As Mil e Uma Noites: Clássico dos Clássicos da Literatura Árabe 

Ilustração de Aldemir Martins para a edição de As Mil e Uma Noites em 8 volumes com capa dura da Editora Saraiva de 1961.

As mil e uma noites é um livro diferente de todos os outros em vários aspectos. Primeiro, sua origem nebulosa perde-se nas brumas do passado. Existe quem lhe atribua uma origem indiana, ou uma origem persa, ou quem sustente que a obra é tão tipicamente árabe que não pode ter tido uma origem não árabe. À semelhança da Bíblia, o livro foi obra de uma sucessão de autores, mas enquanto na Bíblia vários dos autores são nomeados – David, Salomão, Isaías, Jeremias, Mateus, Lucas etc. – em As Mil e Uma Noites os autores são completamente desconhecidos, não se tem a mínima ideia de quem teriam sido. Enquanto a Bíblia e outras obras tradicionais, como a Odisseia grega, a Eneida romana, possuem uma versão oficial, um texto padrão, As mil e uma noites possuem diferentes versões, heterogêneas, que não coincidem entre si. Depois temos a questão da oralidade: enquanto alguns especialistas sustentam que As mil e uma noites originam-se da tradição oral dos contadores de histórias nos cafés e mercados do mundo árabe, há quem afirme o inverso, que a obra antecedeu os contadores de histórias, que dela se valeram para ampliar seu repertório. Como diz o lusitano Hugo Maia no Preâmbulo de sua tradução da obra, “O Livro d’As Mil e Uma Noites tem a particularidade de se ter tornado simultaneamente, não só um dos livros mais conhecidos, mas também um dos mais desconhecidos da literatura universal.”


Não obstante todos esses mistérios, existem alguns pontos sobre os quais os especialistas contemporâneos (ou sua maioria) estão de acordo. Primeiro, o título As mil e uma noites, que Jorge Luiz Borges considerava “uno de los más hermosos del mundo”, originalmente tinha um significado simbólico. A obra não se compunha literalmente de mil e uma noites. Borges explica bem isto: “Dizer mil noites quer dizer infinitas noites, as muitas noites, as inumeráveis noites. Dizer ‘mil e uma noites’ é agregar um ao infinito.”


Acredita-se que As mil e uma noites derivam de uma “versão original” do final da Idade Média que se perdeu. Alguns elementos dessa versão, como a divisão em noites e a história-moldura do rei persa feminicida Xariar e da contadora de histórias Xerazade, seriam oriundos de uma matriz persa. Os manuscritos atualmente disponíveis que mais se aproximariam dessa versão original seriam aqueles do chamado “ramo sírio”, com destaque para o mais antigo, que pertenceu a Antoine Galland, hoje guardado na Biblioteca Nacional da França, e acessível na Internet. Esses manuscritos mais antigos possuem um núcleo comum de onze histórias que comporiam a “obra original”.


No contexto da moda do Orientalismo na Europa moderna, surgiu a primeira tradução ocidental de As mil e uma noites, do orientalista francês Antoine Galland, publicada entre 1704 e 1717, que não é bem uma tradução, e sim uma adaptação da obra, já que Galland extirpou os trechos mais eróticos, eliminou a parte poética – observe-se que a poesia é indissociável da cultura árabe tradicional –, acrescentou uma história originalmente independente, que não fazia parte de As mil e uma noites, que é a de “Simbad, o Marujo”, agregou histórias contadas pelo sírio cristão maronita Hanna Dyâb que não constavam dos manuscritos, aliás as que mais se celebrizaram, como “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa” e “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”.


A partir do século XVIII, no chamado “ramo egípcio”, as histórias começam a se multiplicar, numa tentativa de tornar o conteúdo da obra compatível com o título, completando literalmente as 1001 noites. A primeira edição árabe impressa contendo todas essas noites foi publicada na cidade alemã de Breslau, em doze volumes, entre 1824 e 1843. A primeira edição completa publicada num país árabe foi a de Bulaq, nome de um bairro do Cairo, de 1835. Depois surgiram as edições ditas completas em países europeus, como as de John Payne e Richard Burton na Inglaterra e de Joseph-Charles Mardrus na França.


Em língua portuguesa, o imperador D. Pedro II foi um pioneiro na tradução direta do árabe de As mil e uma noites. Ele não traduziu a obra completa, e suas traduções foram meros passatempos, sem tratamento editorial nem intenção de publicar. Durante todo o século XX as edições de As mil e uma noites à venda no mercado brasileiro foram retraduções ou do texto francês de Galland, ou daquele de Mardrus. Aliás, a retradução do texto de Galland, com apresentação de Malba Tahan, originalmente lançada pelas Edições de Ouro, continua sendo publicada até hoje, agora pela Harper Collins. Uma linda edição em capa dura, com belas ilustrações do artista plástico Aldemir Martins, da Editora Saraiva, publicada em 1961, que se fazia passar por uma tradução do árabe, já que na descrição constava o nome de Suleiman Khalil Safady como tendo feito o “cotejo de textos árabes”, na verdade era uma retradução da versão francesa de Mardrus.


Agora vou falar sobre as onze histórias que formam o núcleo comum de As mil e uma noites. A primeira é a narrativa moldura, que todos conhecem, do rei persa que, depois que sofreu uma traição, como vingança passou a matar todas as mulheres com quem dormia. No mundo moderno o ditador que mais se aproximou, em poder discricionário, desse rei persa foi o Stalin, que realmente mandava matar as pessoas a bel-prazer, sem processo, sem culpa, sem nada.


Depois vem a história do mercador e o gênio. Um mercador, quando pára para descansar de uma longa viagem, ao atirar ao longe uns caroços de tâmara, sem querer atinge o filho de um gênio, matando-o. Agora o gênio quer se vingar. Será que o mercador consegue se safar?


Na terceira história, “O Pescador e o Gênio”, um pescador azarado, que até então só conseguira pescar um burro morto e outras porcarias, enfim recolhe do mar um vaso de cobre que contém um gênio aprisionado milhares de anos atrás. E aí coisas do arco da velha acontecem com esse pescador.


Na quarta história, “O Carregador e as Três Jovens de Bagdá”, um carregador é contratado para transportar uma série de iguarias até um casarão onde moram três moças periguetes e acaba passando a noite lá, e todos se embriagam (interessante que, embora o islamismo proíba o consumo de álcool, os personagens de As mil e uma noites ignoram solenemente essa proibição), e aí se entregam a “beijinhos, beliscões, mordidelas”, as jovens mergulham nuas numa piscina – sim, As mil e uma noites, apesar dos filmes da Disney, não são uma obra de literatura infantil – e acontecem coisas do balacobaco, como a adesão ao grupo de três dervixes e a súbita chegada do todo-poderoso califa.


“A história das três maçãs”, que lembra uma história policial moderna, começa com um corpo decapitado de uma mulher encontrado num baú retirado do Rio Tigre. O vizir do califa é encarregado de localizar o assassino, mas ele não entende bulhufas de investigação policial, e entrega o caso ao destino. E nas histórias de As mil e uma noites o destino sempre surpreende!


“Os vizires Nuruddin Ali, do Cairo, e seu filho Badruddin Hasan, de Basra” é uma história de briga de irmãos com uma cena hilária de uma jovem que é obrigada a se casar com um corcunda horroroso, sendo salva pela interferência sobrenatural de um casal de gênios. 

Gênio em forma de gato assustando o corcunda na privada. Ilustração de Aldemir Martins para a edição de As Mil e Uma Noites da Editora Saraiva de 1961.

“O Corcunda do Rei da China” é uma história de humor negro cuja ideia central, tentativas sucessivas de se livrar de um cadáver, guarda certa semelhança com o enredo do filme O terceiro tiro de Alfred Hitchcock.


“Anisuljalis e Nuruddin Ali Bin Haqan” é uma história da fidelidade de uma concubina pelo seu amo, mesmo quando este empobrece e precisa se exilar em Bagdá. Ali ocorre uma passagem hilária em que o casal, sem ter onde morar, “invade” (a convite do jardineiro) o palácio do jardim do califa, sendo flagrado pelo próprio, disfarçado de pescador. O califa Harum-al-Hashid tinha este hábito de sair incógnito pelas ruas para sondar o povo.


“Nuruddin Ali Bin Bakkar e Samsunnahar” é uma história de amor tão trágica quanto “Romeu e Julieta”.


“O Rei Qamaruzzaman e Seus Filhos Amjad e Asad” é a história de dois filhos de reis que não querem se casar, trazendo grandes transtornos aos pais, até que, por interferência sobrenatural de um casal de gênios, passam uma noite juntos, e quando de novo separados, enlouquecem de saudades. E aí acontecem as mais inusitadas peripécias.


Jullanar, a Marítima, e Seu Filho Badr é uma história sobre os povos que vivem dentro do mar. Monteiro Lobato, em Reinações de Narizinho, também tem uma história do reino submarino das Águas Claras.


Agora vem a pergunta. Que tradução de As mil e uma noites ler? Se você quer o texto básico, contendo apenas este núcleo original, talvez goste da tradução portuguesa (de Portugal) direta do árabe do Nuno Maia, em três volumes. Pelo menos os dois primeiros tem em ebook, na Amazon. Se quer uma tradução fácil de ler, expurgada dos trechos pornográficos e sem a parte da poesia, leia a retradução de Alberto Diniz do texto francês de Galland, publicada pela HarperCollins. Se almeja uma edição bonita, ilustrada, e tem uns 500 reais para gastar, procure a edição da Saraiva num sebo ou no Mercado Livre. Agora se você quer mesmo uma tradução raiz, também direta do árabe, baseada em uma série de manuscritos antigos, fiel ao espírito do original, e rica em notas cheias de erudição, a pedida é a tradução do Mamede Mustafa Jarouche, que já chegou ao quinto volume. De início, compre só o primeiro para ver se você gosta.