terra incognita
George Berkeley e a terra incognita da filosofia: percepção, linguagem, ilusão
Everaldo Skrock
George Berkeley nasce em 1684 na Irlanda, filho de pais lutera-
nos. Faz seus estudos no Trinity College em Dublin e publica duas de suas
mais importantes obras com apenas 25 e 26 anos de idade: o Ensaio Para
uma Nova Teoria da Visão, em 1709, e o Princípios do Conhecimento Humano,
em 1710.
Berkeley faz várias viagens pela Europa como tutor de filhos
de aristocratas ingleses. Recebendo uma inesperada herança, planeja a
fundação de um colégio missionário nas ilhas Bermudas. Em 1728, após
receber do governo inglês a promessa de uma soma complementar para
a realização de seu projeto, Berkeley parte para os Estados Unidos, onde
reside por três anos em Newport, Rhode Island. Não recebendo o finan-
ciamento prometido, Berkeley volta à Inglaterra e a partir de 1732 passa
a exercer funções de prelado Luterano na cidade de Cloyne, Irlanda, até
sua morte em 1753.
Outras obras importantes de Berkeley:
Sobre o Movimento (1721); Alcyphron (1732); Teoria da Visão Defendida e Explicada (1733); O Analista (1734); Siris (1744).
As obras mais conhecidas de Berkeley são o “Princípios do Conhe-
cimento Humano” e o “Três Diálogos entre Hilas e Philonous”, não por acaso
as mais traduzidas e publicadas. A primeira, inacabada, é mais sistemá-
tica e caracterizada por uma cerrada disputa acadêmica. A segunda, na
tradição dos diálogos, que atravessa toda a história da filosofia desde Pla-
tão, é um livro de divulgação, destinado a um público amplo.
Já o “Ensaio para uma Nova Teoria da Visão” é eminentemente crítico
e propedêutico. Apesar da grande aceitação que obteve na época de sua
publicação, com o tempo foi sendo obscurecido pela grande repercussão
da tese defendida no Princípios: a "substâncis espiritual" e a "substância infinita" de Descartes podem ser unificadas em uma só substância: a "espiritual".
Tomando esta obra como referência, a história da filosofia até
muito recentemente apresentou Berkeley como um idealista excêntrico
que nega a existência da matéria fora do espírito.
Porém o Ensaio revela uma outra face de Berkeley. Ali a palavra
“substância” sequer é mencionada. O que salta aos olhos, por outro lado,
é o quanto Berkeley prenuncia uma estratégia que se tornará central à fi-
losofia do século XX: a busca das causas ocultas dos problemas filosóficos
aparentemente insolúveis. É este aspecto de seu pensamento que privile-
giamos na escolha dos excertos traduzidos para esta antologia.
Na época do assim chamado "grande racionalismo" (século XVII),
ocorre uma proliferação de filosofias que pode ser vista como sintoma
de um descompasso entre o evidente aumento do poder explicativo da
ciência moderna e o anseio da filosofia em desvendar os fundamentos
últimos dos processos que tornam possível o conhecimento e por conse-
guinte este progresso.
É exemplar, neste sentido, a grande quantidade de sofisticadas
respostas à questão tida por todos como fundamental neste momento:
como se dá a relação entre matéria e espírito? Apesar de pos
suírem naturezas evidentemente distintas estas duas realidades devem
poder se comunicar, caso contrário não haveria passagem possível da
percepção das coisas materiais para a enunciação de discursos científicos
sobre a realidade e nem desta para a produção das tecnologias que a
transforma e domina. No entanto, esta rica multiplicidade dos sistemas
pode também ser visto como um sintoma de fraqueza. Na introdução ao
Princípios, Berkeley lamenta: como garantir a credibilidade da filosofia
se, ao invés de responder a esta demanda por fundamentos e satisfazer
nossos anseios de paz de espírito, ela nos inunda com uma multiplici-
dade teorias que geram disputas e dúvidas e sem fim? Depois de fazer
levantar uma espessa poeira de palavras, a própria filosofia reclama por
não conseguir mais ver com clareza aquilo que aparece como claro e sem
problemas ao homem comum...
A relação de Berkeley com a linguagem é ambivalente. Sem palavras não
a teoria não é possível mas elas também são, por outro lado, numa espécie
de véu que recobre as aparências imediatas das coisas, evidentes antes de s
erem feitas objeto de ciência e de filosofia. A estratégia de Berkeley na Nova Teoria
da Visão consiste, pois, em colocar em questão o próprio sentido da per-
gunta que gera tantas respostas inconciliáveis entre si.
Se compararmos esta análise com uma investigação de tipo terapêutica, onde a cura depende de uma busca prévia das causas de um distúrbio, as múltiplas te-
orias que tentam resolver a questão aparecem como remédios paliativos
que oferecem alívio apenas momentâneo. O diagnóstico mais profundo
procurado por Berkeley visa a identificação das causas primeiras de cer-
tas ilusões que geram na filosofia a aparente necessidade de se procurar
por um fundamento metafísico da realidade percebida. Em outras pala-
vras, trata-se de esclarecer como e por que certas condições inerentes à
condição humana em seus diversos aspectos – percepção, ação, comuni-
cação – não só determinam a visão comum de mundo mais apropriada a
sobrevivência como também podem gerar questões metafísicas carentes
de sentido e portanto sem solução possível.
Em Descartes o mundo material é regido por uma regularidade
causal inexorável. A relação entre os objetos materiais e sua representa-
ção espiritual se funda nesta relação causal e também num mecanismo
de correspondência entre ideias e coisas que se funda, se não numa se-
melhança pura e simples, pelo menos numa correspondência estrutural e
constante. As coisas materiais são desta forma representadas no espírito.
A distinção entre qualidades primeiras e segunda, por sua vez,
tenta resolver a aparente contradição entre a infinita variabilidade das
sensações e a estabilidade sem a qual a realidade material não poderia
ser objeto de conhecimento. A cor ou o som, infinitamente variáveis, aci-
dentais, são exemplos de qualidades segundas. A extensão e o número,
expressões da própria essência da substância material, necessários, são
exemplos de qualidades primeiras.
Berkeley transfere o foco de supostas relações entre ideias-repre-
sentações e coisas-originais para as relações que as ideias mantêm entre
si. Os vários sentidos (visão, audição, tato etc.) passam a ser considerados
como as classes mais fundamentais nas quais as ideias estão organizadas.
A relação entre ideias pertencentes a duas classes distintas será caracte-
rizada como sendo de significação1 e não de representação. Ao contrário da
relação representativa, a significação não precisa ser fundada em causali-
dade ou semelhança. É uma relação convencional, contingente e portanto
não requer justificação em termos de relação necessária.
O problema que resta é o da justificação da regularidade destas re-
lações contingentes, pois obviamente não seria possível a ciência e nem
a ação humana mais simples sem um mínimo de estabilidade na relação
entre ideias. Em Descartes Deus (substância infinita) garante a necessária
correspondência entre as representações e as coisas (substância espiritual e
substância material). Para Berkeley as aparências sensíveis constituem uma
linguagem divina. Por ser uma linguagem, torna-se obsoleto o problema
da justificação de uma relação necessária entre as ideias e as coisas. Por ser
divina fica garantida a regularidade das relações significante, sem a qual a
realidade seria tanto inabitável quanto ininteligível. O mundo material con-
tinua sendo tão real quanto em Descartes mas desaparece a necessidade de
se supor algo para além de sua aparência sensível. Trata-se evidentemente
de uma ontologia mais econômica: a quantidade de substâncias é reduzida
ao mínimo, a realidade é simplificada, o problema da correspondência en-
tre substâncias é dissolvido e mesmo problemas ópticos resistentes à expli-
cação pela óptica geomética recebem soluções satisfatórias.
Mas por que o modelo cartesiano parece mais “natural”? Esta é
a questão fundamental que Berkeley quer esclarecer nos fragmentos da
Nova Teoria da Visão que aqui apresentamos. A eficácia da ação neces-
sária à sobrevivência (obtenção de alimentos, fuga, acasalamento etc.)
depende de um poder de previsão cuja diferença em relação ao poder
de antecipação da razão é apenas de grau. O espaço visual é constituído
por um conjunto de índices que evocam o tempo necessário para que o
corpo entre em contato direto (tátil) com as coisas. As coisas percebidas
ganham unidade e individualidade por serem objetos da ação humana,
antes de serem objeto do pensamento ou da linguagem.
Apesar de parecer evidente que as ideias dos diversos sentidos são diversos aspectos de uma mesma coisa, uma análise crítica mostra que isto decorre mais de uma crença
do que uma necessidade lógica. Ideias auditivas, visuais e táteis são to-
das signos enquanto cumprem esta função antecipadora, mas heterogê-
neas entre si se consideradas nelas mesmas.
Mas por que, então, a concepção comum de mundo transmuta-se
no problema metafísico da justificação de uma realidade transcendente
à percepção? Porque a esta imagem “natural” do mundo – que em cada
espécie animal varia de acordo com o aparato biológico que possui (nota 2) –
vem se sobrepor, no caso humano, a linguagem das palavras, sobretudo
em sua função básica de nomeação. Aristóteles já afirmava que as coisas
são infinitas, enquanto que as palavras são em número limitado(nota 3). A lin-
guagem só pode funcionar, pois, se uma palavra puder significar várias
coisas ao mesmo tempo. O problema é que ela pode nomear coisas per-
tencentes a gêneros distintos. Com isso o que era uma relação puramente
analógica passa a ser considerada, como resultado do uso reiterado da
linguagem, uma relação natural e necessária. Dito de outra maneira, o
que era metáfora passa a receber um sentido literal que vai sendo cris-
talizado com uso. No próprio processo de significação, entre ideias de
diversos sentidos ou entre palavras e ideias, o significante e o significado
recebem um mesmo nome. Daí nossa tendência natural, diz Berkeley,
em considerar como sendo de mesma natureza ideias tão heterogênas
quanto as da visão e as do tato. A palavra “mesa”, enquanto significante,
é uma marca sensível, possui uma realidade própria, revelada por qua-
lidades particulares (determinada cor, tamanho etc.) e portanto poderia
receber um nome próprio. Mas não damos a ela um nome específico por-
que o que nos interessa é sobretudo o que é significado (a mesa “real”
com a qual interagimos). Do mesmo modo, uma ideia visual tampouco
recebe um nome distinto da ideia tátil que ela substitui e antecipa. Desde
que começamos a exercer a faculdade perceptiva na primeira infância,
a conexão entre imagem visual e imagem tátil é tão constante e regu-
lar que sua identidade, de tão óbvia, jamais é questionada. E porque os
mesmos signos visuais representam as mesmas ideias táteis para todos
os homens e em todos os lugares, seu caráter convencional deixa de ser
reconhecido como tal. Desde que começamos a dominar a linguagem, a
palavra “mesa” significa tanto a mesa visual quanto a mesa tátil. Mui-
to dificilmente podemos deixar de assim considerá-la, da mesma forma
como é praticamente impossível ver ou ouvir o nome de uma pessoa sem
que sua fisionomia nos venha imediatamente à memória. Esta relação
analógica entre ideias de diversos sentidos, reforçada pelas palavras que
as nomeiam, adquire uma aparência de literalidade que, útil e necessária
na vida prática, é geradora de falsos problemas quando se torna objeto
de uma filosofia obcecada por fundamentos metafísicos.
“Se um cego de nascença passasse a ver e a ele fosse apresentado um cubo
e uma esfera que ele anteriormente conhecera apenas com o tato, seria ele capaz
de dizer qual é o cubo e qual é a esfera utilizando-se apenas da visão?” Esta é a
formulação clássica do famoso “problema de Molyneux”, que instigou
não só Berkeley como vários pensadores de sua época. Esta questão fas-
cinava tanto porque acreditava-se que sua solução resolveria questões
filosóficas importantes, como o problema da existência das ideias inatas.
Berkeley a retoma porque acredita ver ali a possibilidade de uma prova
empírica adicional da tese da heterogeneidade essencial entre as ideias
de diferentes sentidos. A resposta que ele sugere é decididamente nega-
tiva: o cego que recobrasse a visão não poderia perceber imediatamente
o mundo visual tal como nós estamos acostumados a fazê-lo. Seria neces-
sário um tempo de aprendizado para que pudesse “ler” as informações
trazidas pela luz e pelas cores aos seus olhos, ou seja, para que pudesse
relacionar ideias visuais com sensações táteis, tivesse uma noção exata
dos objetos como coisas separadas do todo, concebesse as ideia de figura
e fundo, distância, tamanho, posição etc.
O fato é que esta experiência de pensamento acabou se tornando
uma experiência real com a realização da primeira operação de cataratas
pelo cirurgião inglês William Cheselden em 1728. Apesar de Berkeley
apresentar o resultado da operação do cego como favorável a si, o desdo-
bramento futuro da questão4 mostra que todos foram vítimas da ilusão
de que uma questão metafísica pudesse ser resolvida por experimentos
empíricos: jamais se chegou a uma conclusão definitiva porque, ironica-
mente, nunca se alcançou consenso sobre a interpretação a ser dada ao
relato que o cego operado faz de sua experiência subjetiva!
1Significação entendida como “substituição”, “estar no lugar de”.
Associada ao hábito e à memória, pode também pode ser entendida como “antecipação”: se percebo regularmente ideias de um sentido associadas à ideias de outro sentido, a cada vez que percebo as primeira antecipo a percepção das segundas.
2UEXKÜLL, J. Von. Mondes Animaux et Monde Humain, Tradução do original alemão de Georges Kriszat. Paris: Danöel, 1965.
3ARISTÓTELES, Refutações Sofísticas, 1,165,a,16.
4PROUST, J. (Org.). Perception et Intermodalité: Approches actuelles de la question de Molyneux. Paris: PUF, 1997.
SUGESTÕES DE LEITURA:
Principais obras de Berkeley traduzidas Para o Português
BERKELEY, G. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano e Três diálogos entre Hilas e Filonous. Tradução de Antonio Sergio. São Paulo: Abril Cultura,1980. (Coleção Os Pensadores).
BERKELEY, G. Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão e A Teoria da Visão Confirmada e Explicada, in Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas: C.L.E. Unicamp, Série 3, v. 18, nº 2, págs. 447-584, julho-dezembro/2008. Trad. de José Oscar de Almeida Marques.
Obras sobre berkeley
BERMAN, D. Filosofia experimental de Berkeley. São Paulo: Unesp, 2000.
STRATHERN, P. Berkeley em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
PROUST, J. (Org.). Perception et Intermodalité: Approches actuelles de la question de Molyneux. Paris: PUF, 1997.
AUDIOVISUAIS
À PRIMEIRA VISTA. Direção de Irwin Winkler. Estados Unidos: Fox/Videolar, 1998. 1 DVD, (126 min.): son., col., NTSC.
JANELA DA ALMA. Direção de Walter Carvalho e João Jardim. Brasil: Europa Filmes, 2002. 1 DVD, (73 min.): son., col., NTSC.
(Clique na imagem para ampliar.)