teseberkeley4-substancia
IV - Substância
O corpo do Principles, juntamente com os Três Diálogos, é a parte mais conhecida da obra
de Berkeley. (91) A Nova Teoria da Visão procura, como vimos, realizar um diagnóstico
preciso das causas das crenças que estão na origem das ilusões filosóficas e apresenta como
alternativa às construções teóricas tradicionais uma teoria da significação cujos elementos
primitivos são idéias enquanto signos e não enquanto representações. Já a Introdução, como
vimos, é essencialmente um texto sobre a significação das palavras. O corpo do Principles,
por sua vez, apresenta-se como um discurso ontológico que procura responder a questões
muito gerais tais como: "Quais são as categorias mais mais gerais dos seres?"; "O que
garante a regularidade das relações contingentes?"; "Qual é o estatuto do conhecimento
matemático, geométrico e das ciências naturais?" As resposta a estas questões são expressões
de uma ontologia na qual a aceitação de uma relação de total dependência do espírito causado
em relação ao espírito-causa, das criaturas em relação ao criador, aparecem não apenas como
uma decisão moral ou como questão de fé mas como uma necessidade lógica. Com isso, os
objetivos apologéticos de Berkeley tornam-se enfim explicitamente manifestos. (92)
O corpo do Principles se divide tematicamente em três partes. Na primeira delas, que vai da
seção 01 a 33, Berkeley expõe os fundamentos de sua ontologia. (93) Na segunda, da seção
34 a 84, Berkeley antecipa e responde a um conjunto de dezesseis possíveis objeções a esta
doutrina. Na última parte, de 85 a 156, Berkeley apresenta as consequências e vantagens
desta doutrina para a ciência, a matemática e a moral. A primeira parte pode ser
desmembrada em duas: de 01 a 24 o tema central é a natureza das idéias e da alma; de 25 a
33 Berkeley trata do conceito de causalidade.
Na seção 01 Berkeley faz uma espécie de quadro dos elementos ou aspectos constitutivos da
alma, o que tentaremos colocar em evidência dispondo o texto segundo suas partes e
introduzindo algumas ênfases:
"It is evident to any one who takes a survey of the objects of human knowledge,
that they are either
1)ideas actually imprinted on the senses, or else such as are perceived by
attending to the
2)passions and operations of mind, or lastly
3)ideas formed by help of memory and imagination, heither compounding,
dividing or barely representing those originally perceived in the aforesaid ways.
By
a)Sight I have the ideas of light and colours with their several degrees and
variations. by
b)Touch I perceive, for exemple, hard and soft, heat and cold, motion and
resistence, and of all these more and less either as to quantity or degree.
c)Smelling furnishes me with odours; the
d)palate with tastes and
e)hearing conveys sounds to the mind in all their variety of tone and composition.
And as several of these are observed to accompany each other, they come to be
marked by one name, and so to be reputed as one thing.
Thus, for exemple, a certain colour, taste, smell, figure and consistence having
been observed to go together, are accounted one distinct thing, signified by the
name apple. Other collections of ideas constitute a stone, a tree, a book, and the
like sensible things;
wich, as they are pleasing or disagreeable, excite the passions of love, hatred, joy,
grief, and so forth."
Na passagem de "ideas actually imprinted on the senses" para "passions and operations of
the mind" Berkeley utiliza a expressão "or else such", o que cria uma ambiguidade: podemos
interpretar as paixões e operações da mente como sendo "objetos" ou como sendo "idéias".
Tudo leva a crer que esta ambiguidade foi introduzida propositalmente por Berkeley,
procurando fazer já a distinção entre idéias (dos sentidos) e noções (do que pertence à alma
ativa) mas sem entrar imediatamente na discussão da justificação desta distinção, o que será
feito na sequência do texto. (94)
As "partes constituintes" da alma são de três espécies: a)as idéias dos sentidos; b)as "paixões
e operações da mente" e c)as idéias da imaginação e da memória. Na segunda parte desta
primeira seção Berkeley detalha e dá exemplos do que entende por "idéias dos sentidos".
Porém não se trata apenas de uma simples enumeração de espécies de idéias. Sabemos o
quanto é importante para Berkeley a tese da heterogeneidade radical entre as idéias de
diferentes modalidades sensíveis, que é reafirmada logo em seguida: da mesma forma que
sugeria na Nova Teoria da Visão, Berkeley afirma agora que idéias de naturezas distintas são
a)observadas sempre juntas na experiência; b)consideradas como uma mesma e distinta coisa
particular; e c)designadas por um único e mesmo nome. Note-se que aqui Berkeley inverte a
sequência do processo descrito na Nova Teoria da Visão: lá é dito primeiro que o conjunto
heterogêneo de idéias recebem um mesmo nome e depois que este conjunto é considerado
heterogêneo de idéias recebem um mesmo nome e depois que este conjunto é considerado
um objeto particular. Isto não constitui uma contradição, pois não se trata aqui de uma
sequência cronológica: a nomeação e a regularidade da experiência são dois aspectos de um
mesmo processo e portanto é apenas na linguagem que ele aparece na forma de dois
momentos distintos. A constituição do objeto particular do senso comum se dá pela
percepção e pela linguagem, simultaneamente.
Os objetos do segundo tipo, ou seja, aqueles "perceived by attending to the passions and
operations of the mind" remetem ao que Locke chamava de "idéias da reflexão", ou seja,
idéias não de objetos externos e sim da própria atividade da mente. Como vimos, para
Berkeley as atividades da alma não podem ser chamadas de "idéias", pois estas são sempre
passivas. Nos termos da Teoria da Visão Vindicada e Explicada, das atividades da alma
temos um conhecimento racional e não um conhecimento sensível. (95)
Berkeley fala de "paixões e operações". No final da seção temos uma indicação do que são
estas "paixões": as coisas constituídas pela síntese de idéias de diferentes sentidos podem ser
agradáveis ou desagradáveis, causar dor ou prazer, e assim provocar as paixões de amor,
ódio, alegria ou tristeza, etc. "Paixões" deve ser entendido, então, não no sentido clássico de
"sofrer uma ação", o que é da ordem da passividade, e sim como atividades da alma em
resposta ao que os objetos sensíveis lhe provocam.
Quanto às idéias da memória e da imaginação, o fato de serem elas apresentadas como
constituindo uma classe distinta significa que elas possuem natureza diversa das idéias diretas
da percepção ou apenas que se distinguem destas quanto à sua gênese? Berkeley diz que elas
são "produzidas" pela alma que "compõe, divide ou representa" as idéias imediatas dos
sentidos. As idéias imediatas que sugerem idéias do tato à imaginação dão origem, por
exemplo, à percepção da distância, tamanho e posição. As idéias da imaginação e da
memória são importantes na medida em que tornam possível esta relação entre idéia mediata
e idéia imediata que possibilita, por sua vez, a apreensão de realidades não imediatamente
percebidas. Nota-se assim como a faculdade da imaginação - que tão pouca atenção recebe
por parte dos comentadores, diga-se de passagem - possui uma função imprescindível: é ela
que torna possível uma certa "estruturação" das idéias imediatas sem a qual o mundo nos
pareceria incomparavelmente mais pobre do que este que a visão realmente nos revela.
No final da seção 02 Berkeley formula pela primeira vez em uma obra publicada seu "novo
princípio": o ser das idéias consiste em serem elas percebidas. (96) Deve então haver algo,
distinto das próprias idéias, que as percebe. Aquilo "em que" as idéias existem é a "mente,
espírito, alma ou eu": a "substância espiritual". O gérmen desta argumentação encontra-se já
nas reflexões sobre a vontade nos Philosophical Commentaries: (97) podemos eliminar o
dualismo eliminando a distinção entre idéia e coisa, mas não podemos eliminar a distinção
entre a passividade que caracteriza as idéias e a atividade que caracteriza a alma. As idéias,
passivas, são dependentes de uma substância, ativa, que as percebe: o espírito. (98)
O texto Teoria da Visão Vindicada e Explicada é de grande ajuda no esclarecimento da
dinâmica da relação entre os elementos do conhecimento apresentados no Principles, pois ali
vemos lado a lado as teses desta obra e aquelas da Nova Teoria da Visão que de certa forma
já as anunciavam. Berkeley afirma ali que há duas formas de conhecimento: um é sensível e
o outro é racional. O conhecimento sensível é direto e imediato, quando se trata da
percepção das idéias próprias de cada um dos sentidos, ou indireto e mediato quando se dá
via sugestão, antecipação, de certas idéias de um sentido por outras idéias imediatas de outro
sentido. (99) Como vimos, neste segundo tipo de conhecimento sensível a imaginação e a
memória ocupam lugares importantes, já que é por seu intermédio que se dá a passagem da
idéia atualmente percebida para a idéia sugerida. (100) Enquanto a memória representa, a
imaginação compõe e divide. (101) Quanto ao conhecimento racional, é aquele que faz
inferências. Berkeley aponta três tipos de inferências: da causa para o efeito, do efeito para a
causa, "das propriedades, umas das outras". Quanto às inferências causais, é preciso
esclarecer que Berkeley usa aqui a palavra "causa" em um sentido muito específico. Não se
trata da causalidade eficiente que se acredita reinar na natureza. Já vimos que Berkeley
rejeita este tipo de causalidade, pois para ele as regularidades da natureza são contingentes,
são como as relações entre significante e significado: precisam ser constantes para
constituirem linguagem, porém o são não por necessidade e sim por benevolência divina. A
"inferência causal" em foco é aquela que vai da natureza enquanto sistema de signos para o
espírito que torna possível a existência das idéias e a regularidade das relações entre elas. A
sugestão antecipadora das idéias do tato pelas idéias da visão não seria, se seguirmos
rigorosamente esta indicação de Berkeley, uma inferência racional. (102)
No início do Principles Berkeley afirma que os "objetos do conhecimento humano" são de
três tipos: idéias da sensação, atividades e paixões da alma e idéias da memória/imaginação.
Na seção 27 vemos que a forma de apreensão dos objetos do segundo tipo não pode ser
comparável à forma de apreensão das idéias, pois estas são passivas e aquelas são expressões
da alma ativa. A questão que se coloca, ao confrontarmos o Principles com a Teoria da
Visão Vindicada e Explicada, e: por que o conhecimento do espírito divino é do tipo
racional/inferencial e o conhecimento da alma humana exige esta outra forma de apreensão?
Na verdade, Berkeley não pode admitir um conhecimento inferencial da alma porque esta
forma de raciocínio - assim como o seu oposto realista (inferência da existência das idéias no
espírito para a existência de uma realidade que as causa e das quais elas são cópias) - são
típicamente dualistas. Não há idealismo stricto senso em Berkeley exatamente porque não há
inferência das idéias para uma mente que as produza. Não podemos ter idéias da alma porque
idéias são passivas e a alma é ativa; não podemos conhecê-la por inferência do efeito para a
causa porque a causa das idéias é "another and more powerful spirit" e é só este tipo de
inferência - necessária - que Berkeley admite. (103)
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