Introducao Filosofia de Berkeley

A Filosofia de George Berkeley

Everaldo Skrock

As obras mais conhecidas de Berkeley são o "Princípios do Conhecimento Humano" e o "Três Diálogos entre Hilas e Philonous", não por acaso as mais traduzidas e publicadas. A primeira, inacabada, é mais sistemática e caracterizada por uma cerrada disputa acadêmica. A segunda, na tradição dos diálogos, que atravessa toda a história da filosofia desde Platão, é um livro de divulgação, destinado a um público amplo.

Já o "Ensaio para uma Nova Teoria da Visão" é eminentemente crítico e propedêutico. Apesar da grande aceitação que obteve na época de sua publicação, com o tempo foi sendo obscurecido pela grande repercussão provocada pela tese defendida no Princípios: a substância espiritual e a substância infinita de Descartes podem ser unificadas em uma única substância espiritual. Tomando esta obra como referência, a história da filosofia até muito recentemente apresentou Berkeley como um idealista excêntrico que nega a existência da matéria fora do espírito.

Porém o Ensaio revela uma outra face de Berkeley. Ali a palavra "substância" sequer é mencionada. O que salta aos olhos, por outro lado, é o quanto Berkeley prenuncia uma estratégia que se tornará central à filosofia do século XX: a busca de causas ocultas dos problemas filosóficos aparentemente insolúveis. É este aspecto de seu pensamento que privilegiamos na escolha dos extratos traduzidos para esta antologia.

Na época do assim chamado grande racionalismo (século XVII) ocorre uma proliferação de filosofias que pode ser lida como sintoma de um descompasso entre o evidente aumento do poder explicativo da ciência moderna e as tentativas da filosofia de desvendar os fundamentos últimos dos processos cognitivos que tornam este progresso possível. Isto se manifesta na grande quantidade de sofisticadas respostas a uma questão tida por fundamental: como se dá a relação entre matéria e espírito? Apesar de possuírem naturezas evidentemente distintas - pensava-se - estas duas realidades devem poder se comunicar, pois esta é uma condição necessária da passagem da percepção das coisas materiais para a produção de discursos científicos e tecnologias.

No entanto, esta rica multiplicidade dos sistemas pode também ser visto como um sintoma de fraqueza. Na introdução ao Princípios, Berkeley lamenta: como garantir a credibilidade da filosofia se, ao invés de responder a esta demanda por fundamentos e satisfazer nossos anseios de paz de espírito, ela nos inunda com uma multiplicidade teorias que geram disputas e dúvidas sem fim? Depois de fazer levantar uma espessa poeira de palavras, a própria filosofia reclama por não conseguir mais ver com clareza aquilo que não coloca qualquer problema ao homem comum.

Este é um tema caro e central na filosofia de Berkeley: a ambivalência das palavras. Elas tornam possível a teoria mas também constituem uma espécie de véu que recobre as aparências imediatas das coisas, evidentes antes de serem feitas objeto de ciência e de filosofia. Ora, tanto a percepção quanto a linguagem, reduzidos à pura função de significação, são anteriores à racionalidade discursiva. A estratégia de Berkeley na Nova Teoria da Visão consiste, pois, em colocar em questão o próprio sentido da pergunta que gera tantas respostas inconciliáveis entre si. Se compararmos esta análise com uma investigação do tipo terapêutica, onde a cura depende de uma busca prévia das causas de um distúrbio, as múltiplas teorias que tentam resolver a questão aparecem como remédios paliativos que oferecem alívio apenas momentâneo. O diagnóstico mais profundo procurado por Berkeley visa uma identificação das causas primeiras de certas ilusões que leva a filosofia a formular a insensata pergunta por um fundamento metafísico da realidade percebida. Em outras palavras, trata-se de esclarecer como é que certas condições inerentes à condição humana em seus diversos aspectos - percepção, ação, comunicação - não só determinarem a visão comum de mundo mais apropriada a sobrevivência como também podem gerar questões metafísicas carentes de sentido e portanto sem solução possível.

Em Descartes o mundo material é regido por uma regularidade causal inexorável. A relação entre os objetos materiais e sua representação espiritual se funda nesta relação causal e também num mecanismo de correspondência entre idéias e coisas fundado, se não na semelhança pura e simples, pelo menos numa correspondência estrutural e constante. A instabilidade e contingência das aparências sensíveis não é incompatível com a existência de uma realidade necessária que as suporta. Assim por exemplo a cor ou o som, infinitamente variáveis, são qualidades segundas, acidentais, enquanto a extensão e o número são qualidades primeiras, necessárias, inerentes à substancialidade própria do mundo das coisas materiais. Berkeley transfere o foco das relações entre idéias-representações e coisas-originais para as relações que as idéias mantêm entre si. Os vários sentidos passam a ser considerados como nomes das classes mais fundamentais nas quais as idéias estão organizadas. A relação entre idéias pertencentes a duas destas distintas classes será definida como sendo de significação e não de representação.[1] Ao contrário da relação representativa, a significação não precisa ser fundada em causalidade ou semelhança. É uma relação convencional, contingente e portanto não precisa ser justificada em termos de relação necessária.

O problema que resta é o da justificação da regularidade destas relações contingentes, pois obviamente não seria possível a ciência e nem a ação humana mais simples sem um mínimo de estabilidade na relação entre idéias. Em Descartes, Deus (substância infinita) garante a necessária correspondência entre as representações e as coisas (substância espiritual e substância material). Para Berkeley, as aparências sensíveis constituem uma linguagem divina. Por ser uma linguagem, torna-se obsoleto o problema da justificação de uma relação necessária entre as idéias e as coisas. Por ser divina fica garantida a regularidade das relações significante, sem a qual a realidade seria tanto inabitável quanto ininteligível. O mundo material continua sendo tão real quanto em Descartes mas desaparece a necessidade de se supor algo para além de sua aparência sensível. Trata-se evidentemente de uma ontologia mais econômica: a quantidade de substâncias é reduzida ao mínimo, a realidade é simplificada, o problema da correspondência entre substâncias é dissolvido e mesmo problemas ópticos resistentes à explicação pela óptica geomética recebem soluções satisfatórias.

Mas por que o modelo cartesiano parece mais "natural"? Esta é a questão fundamental que Berkeley quer esclarecer nos fragmentos da Nova Teoria da Visão que aqui apresentamos. A eficácia da ação necessária à sobrevivência (obtenção de alimentos, fuga, acasalamento, etc.) depende de um poder de previsão cuja diferença em relação ao poder de previsão da razão é apenas de grau. O espaço visual é um conjunto de índices que antecipam o tempo necessário para que o corpo entre em contato direto (tátil) com as coisas. O objeto percebido ganha unidade e individualidade por ser um objeto da ação humana, antes de ser objeto do pensamento ou da linguagem. Apesar de parecer evidente que as idéias dos diversos sentidos são diversos aspectos de uma mesma coisa, uma análise crítica revela aqui mais uma crença do que uma necessidade lógica. Idéias auditivas, visuais e táteis são todas signos, mas heterogêneos entre si se considerados neles mesmos.

Mas por que, então, a visão comum de mundo transmuta-se no problema metafísico da justificação de uma realidade transcendente à percepção? Porque a esta imagem "natural" do mundo - que em cada espécie animal varia de acordo com o aparato biológico que possui[2] - vem se sobrepor, no caso humano, a linguagem das palavras, sobretudo em sua função básica de nomeação. Aristóteles dizia que a quantidade de coisas é maior que a quantidade de palavras. A linguagem só pode funcionar, pois, se uma palavra puder significar várias coisas ao mesmo tempo. O problema é que ela pode nomear coisas pertencentes a gêneros distintos. Com isso o que era uma relação puramente analógica passa a ser considerada, como resultado do uso reiterado da linguagem, uma relação natural e necessária. Dito de outra maneira, o que era metáfora passa a receber um sentido literal que vai sendo cristalizado com uso. No próprio processo de significação, entre idéias de diversos sentidos ou entre palavras e idéias, o significante e o significado recebem um mesmo nome. Daí nossa tendência natural, diz Berkeley, em considerar como sendo de mesma natureza idéias tão heterogênas quanto as da visão e as do tato. A palavra "mesa", enquanto significante, é uma marca sensível, possui uma realidade própria, revelada por qualidades particulares (determinada cor, tamanho, etc.) e portanto poderia receber um nome próprio. Mas não damos a ela um nome específico porque o que nos interessa é sobretudo o que é significado (a mesa "real" com a qual interagimos). Do mesmo modo, uma idéia visual tampouco recebe um nome distinto da idéia tátil que ela substitui e antecipa. Desde que começamos a exercer a faculdade perceptiva na primeira infância, a conexão entre imagem visual e imagem tátil é tão constante e regular que sua identidade, de tão óbvia, jamais é questionada. E porque os mesmos signos visuais representam as mesmas idéias táteis para todos os homens e em todos os lugares, seu caráter convencional deixa de ser reconhecido como tal. Desde que começamos a dominar a linguagem, a palavra "mesa" significa tanto a mesa visual quanto a mesa tátil. Muito dificilmente podemos deixar de assim considerá-la, da mesma forma como é praticamente impossível ver ou ouvir o nome de uma pessoa sem que sua fisionomia nos venha imediatamente à memória. A busca por um fundamento é equivocada e a pergunta pela correspondência entre espírito e matéria é sem sentido porque a relação analógica entre idéias de diversos sentidos, reforçada pelas palavras que as nomeiam, adquire uma aparência de realidade literal que, não constituindo problema para o senso comum, torna-se objeto de dúvida para a filosofia. Isto se dá, em grande medida, devido a um uso da linguagem para fins muito distantes de sua função original.

"Se um cego de nascença passasse a ver e a ele fosse apresentado um cubo e uma esfera que ele anteriormente conhecera apenas com o tato, seria ele capaz de dizer qual é o cubo e qual é a esfera utilizando-se apenas da visão?" Esta é a fórmulação do famoso "problema de Molyneux", que instigou não só Berkeley como vários pensadores de sua época. Esta questão fascinava tanto porque acreditava-se que sua solução resolveria questões filosóficas importantes, como o problema da existência das idéias inatas. Berkeley a retoma porque acredita ver ali a possibilidade de uma prova empírica adicional da tese da heterogeneidade essencial entre as idéias de diferentes sentidos. A resposta que ele sugere é decididamente negativa: o cego que recobrasse a visão não poderia perceber imediatamente o mundo visual tal como nós estamos acostumados a fazê-lo. Levaria muito tempo para que ele conseguisse "ler" as informações trazidas pela luz e pelas cores aos seus olhos, ou seja, para relacionasse as idéias visuais com as sensações táteis, tivesse uma noção exata dos objetos como coisas separadas do todo, concebesse as idéia de figura e fundo, distância, tamanho, posição, etc.[3]

O fato é que esta experiência de pensamento acabou se tornando uma experiência real com a realização da primeira operação de cataratas pelo cirurgião inglês William Cheselden em 1728. Apesar de Berkeley apresentar o resultado da operação do cego como favorável a si, o desdobramento futuro da questão[4] mostra que todos foram vítimas da ilusão de que questões metafísica possam ser resolvida por experimentos empíricos: jamais se chegou a uma conclusão definitiva porque, ironicamente, nunca se alcançou consenso sobre a interpretação a ser dada ao relato que o cego operado faz de sua experiência subjetiva!

Outras informações sobre a vida e obra de Berkeley.

[1] Significação entendida como "substituição", "estar no lugar de". Associada ao hábito e à memória pode também pode ser entendida como "antecipação": se percebo uma idéia como significando regularmente uma outra, ao perceber a primeira antecipo a percepção da segunda.

[2] Jacob Von Uexküll. Mondes Animaux et Monde Humain, Paris: Ed. Danöel, 1965, Tradução do original alemão de Georges Kriszat.

[3] Cf. o filme "À primeira vista" (At First Sight, EUA, 1999) de Irwin Winkler, baseado em um caso clínico de Oliver Sacks relatado no 4º capítulo ("Ver e não ver") do livro "Um Antropólogo em Marte", de Oliver Sacks (São Paulo: Cia. das Letras, 1995. Trad. Bernardo Carvalho).

[4] Proust, Joëlle (org.). Perception et Intermodalité - Approches actuelles de la question de Molyneux. Paris: PUF, 1997.