a serviço do bem comum? Por que agir para assegurar um lugar que o meu trabalho alega desafiar? É claro que aceitei o convite e então o pacto normativo (os prazos, as regras, os formatos) fez sua parte.


Alguns meses depois

A exasperação arrefeceu e uma nova vida doméstica quase me ocupou de vez. Tive uma insônia. As ideias seriam executadas por artistas amigos, a partir do repertório e dos interesses dos trabalhos deles. Um movimento ambíguo, ao mesmo tempo deferência e oportunismo, elogio e apropriação, presente e usurpação - não só de propriedade intelectual, mas também de força de trabalho. Um jeito de afrontar a minha prostração sem propriamente sair dela.


Mortinha

No ano passado a Flora fez um trabalho chamado Mortinha, que era uma projeção num copo d'água colocado dentro de uma vitrine. A vitrine ficava numa passagem comercial do centro de São Paulo, e foi toda adesivada com vinil preto, exceto por um único furo. A imagem projetada era uma coleção de planos cinematográficos de sereias, ou melhor, mulheres atuando como sereias. Quem espiasse através do furo via uma sereia nadando no copo, imagem lábil e fugidia como os planos projetados, planos lábeis e fugidios como as criaturas representadas.


Ana Dias Batista para Flora Leite

O que eu propus pra Flora foi fazer uma projeção no jato de água da torneira da pia do banheiro da casa dela. Talvez projetar imagens da Mortinha. Ou então usar uma imagem “minha” - um trecho do vídeo A rotina do polvo, que documentou a peça de nado sincronizado que apresentei em 2018 na piscina aquecida de uma mansão. No banheiro da casa da Flora, o nado ocorreria contra a corrente. Pensei em chamar o trabalho de “Salmão”, mas a Flora mudou o título.


Violável

Quando a Flora perguntou como eu pensava a operação do trabalho, achei que não fosse tonta e fui logo declarando minhas más intenções. Disse que o trabalho era homenagem e usurpação, combatia e reiterava minha prostração, mantinha todos os problemas em estado de problema. Eu estava pronta para assumir a vilania.

Mas aí, ao falar da partilha da autoria, derrapei e acrescentei um prefixo para esconder o óbvio: “a ideia original, inviolável” era dela. Ela riu (ela sempre ri) e disse que era ridículo falar da inviolabilidade de uma projeção num copo d’água. Ela vai usar a palavra inviolável contra mim até o fim dos dias. Bem feito.


Água abaixo

Resolvemos usar trechos da apresentação de nado. Ali também havia mulheres atuando, submersas, suas pernas convertidas não em nadadeiras, mas em tentáculos, as oito pernas reunidas na figuração de uma única criatura.

No primeiro teste a Flora constatou que a projeção na água da torneira não seria legível. Ela experimentou diferentes tratamentos para a imagem, diferentes iluminações no banheiro, diferentes anteparos atrás da água. Não funcionou. Eu não conseguiria dobrar a aposta da Mortinha, exagerando aquele caráter fugidio. Ou a imagem fugiria de vez.

A Flora sugeriu projetar na água que empoçava na cuba da pia. Concordei. Manteríamos a torneira e o ralo abertos. A imagem em voo de pássaro captada por uma câmera instalada na cobertura da piscina seria projetada em voo de pássaro por um aparelho pendurado perpendicularmente à pia do banheiro. Duas realidades domésticas em tudo estranhas, agora sobrepostas. Mas uma derivação sociológica seria falaciosa (como de costume, aliás), porque nesse trabalho há muita inversão de papéis, muita inautenticidade, muita encenação, como testemunham as duas câmeras presentes, a que registra a projeção na pia e a outra, que fotografa a Flora.

Créditos da imagem: Isadora Brant