O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry (resenha)

Vou falar de um livro que já foi chamado depreciativamente de “o livro das misses”, que é O Pequeno Príncipe (Le Petit Prince em francês) de Antoine de Saint-Exupéry. Por que o livro das misses? Porque, nos velhos tempos em que concursos de beleza tinham a visibilidade que tem hoje, digamos, um julgamento no STF, várias das chamadas “misses”, aquelas moças bonitas que participavam daqueles concursos, citavam a obra como seu livro favorito.


Se bem que o livro contraste o universo ingênuo da criança com o mundo às vezes exageradamente sério dos adultos – e foi gestado numa época negra, em que essa “seriedade” causou grande destruição, a Segunda Guerra Mundial –, não foi escrito especificamente para o público infanto-juvenil (como foi, digamos, Reinações de Narizinho), embora seja lido com prazer por esse público. É mais do que isto. É uma literatura alegórica, simbólica, de sátira aos costumes, um tipo de literatura com longa tradição.


Antigamente não se podia sair criticando os reis, as classes dirigentes, a igreja, sob risco de ser queimado vivo ou encarcerado. A crítica social tinha de ser feita de modo sutil, velado, através da alegoria e da sátira. É o caso das Viagens de Gulliver, que podem ser lidas como uma aventura fantástica, mas que no fundo são uma sátira social com profunda carga crítica.


A gente pode fazer várias leituras de O Pequeno Príncipe. Primeiro, vejo este livro como uma crítica à limitação, ao espírito tacanho da maioria dos seres humanos. Vivemos num universo inconcebivelmente grande, complexo, cheio de possibilidades e, no entanto, ficamos (não digo todo mundo, mas a maioria) presos em nossos mundinhos cotidianos, como se vivêssemos nos pequenos planetas (ou asteroides) onde habitam o vaidoso, o ébrio, o acendedor de lampiões, o homem de negócios, o rei, os personagens da primeira parte de O Pequeno Príncipe. Esta é uma leitura que podemos fazer, de sátira à tacanhez, à limitação humana. Mas o livro é mais do que isto.


Eu situaria O Pequeno Príncipe dentro da tradição da novela filosófica francesa cujo grande mestre foi Voltaire. Novela não no sentido de novela da televisão, mas de uma obra literária mais longa que o conto, mas menos longa que o romance. Assim como no Cândido de Voltaire, temos o personagem que, com sua aparente ingenuidade, consegue enxergar mais fundo que as pessoas normais e acaba desconcertando-as. Quando o vendedor de pílulas contra a sede apregoa que, com seu produto, as pessoas terão mais tempo livre, o “ingênuo” principezinho responde que, se tivesse mais tempo livre, iria procurar um poço d’água. Especificamente, O Pequeno Príncipe guarda certa semelhança com o Micrômegas de Voltaire, que é a história de um gigante de Sirius que decidiu aventurar-se pelo Universo, visita o Sistema Solar e vem parar na Terra, dando a volta ao mundo e discutindo filosofia com os seres humanos. Também o principezinho visita vários asteroides/planetas e discute filosofia com os seres humanos. Quando ele diz que “o essencial é invisível aos olhos” está retomando a teoria de Platão do mundo das ideias. E quando diz que “não se vê bem a não ser com o coração” está refletindo o pensamento de Pascal de que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E ainda tem gente que acha que é um livro bobinho ou um livro de autoajuda. Bobinho uma ova.


Claro que este é um livro que permite mil leituras diferentes. Há quem veja o principezinho como um anjinho que caiu na Terra. E tem outra coisa: o príncipe morre, supostamente picado pela cobra, para poder subir de volta ao seu planeta sem ser atrapalhado pelo peso do seu corpo. O autor o vê “tombando devagarinho como tomba uma árvore”. Mas tem certeza de que voltou ao seu planeta porque, ao raiar do dia, não encontrou seu corpo. É a história da paixão e ressurreição de Cristo! Só que o “planeta” de Cristo é o reino dos céus!


Em seus voos pelo correio francês entre Buenos Aires e a França, Saint-Exupéry pousava para reabastecer no bairro florianopolitano de Campeche, que seria corruptela de champ de pêche, campo de peixe, como o escritor chamava a área. Pelo menos é o que contam aos turistas que visitam a aprazível capital santa-catarinense.