teseberkeley3.2-termos-teoricos
III.2 - Termos Teóricos
Dentre as várias formas de significação das palavras, temos também aquela própria dos
termos utilizados pela ciência. A filosofia berkeleiana da ciência decorre direta e
coerentemente de sua crítica da linguagem. Têm-se atribuído a Berkeley o rótulo de
instrumentalista, comparando-o por exemplo com a posição de Cardeal Belarmino, que na
época de Galileu afirmava não ser de maior importância o que a ciência oferecia como
explicação dos fenômenos, desde que isto não afetasse a realidade mesma das coisas uma vez
por todas estabelecida pelas escrituras. Ainda que entre os dois haja em comum um ideal
apologético, veremos que a posição de Berkeley é mais sofisticada e só compreensível no
contexto de seu projeto filosófico mais geral.
A ciência quer explicar a natureza. Esta é, para Berkeley, um rico sistema de signos que se
relacionam de uma forma constante e regular e que portanto pode ser chamada de linguagem.
As leis da natureza são expressões, em nossa linguagem de palavras, destas relações
regulares entre idéias. (84) As teorias científicas são, então, uma espécie de metalinguagem.
A linguagem tem como origem um propósito prático. Assim como a própria relação
significante entre idéias (a "linguagem natural"), a linguagem científica busca ampliar o
poder de previsão em função da conservação e do conforto humanos. Por isso justifica-se a
utilização, nas teorias científicas, dos assim chamados termos teóricos. Estes são necessários
para que esta linguagem científica cumpra sua função mas, assim como os termos gerais na
demonstração, não precisam nomear idéias abstratas para serem significantes. É exatamente o
mesmo que acontece com os termos gerais da linguagem comum: seus significados não são
necessariamente idéias particulares evocadas a cada vez que são utilizados e nem por isso
deixam de cumprir seu papel como instrumento de comunicação. Significar, insiste sempre
Berkeley, não é apenas nomear idéias. A crença segundo a qual os termos teóricos da ciência
nomeiam entidades determinadas é indissociável da crença materialista. Merece, por isso, ser
combatida tanto quanto esta e Berkeley faz a sua crítica lançando mão da mesma estratégia já
utilizada contra aquela: a análise de sua origem.
A teoria da ciência deveria integrar o que Berkeley planejava como sua obra maior e que
acabou sendo reduzida ao Principles que conhecemos, isto é, à sua primeira parte. Para
compensar sua ausência ali, Berkeley escreve um texto mais curto, o De Moto, onde procura
elucidar o estatuto da significação dos termos teóricos da ciência, em especial aqueles direta
ou indiretamente relacionados ao movimento, como "força", "gravidade", "atração", etc.
Estas palavras possuem um uso e uma utilidade inegáveis em ciência, mas eles não nomeiam
qualidades ocultas ou idéias abstratas. Uma coisa é, por exemplo, a sensação física que se
tem do peso dos corpos e do esforço necessário para movê-los, outra coisa é a generalização
"gravidade" ou "força" com as quais a ciência faz suas demonstrações.
Quanto à significação própria dos termos utilizados pela matemática, como os números,
Berkeley afirma que eles são, antes de tudo, criação da mente tendo em vista uma operação
sobre a realidade. A palavra "um" pode ter tantos sentidos quantos se decida, pois se
relaciona a qualquer recorte arbitrariamente efetuado sobre a totalidade das coisas: podemos
dizer que vemos uma janela e uma porta mas também podemos dizer que vemos uma casa à
qual pertencem um grande número de janelas e portas ou que um grande número de casas
constituem uma cidade. A unidade é aquilo que se decide chamar de "um". Ou ainda, usando
outra analogia, diz Berkeley no Principles: uma mesma extensão pode ser dita uma ou cem
segundo seja escolhida como unidade de medida o centímetro ou o metro; podemos dizer que
temos na mão um livro ou trezentas páginas ou cinco mil linhas, e assim por diante. A
doutrina corrente dizia que o número é algo inerente às coisas, ou seja, uma qualidade
primeira. Para Berkeley a crítica a esta crença é a mesma que se aplica às idéias abstratas: a
unidade não é nada sem as idéias às quais decidimos atribuí-la e estas não podem ser
desprovidas de qualidades percebidas. A unidade como "idéia simples que acompanha todas
as outras", tal como pensava Locke, só poderia ser uma idéia abstrata. Mas a combinação de
idéias que chamamos de "um" é arbitrária e as idéias abstratas são impossíveis.
É segundo este mesmo processo que está na origem das unidades que chamamos de "objetos
particulares da percepção". Como já vimos, esta unidade é uma abstração (em seu sentido
lato), das diversas modalidades sensíveis às quais as idéias particulares que a constituem
podem pertencer. Por outro lado, o fato de toda unidade ser arbitrária não significa que cada
um cria um mundo privado, decidindo arbitrariamente quais e que tipos de objetos vão
povoá-lo. A natureza é, lembremos, uma linguagem, e para que esta funcione como tal é
preciso que haja regularidade e constância na relação significante. Todos reconhecemos - já
que somos todos igualmente sujeitos daquele processo de estabelecimento de unidades na
percepção e de sua subsequente cristalização na linguagem - um certo número de objetos no
mundo e nos comunicamos atribuíndo a eles certos nomes conhecidos por todos. A estrutura
do mundo é a estrutura da linguagem, mas não, como queria Aristóteles, por uma
necessidade intrínseca do mundo e sim porque é esta imagem de mundo que resulta da
constituição de nosso aparato perceptivo e da linguagem que a ele vem acoplada. (85)
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