teseberkeley1-introdução

I - Introdução

A filosofia de Berkeley foi por muito tempo vista como uma simples curiosidade entre os

empirismos "sérios" de Locke e Hume. Kant em muito contribuiu para a cristalização da

imagem estereotipada de um Berkeley ingenuamente idealista. É somente no início deste

século que esta filosofia começa a ser retomada num intento sério de redescoberta de suas

intenções originais. Os preconceitos vão sendo aos poucos abandonados e hoje a vemos

ocupar um lugar de primeira importância na história da filosofia moderna. Atualmente o

crescente entusiasmo pelo estudo de Berkeley revela-se, por exemplo, na recente tradução de

suas obras completas na França, na grande quantidade de teses que o tomam por objeto e de

publicações que procuram esclarecer aspectos ainda pouco explorados de sua obra. (1)

Bergson (2) chamou a atenção para a importância do pensamento de Berkeley e procurou

identificar a causa de sua má recepção inicial ao tomá-lo como modelo em seu ensaio A

Intuição Filosófica. Para Bergson a filosofia de Berkeley - assim como toda boa filosofia - é

uma busca, nunca inteiramente concluída, da melhor expressão para uma intuição, tão

original e tão simples que não se deixa nunca traduzir em palavras com a perfeição que o seu

autor desejaria. No caso de Berkeley, uma apreensão aproximada desta intuição original

dependeria necessariamente de uma consideração atenta da relação de dependência existente

entre as várias facetas - à primeira vista heterogêneas - de sua filosofia: a Teoria da Visão, o

Nominalismo, o Imaterialismo e a Apologética. Sendo cada um destes aspectos parte

inseparável de um todo internamente coerente, a tentativa de apreensão de um deles

isoladamente (o imaterialismo) teria sido a causa maior dos mal-entendidos e reducionismos

dos quais o pensamento de Berkeley foi vítima. Nos passos desta análise bergsoniana,

tentaremos justificar a hipótese segundo a qual uma das maiores causas dos preconceitos que

o pensamento de Berkeley sofreu em certos meios filosóficos está em uma compreensão

inadequada - senão numa completa ignorância - de toda uma parte fundamental de sua obra

que precedeu o Principles of Human Knowledge.

A filosofia da época de Berkeley caracteriza-se pela grande importância dada à tese

representacionista. Diz ela que a realidade pode ser dividida em dois grandes gêneros: o dos

objetos materiais e o dos objetos espirituais. Diz também que estes últimos são causados

pelos primeiros e que a eles se assemelham de alguma forma. Os objetos espirituais ou

mentais são chamados tanto de representações quanto de idéias segundo o enfoque particular

e a escola à qual pertencem os diferentes autores. O problema que a todos ocupa neste

momento é o da possibilidade de comunicação entre estas duas categorias mais gerais, e isto

é amplamente aceito como a única via possível a uma teoria dos fundamentos do conhecimento.

Porém à grande multiplicidade de respostas a esta mesma questão soma-se a

mais completa ausência de consenso entre seus proponentes e com isso o ceticismo passa a se

apresentar como uma alternativa cada vez mais tentadora aos inconformados. O crescimento

do ateísmo passa a ser uma consequência natural deste processo e é justamente em vista da

defesa da religião que Berkeley recorre a um discurso apologético que se apóia em uma

teoria da percepção e da linguagem inusitada para a época mas profética em relação ao futuro

da filosofia.

Berkeley parte de um questionamento do seguinte tipo: "Por que chegamos a tal ponto?

Como podemos assistir a um progresso triunfante da ciência, que nos fornece provas claras

das capacidades da razão humana, e ao mesmo tempo continuar sujeitos a tamanha

impotência quando se trata de justificar filosoficamente o conhecimento? Se somos capazes

de alcançar resultados tão promissores na ciência é porque os instrumentos cognitivos com os

quais fomos dotados são adequados e podem ser muito eficientes. Em que consiste então o

verdadeiro problema?" Berkeley nos apresenta a resposta na Introdução ao Principles: na

origem dos problemas que atormentam a filosofia estão os falsos princípios, ou seja, os maus

pontos de partida, os axiomas viciados por pressupostos cujas origens remontam a formas

pré-discursivas de apreensão da realidade.

Estes falsos princípios de que fala Berkeley são certas teses iniciais jamais questionadas e

que levam a filosofia a formular questões insolúveis a respeito do conhecimento e da própria

linguagem. Mas o que explica a força destas crenças para que elas tenham permanecido

intocadas durante tanto tempo? A suspeita de Berkeley é de que os pressupostos sobre os

quais elas se assentam sejam inerentes aos próprios mecanismos naturais que tornam possível

a linguagem. É sobre esta questão precisa que ele passa então a dirigir seus esforços e

concentrar toda sua atenção. A última teoria da linguagem que Berkeley tem à mão é aquela

do Ensaio sobre o Entendimento Humano. Chama a atenção ali a grande importância dada

por Locke ao processo que ele chama de abstração. Este seria um processo mental prévio e

imprescindível à generalização das palavras, sem a qual a linguagem seria impossível. No

modelo lockeano (3)a significação é antes de tudo nomeação e por isso o termo geral, para

ser significativo, precisa necessariamente nomear uma idéia. Locke chama esta idéia de

"abstrata" e afirma ser ela constituída pelas características comuns a cada um dos

componentes de uma classe (gênero ou espécie) de objetos. Para Berkeley, a importância

dada por Locke à abstração pode ser vista como uma boa pista para a compreensão de como

o funcionamento natural da linguagem determina não só as doutrinas filosoficas tradicionais

mas também as próprias teorias da linguagem mais recentes daquela época. Berkeley quer

mostrar na Nova Teoria da Visão que a abstração não é intrínseca à linguagem e sim que ela

nasce da conjunção da percepção com a linguagem. A teoria da abstração de Locke seria a

expressão em forma de filosofia de um mecanismo mais fundamental que, uma vez

desvendado, poderá se constituir na tão procurada chave para a resolução do problema

dualista: ficando provada sua dependência da própria linguagem, pode o representacionismo

ser descartado como pseudo-problema, deixando livre o caminho para a construção de uma

teoria da linguagem e do conhecimento sobre bases inteiramente novas.

O que aparecerá como mais importante e mais nefasto dos falsos princípios será portanto a

crença na abstração como fundamento necessário e explicação da generalização. Porém

Berkeley só chega a este resultado ao final de um longo percurso. Se o ponto de partida é a

teoria da linguagem de Locke e a ontologia que esta pressupõe, o ponto de chegada será a

proposição de uma alternativa a esta mesma filosofia. É este momento culminante, quando os

resultados obtidos ao longo do percurso são apresentados em um discurso fortemente

marcado por tons apologéticos, que passou para a história como sendo a melhor expressão de

toda a filosofia de Berkeley. Nossa atenção deverá se concentrar, pelo contrário, no próprio

trajeto percorrido. A reconstituição de alguns de seus momentos mais importantes nos reterá

em toda a primeira parte do trabalho. Esta consistirá essencialmente em uma análise de

alguns tópicos da Nova Teoria da Visão, sempre procurando sublinhar seu duplo aspecto de

teoria da percepção e da significação. É só então que tentaremos mostrar de que forma a

teoria do conhecimento e a ontologia que Berkeley apresenta como alternativas ao dualismo

decorrem naturalmente destas investigações e delas retiram toda sua força. Veremos que esta

nova proposta nada tem a ver com idealismo nem com ceticismo. Pelo contrário, caracteriza-

se por uma adesão incondicional à realidade tal como nos é dada antes que a filosofia

coloque em dúvida a possibilidade de a conhecermos.

Para Berkeley a linguagem das palavras é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo

instrumento valiosíssimo e fonte de todos os problemas insolúveis que atormentam a

filosofia. Os nomes estão ligados às coisas nomeadas por razões acidentais. Porém as

relações significantes, em decorrência mesmo de sua grande utilidade, são constantemente

reforçadas pelo hábito e por isso dificilmente podem ser desfeitas. Tanto isto é verdade que,

por exemplo, dificilmente conseguimos ouvir uma palavra de nossa língua materna sem

imediatamente nos reportarmos ao seu significado. A análise da percepção levada a cabo na

Nova Teoria da Visão procura mostrar que esta contingência já caracteriza a significação

numa região cognitiva ainda anterior à das palavras. Mais ainda, estas só podem se constituir

em signos porque idéias já se relacionam entre si de forma significante. A passagem

insensível da experiência da regularidade para a previsão da repetição está na origem da

noção metafísica de causalidade e da crença segundo a qual as relações significantes são

necessárias. As palavras em muito contribuem para reforçar esta crença e assim levar os

filósofos a acabarem por lhe atribuir um status de tese. Berkeley acredita que a filosofia só

pode ser bem sucedida na tarefa de dissolução deste pseudo problema se conseguir, antes

mesmo de contestar abertamente a tese, indicar sem ambiguidades o processo de sua gênese.

E Isto ele o faz mostrando que o parentesco das palavras com as idéias reside em sua função

comum de significação, entendida como muito mais do que nomeação.

A forma sui generis que a obra de Berkeley acabou por adquirir resultou de um conflito entre

a convicção de que as palavras - porque enganadoras - devem ser usadas com parcimônia e

um ideal que só poderia ser atingido com um discurso voltado sobretudo para o

convencimento. Este objetivo é muito preciso: a defesa da fé contra o ceticismo que está na

origem do ateísmo. Um ceticismo particular, próprio do contexto moderno, caracterizado

basicamente pela descrença na possibilidade de uma justificação da correspondência entre as

representações sensíveis e as coisas que, supõe-se, as causam. Com efeito, para a ciência

moderna a natureza é regida por leis que podem ser explicadas por uma causalidade

meramente eficiente e com isso Deus perde o lugar privilegiado que possuía como causa final

para a qual apontavam todos os eventos da natureza. A Berkeley parece que em Descartes e

nos cartesianos as prova da existência de Deus - que deveriam garantir a possibilidade da

representação - não são suficientes para anular os efeitos negativos da simples possibilidade

da dúvida. A prova disto é, para Berkeley, a multiplicação constante do ceticismo e dos

inimigos da religião. Mas, ao mesmo tempo, Berkeley não pode negar as conquistas da nova

ciência. Os novo modelos matemáticos tornam possível a construção de instrumentos de

grande utilidade e portanto é inegável o progresso instrumental que as novas teorias

proporcionam. Berkeley reconhece, portanto, a importância da ciência moderna mas combate

o dualismo que ela ao mesmo tempo pressupõe e reforça. Engaja-se então na tarefa de

mostrar a necessidade de se fazer uma distinção clara entre a eficácia instrumental e as teses

metafísicas que sustentam as teorias; de mostrar que o progresso da ciência pode ser

facilitado com o uso de um modelo matemático e mecanicista mas que este é apenas um

modelo, historicamente contingente, cujos pressupostos podem facilmente se transformar em

teses e em seguida degenerar em dogmas. Para Berkeley, aceitar a ciência não implica na

aceitação da tese dogmática do materialismo. Desde que a tese dualista perca seu caráter de

necessidade, o problema da justificação da relação entre substância material e substância

espiritual perderá sua consistência, deixará de fazer sentido a dúvida sistemática nos sentidos

e a ciência poderá ganhar um novo estatuto.

Berkeley pretende garantir ao filósofo a mesma serenidade que acompanha o uso comum da

linguagem, desfazendo os problemas insolúveis que normalmente o exaspera. Porém para

fazer isso é preciso dirigir-se não ao senso comum e sim aos próprios filósofos. E para ser

por eles compreendido é preciso falar sua própria linguagem, uma linguagem marcada por

séculos de uso abusivo. Berkeley não tem muitas alternativas: ou bem cria todo um novo

vocabulário, com termos novos para cada uma das noções-chave de sua filosofia - correndo o

risco de pregar no deserto - ou então utiliza este mesmo vocabulário e tenta aos poucos

mostrar sua origem e seus condicionamentos, correndo agora o risco de ser mal interpretado.

Tocar em pressupostos consensualmente tidos como básicos na filosofia pode ser visto como

uma atitude não só irreverente mas sobretudo anti-filosófica. Por isso Berkeley é obrigado a

dissimular, pelo menos num primeiro momento, a radicalidade das teses que pretende

defender. Toda sua obra é marcada por esta tensão entre a necessidade de criticar os

pressupostos metafísicos da ciência e filosofia de sua época e ao mesmo tempo ser um

pensador de seu tempo, falando uma linguagem inteligível aos seus contemporâneos. A

primeira parte da Nova Teoria da Visão possuía, neste contexto, uma importância estratégica

chave: resolvendo certos problemas da óptica científica de então, Berkeley pretendia seduzir

os homens de ciência e ao mesmo tempo minar os fundamentos geométricos desta e das

ciências geométricas e mecânicas em geral, mostrando que sua eficácia instrumental não

dependia necessariamente dos pressupostos metafísicos que as apoiavam. Berkeley sabe que

suas convicções são por demais exóticas para os padrões vigentes e que portanto suas idéias

correm o risco de ser rejeitadas simplesmente por incompreensão. Sua estratégia consiste em

dissimular teses muito radicais em um discurso que é científico em seu estrato mais

superficial. Suas intenções críticas mais amplas e profundas se tornarão manifestas apenas na

segunda parte do livro.

Estas exigências retóricas resultam em um discurso no qual uma concepção revolucionária da

percepção e da linguagem é apresentada na roupagem terminológica própria do século XVII,

o que gera uma dificuldade de identificação entre o que é realmente a expressão desta nova

concepção e aquilo que normalmente está oculto sob esta camada discursiva mais superficial.

Acrescente-se a esta dificuldade o fato de os escritos publicados de Berkeley serem

apresentados em uma forma bastante original: Berkeley prefere, ao invés de dividir o texto

em capítulos ou outros tipos de subdivisões, encadear seções que são em geral unidades

autônomas, quase aforísticas, dispostas em uma continuidade temática e no mais das vezes

referindo-se a outras seções, alhures no próprio texto ou mesmo em outras obras. Estas

características fazem com que a obra de Berkeley se pareça mais com uma rede de conceitos

que se comunicam, cada um com vários outros, do que com os sistemas dedutivos mais

comuns na época. (4)

Em consequência desta inevitável contingência, a obra de Berkeley está marcada pela tensão

entre duas formas de argumentação. A primeira delas, que chamaremos de "dialética", é

clássica: consiste num ataque frontal e direto às metafísicas, teorias científicas e teorias da

linguagem de inspiração materialista, procurando mostrar que suas soluções não são boas

porque geram consequências contraditórias. Esta forma de discurso é reveladora do caráter

em última análise apologético da obra de Berkeley: é preciso obstruir todos os caminhos que

possam levar à dúvida e ao ceticismo. O materialismo é, portanto, um alvo preferencial. No

entanto, ainda que a refutação dialética mostre que as teses materialistas geram absurdos, ela

não fornece uma prova positiva da verdade do não-dualismo. Neste nível de argumentação as

duas teses antagônicas são dogmáticas e podem igualmente ser colocadas em dúvida. (5) Daí

a necessidade da segunda forma de argumentação, que chamaremos de "crítica". Consiste ela

em mostrar como se dá, simultaneamente, a constituição dos objetos da percepção e dos

significados das palavras. É neste momento, numa esfera ainda muito próxima da ação, que

nasce o dualismo enquanto postura natural. Na refutação dialética a linguagem não é objeto

de investigação, ela é usada "instrumentalmente". Mostrando a origem dos prejuízos dualistas

e a natureza pragmática da linguagem, Berkeley dá um passo além: revela as condições por

assim dizer pré-linguísticas da linguagem e traz à tona mecanismos que não podem entrar em

jogo na argumentação dialética pelo fato mesmo de lhe serem logicamente anteriores.

Desvendar estes mecanismos é desvendar a origem da tese dualista nos condicionamentos

próprios da linguagem comum e da atitude realista comum. O discurso dialético utiliza a

linguagem pragmaticamente com o objetivo de refutar a tese materialista. A análise crítica

vai mais longe, pois mostra que sem uma investigação das origens da própria linguagem o

alcance do debate pode ficar comprometido pelas limitações que decorrem de seu uso

natural, não-filosófico.

Estas duas formas de discurso aparecem em geral mais ou menos misturadas: na segunda

parte da Nova Teoria da Visão temos um dos momentos fortes da argumentação crítica, mas

em sua primeira metade as soluções aos problemas ópticos constituem uma contestação direta

das teses geométricas. Na Introdução ao Principles, a argumentação é aparentemente crítica mas

na verdade Berkeley lança mão ali de um discurso sobretudo dialético. (6) O discurso

anti-materialista do corpo do Principles e dos Três Diálogos, por sua vez, são os exemplos

maiores de uma argumentação francamente dialética.

Muitos comentadores têm privilegiado em suas análises a estratégia de comparar a filosofia

de Berkeley com o pensamento contemporâneo, tentando elucidar seus pontos obscuros à luz

dos recentes desenvolvimentos da análise da linguagem e mesmo da psicologia cognitiva.

Assim por exemplo, Daniel Flage em Berkeley's Doctrine of Notions define "noções" como

"atos intencionais", diz que os dois tipos de noções são análogos aos dois tipos de

conhecimento - "by acquaintance" e "by description" - de Russel, afirma que a concepção de

significação dos termos gerais de Berkeley é do tipo "extensional" e que os aspectos passivo

e ativo da alma na percepção podem ser explicados pela distinção entre "sensação" e

"percepção". Outro comentador que faz este tipo de análise é Colin Murray Turbayne, que no

The Mith of Metaphor atribui a Berkeley os conceitos de "confusão categorial" de Ryle, e de

"explicação" de Hempel, entre outros. Temos ainda Richard Brook, que identifica na

distinção berkeleiana entre definição e significação a mesma distinção de Frege entre sentido

e significado; S. K. Land, que vê em Berkeley um precursor de Saussure; vários outros que o

consideram um precursor da semiótica e Newton Smith que rotula de "instrumentalista" sua

filosofia da ciência. Estes comentadores possuem o inegável mérito de trazer o pensamento

de Berkeley para o debate contemporâneo, porém este tipo de análise deixa sempre a

incômoda sensação de uma injustificada pretensão de que nosso tempo possui a verdade da

filosofia de uma época passada, que nosso instrumental teórico é mais perfeito e que estamos

em melhores condições de esclarecer o que de obscuro existe nos autores que nos

precederam. É verdade que são muitos os desdobramentos das idéias de Berkeley na história

da filosofia e da ciência posteriores. Berkeley está, por exemplo, na origem de uma rica

tradição de investigação científica da percepção do espaço. Seu livro sobre a visão provocou

críticas e elogios em seu tempo e nunca deixou de ser citado. Quem primeiro a tomou a sério

as teses de Berkeley a este respeito foi John Stuart Mill, que as defende em uma célebre

polêmica com Samuel Bailey. (7) Mais tarde, estas idéias serão retomadas por Helmholtz,

que em sua Optica Phisiológica desenvolve ou critica muitos dos temas caros a Berkeley. (8)

Este modelo de percepção do espaço só foi sériamente contestado no interior da tradição

empirista pela obra recente de James Gibson, que pretende mostrar a impropriedade da

distinção sensação/percepção, propondo uma teoria que afirma serem as qualidades

definidoras do espaço sempre imediatamente percebidas. (9) Quanto à posteridade de

Berkeley na filosofia, não nos parece abusivo dizer que a Nova Teoria da Visão, em seus

dois aspectos de teoria da percepção e da significação, possui elementos que antecipam

insights tanto da fenomenologia quanto da análise da linguagem. (10)

A obra de Berkeley não é sistemática e dedutiva. Por isso não podemos privilegiar uma tipo

de análise que privilegie apenas as relações internas aos textos. A leitura que faremos

procurará identificar a coerência interna de um texto organizado em rede, sempre atentos à

sua constante evolução, e dando grande ênfase àquele aspecto do pensamento de Berkeley

que chamamos de "crítico": é mostrando a origem das crenças dualistas que se pode

desvendar a razão pela qual as teorias materialistas e as teorias referencialistas da linguagem

parecem tão naturais ao filósofo. Desta análise crítica o dualismo vai aparecer primeiro como

condição de possibilidade da ação e da linguagem, e num segundo momento como ilusão

reforçada pelo uso deste mesmo instrumento a serviço da otimização da ação. No primeiro

caso teremos um dualismo em sentido mais fraco, um dualismo que é uma espécie de atitude

natural necessária ao falar e ao agir do senso comum. No segundo, o dualismo ganhará um

sentido mais forte: ao passar para a esfera do discurso assertivo, o que era crença muda

devém tese dogmática. São os resquícios desta crença, dissimulados sob a letra do que se

apresenta agora como teoria, que dará ao dualismo metafísico sua irresistível aparência de

necessidade e dele fará o problema por excelência da filosofia ao longo de grande parte de

sua história.

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