Durval Filho
Data de publicação: 25/11/2005
A Antônio Manoel Claro
Quando se tem um importante dever a ser cumprido e faltam executores com competência; a missão, que não está nem aí, continua a exigir que a executem. Assim pensando, que me debruço nesta crônica para contar a história de um homem simples que cumpriu muito bem as várias missões que o destino lhe outorgou, nestes seus 85 anos de idade.
Quando do entardecer de seus dias chega o crepúsculo, o sol pinta no horizonte e as nuvens em constantes movimentos projetam um filme saído da memória; percebo as imagens e, aí então, eu as reproduzo. Sim, meu avô materno, nascido no interior e vindo de família humilde, desde menino, como tantos outros, teve de trabalhar duro e muito trabalhou, sendo sempre criativo e inteligente.
Se hoje ele sabe ler, não foi graças à escola. Aprendeu a escrever e a fazer contas como ninguém, de preferência usando a memória. Curioso, desde pequeno observa a vida e dela tira as várias lições que o fizeram grande. Meu avô venceu, justamente, porque aprendeu a lutar contra a falta de oportunidades, fabricando-as quando os dias não lhe ofereciam.
O humor e a arte não podiam deixar de estar presentes neste homem que ainda jovem casa e constitui família. A música, que saía da viola e embalava os sonhos do casal, logo ecoou pelas fazendas da região em belas composições de meu avô e seu irmão. Ritmo que tornava a vida dura mais amena e embalava as festas do interior ao som da dupla que cantava; desde o louvor religioso, na hora da reza do terço, às belas modas sertanejas, nas noites divertidas regadas com vinho e danças, principalmente a catira, que dançavam tão bem.
Nestes momentos festivos, não podiam faltar a conversa amiga, as piadas e o contar dos “causos” que alegravam os ouvintes, em volta da fogueira. Eu que não vivi pessoalmente tão felizes instantes só tenho a agradecer meu avô por ter-me contado com riqueza de detalhes e com muito humor os seus velhos “causos”.
Em sua homenagem registro uma dessas histórias que ele contava com aqueles seus olhos verdes, desbotados, brilhando; as mãos, numa atitude velhaca, esfregando-as uma na outra, como se estivesse com frio, naquela noite de verão. O seu rosto trazia uma expressão matreira e um leve sorriso, enquanto ele contava que numa cidadezinha do interior, no tempo em que ele tinha 18 anos, conheceu um pequeno comerciante, o Luizinho, dono de Mercearia, daquelas que vendia de tudo. Ele estava precisando de uma lavadeira e fora informado que a Graça, uma de suas freguesas, era uma boa profissional. Coincidiu que, naquele mesmo dia, a Graça foi comprar alguns mantimentos e levar também o fumo, que não podia faltar, já que ela gostava muito de pitar.
Luizinho foi logo perguntando se ela aceitava o serviço. Ele que era bom comerciante propôs o trabalho em troca de mercadoria. Primeiro ele a fez dar um bom desconto no preço e, como se não bastasse, fingiu-se de indeciso e perguntou o que ela podia oferecer a mais de vantagens para ele. A Graça, muito necessitada do emprego, disse que lavaria toda a roupa, não cobraria caro, e ainda lavaria de graça os sacos de algodão, que vinham com arroz, feijão etc. Luizinho contratou o serviço e ficou muito satisfeito. Graça buscava sempre que precisava: arroz, feijão, açúcar, farinha e o fumo de corda, que não podia faltar; comprava e não pagava nada, era permuta pelo serviço.
Passado algum tempo, Luizinho, que era muito esperto e queria lucrar ainda mais com o negócio, subiu o preço das mercadorias. Foi justamente quando Graça chegou para comprar. Ela falou:
– Luizinho, vou levar essas mercadorias, o ovo, o tomate, o café e vou levar também o fumo.
– Quanto de fumo a senhora quer, dona Graça?
– Vou levar um palmo de fumo, o senhor anota e desconta no serviço.
– Olha dona Graça, agora... Olha... O fumo subiu.
– Mas não me diga isso!
– É verdade dona, subiu mesmo!
– Pois olha seu Luizinho, o senhor subiu o fumo, eu também vou subir a roupa. E tem mais, agora entra até o saco.
E foi assim que o Luizinho teve que pagar mais, inclusive pelos alvos tecidos que ele vendia como pano de prato.
Durval Filho é professor, poeta e escritor
durvalgfilho@hotmail.com
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