Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã (resenha)

Erasmo de Roterdã pintado por Hans Holbein

ELOGIO DA LOUCURA, DE ERASMO DE ROTERDÃ: SÁTIRA & SENSO DE HUMOR (resenha de IVO KORYTOWSKI)

 

Existem clássicos que a gente chega aos setenta anos e se dá conta de que ainda não leu, e aí pensa: é agora ou nunca. Um desses clássicos é o Elogio à Loucura, que enfim li neste final de 2023, embora o título já me fascinasse há muito tempo. Tanto é que o cito no meu hilário e fescenino “Elogio à Punheta”, do livro Édipo (comprem!), e na palestra que proferi na IV Conferência Brasileira de Tradutores do ProZ em 2012 (que você pode ler clicando aqui). Enquanto o que viria a ser nosso Brasil ainda pertencia aos índios e o colonizador europeu mal começava a explorar a costa, em 1509 Erasmo de Roterdã escrevia, em apenas sete dias, hospedado na casa de Thomas Morus, em Londres, um dos primeiros best-sellers da história do livro impresso, o hoje clássico Elogio da Loucura. Publicado em 1511, nele esculhamba tudo, debocha de tudo, satiriza tudo, fazendo desfilar por suas páginas toda a mesquinharia e pequenez desse (passo a palavra a Erasmo) “animalzinho, tão pequeno e de tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem”. Uma inversão de valores, onde a razão, o bom-senso, a seriedade são fustigados, enquanto a loucura é louvada. “Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que proporcionam aos mortais.”


“Loucura” não no sentido psiquiátrico das doenças mentais como esquizofrenia ou psicose maníaco-depressiva, mas – fazendo uma brincadeira com o nome do amigo Thomas Morus, a quem dedica a obra – no sentido da palavra grega Moria (μωρἰα), que, segundo o próprio autor, corresponde ao termo latino Stultitia, ou seja, estultícia, “atributo, característica do que é ou se apresenta de modo estúpido; tolice, parvoíce, estupidez”, segundo meu dileto Houaiss.


Trata-se de uma sátira à insensatez e irracionalidade humana, espécie de reductio ad absurdum em que, ao dar a palavra à “deusa” Loucura e permitir que elogie a si própria e o comportamento tresloucado que inspira ao ser humano, o autor no fundo expõe o absurdo de tal comportamento. Diz a Loucura: “Quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é justamente o que se adota com maior avidez. Perguntar-me-eis por que? Pois já não vos disse mil vezes? É porque quase todos os homens são malucos.”


A Loucura é apresentada como uma deusa, filha de Plutão, deus das riquezas, e Neotetes, “a mais bonita e alegre ninfa do mundo”. Nasceu nas lendárias Ilhas Afortunadas. Uma “divina mulherzinha”, como se autodenomina, “a única capaz de alegrar os deuses e os mortais”. Considera-se a deusa que mais democraticamente reparte suas benesses e, ao contrário dos demais deuses e deusas, não se zanga se os humanos não lhe erguem templos nem lhe fazem sacrifícios. (Como bom renascentista, Erasmo encarna o espírito da cultura greco-romana, à qual faz numerosas alusões.) “Nada se descobre de feliz e de alegre que não seja obra minha”, afirma a deusa Loucura. Bem como: “Nenhum homem pode viver feliz sem ser iniciado nos meus mistérios e sem participar dos meus favores.”


Ninguém escapa à lupa de Erasmo: os negociantes, “os mais sórdidos e estúpidos atores da vida humana”; os gramáticos, “ou sejam os pedantes”; os judeus, que “vivem satisfeitíssimos, à espera do seu Messias, e, muito longe de impacientar-se pela enorme demora, obstinam-se cada vez mais em esperá-lo”; os poetas que “fazem consistir toda a sua arte em impingir lorotas e fábulas ridículas para deleitar os ouvidos dos tolos”; os escritores, que “pensam, tornam a pensar, acrescentam, emendam, cortam, tornam a pôr, burilam, refundem, fazem, riscam, consultam, e, nesse trabalho, levam às vezes nove e dez anos [...] antes do manuscrito ser impresso”; os advogados, que “fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma”; os filósofos, que “enquanto se gabam de saber tudo, não estão de acordo em nada”; os reis, “divertindo-se diariamente nas caçadas, possuindo belíssimos cavalos, vendendo em benefício próprio os cargos e os empregos, servindo-se de expedientes pecuniários para devorar as energias do povo e engordar à custa do sangue dos escravos”, etc. Não escapam sequer os teólogos, embora, ao satirizá-los, o autor corra o risco de ser tachado de herege, algo perigoso na época, como deixa claro em seu texto:


Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como ursos furibundos, mordem-vos e não vos largam senão depois de vos terem obrigado a fazer a vossa palinódia (=retratação) com uma série infinita de conclusões; mas, se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges. E, mostrando essa cólera, chamando de herege, de ateu, conseguem fazer tremer os que não concordam com eles.

 

Mesmo correndo tal risco, Erasmo põe a boca no trombone, por exemplo, dizendo que “o principal objetivo dos nossos Ilustríssimos e Reverendíssimos consiste em viver alegremente, e, quanto ao rebanho, que dele cuide Jesus Cristo” e “nunca houve alguém que mais vivesse no ócio e na moleza do que um papa”. Com sua sátira corrosiva, chamou a atenção de Lutero, que procurou atraí-lo à sua causa. Mas Erasmo preferiu manter a independência intelectual.


Numa passagem digna de um Schopenhauer, escrita quase três séculos antes do nascimento do genial filósofo pessimista, escreve Erasmo:


Quando se reflete atentamente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma alta torre [...], todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incômodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel.

 

Sua visão do belo sexo: “Embora seja a mulher um animal inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e suave, e, vivendo familiarmente com o homem, saberá temperar com sua loucura o humor áspero e triste do mesmo.”


Quase no final da obra, num exercício de “exegese bíblica” – algo antes do Renascimento impensável, já que então se acreditava que o livro sagrado deveria ser tomado ao pé da letra, sem interpretações – Erasmo (pela boca da deusa Loucura) procura respaldar seu “elogio da loucura” em textos bíblicos. Por exemplo, “a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana” (1 Coríntios 1:25). Moral da história: “a religião cristã se coaduna perfeitamente com a loucura e não tem a menor relação com a sabedoria”. (E aqui Erasmo é tão convincente que a gente acaba na dúvida sobre se ainda está satirizando ou acabou se convencendo da tese da superioridade da loucura.) E Erasmo encerra seu Elogio com uma digressão brilhante sobre a dicotomia entre a visão materialista (“os que se ocupam somente com o Corpo”) e a visão espiritual (“os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma”) da vida humana.


Umas palavras sobre o autor: Conquanto se desconheça o ano exato (entre 1465 e 1469), sabe-se que Erasmo nasceu na madrugada de 28 de outubro na cidade neerlandesa de Roterdã. Filho ilegítimo de um padre com a filha de um médico, cedo ficou órfão, sendo enviado pelos tutores, junto com o irmão, para uma escola de disciplina rigorosíssima na cidade de Hertogenbosch. Embora se ordenasse padre, nunca “exerceu” plenamente a profissão, preferindo viver como um intelectual “free-lancer” itinerante, vivendo em diferentes cidade europeias, entre elas Paris (onde estudou teologia), Londres, Oxford, Basileia e Friburgo. Antecedendo as críticas de Lutero aos excessos da Igreja Católica, e embora convidado pelo reformador a se unir ao seu movimento, preferiu manter-se neutro, preservando assim a independência intelectual, o que acabou fazendo com que fosse criticado por ambos os lados, católico e protestante (veja-se que a polarização não é fenômeno recente!). Primeiro pensador pacifista da história e precursor da ideia da União Europeia, viu seus sonhos desmoronarem com a eclosão do fanatismo das guerras de religião. Seu Elogio da Loucura, em que, sob o manto da sátira, do bom-humor, desfere uma crítica contundente à insensatez humana, é uma das obras máximas do pensamento humano de todos os tempos. Embora cultivasse o latim, espécie de língua franca entre os intelectuais da época, suas últimas palavras, antes de expirar na Basileia, foram em sua língua natal: “Lieve God” ("Bom Deus").


Li a obra no volume X da coleção “Os Pensadores”, de 1972, que reúne O Elogio da Loucura de Erasmo e A Utopia de seu amigo Thomas Morus. A coleção era vendida na época em bancas de jornais e o livro, comprado quando eu cursava o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, jazeu cinco décadas na minha biblioteca, até que enfim, antes tarde do que nunca, eu me decidisse a lê-lo no alto de meus 72 anos. O autor da tradução e das notas do Elogio da Loucura foi um tal de Paulo M. Oliveira, que segundo pesquisa de Denise Bottmann divulgada no artigo “Uma vinheta” (disponível na Internet), seria um pseudônimo usado pelo jornalista Aristides Lobo, trotskista que passou vários períodos na prisão sob o Estado Novo.


Uma coisa ninguém pode negar: não falta a Erasmo o bom e saudável senso de humor que torna a vida mais leve.


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