teseberkeley2.4-intermodalidade

II.4 - Intermodalidade

A resolução dos problemas recalcitrantes da óptica geométrica, que revela já na primeira

parte da Nova Teoria da Visão os fundamentos de uma nova teoria da percepção do espaço,

retira toda sua força da tese que afirma a heterogeneidade radical entre as idéias de diferentes

modalidades sensíveis. Depois de mostrar como se dá a percepção da distância, Berkeley

esclarece como se dá esta relação entre diferentes sentidos: a idéia de distância nasce de

uma relação constante entre certas idéias visuais e certas idéias táteis. Que tipo de relação é esta?

É uma relação de antecipação, de previsão: dizer "vejo uma cadeira a cinco metros de onde

estou" é o mesmo que dizer: "percebo certas qualidades visuais que me informam que

poderei tocar um certo objeto após caminhar um determinado número de passos". A imagem

visual muda constantemente, mas minha experiência tátil dos objetos é constante e por isso

posso concluir das qualidades variáveis da imagem visual o quanto meu corpo deve se

deslocar para entrar em contato com eles. Depois, no final do grupo de seções que tematizam

a percepção do tamanho Berkeley explica, na seção 59, por que as coisas assim se passam: a

visão possui primitivamente a função de previsão da maneira pela qual o corpo entrará em

relação tátil com objetos, visando fundamentalmente a conservação de sua integridade. É no

contato direto com as coisas que o corpo pode, por exemplo, ser ferido ou alimentado e a

visão facilita a ação que evita o perigo ou que buscar o alimento. É portanto de grande

utilidade que as idéias táteis possam ser antecipadas. As idéias da visão - assim como as

idéias da audição - desempenham este papel, vital, de informar sobre a distância que

devemos percorrer (e conseqüentemente o tempo que irá transcorrer) até que nosso corpo

entre em relação relação tátil com os objetos. (41) É por isso que as idéias da visão são

importantes não em si mesmas e sim na medida em que sugerem as idéias táteis, assim como

na linguagem as palavras, enquanto sinais significantes, só adquirem importância na medida

em que apontam para seus significados.

A segunda parte da Nova Teoria da Visão (seções 121-159) retoma e aprofunda estas teses.

Após ter mostrado, nas seções que indicamos acima, o como e o porquê da antecipação das

idéias do tato pela visão, Berkeley mostrará agora como esta tese revelará contradições

implícitas no método geométrico e na teoria da abstração, antecipando assim as análises mais

conhecidas destas questões presentes no Principles. Se as idéias da visão são essencialmente

distintas das idéias do tato, então podemos dizer que há coexistência entre uma extensão

visual e uma extensão tátil e que portanto o conceito de qualidade primeira, e com ela o

conceito abstrato de matéria, deixam perdem o sentido. (42) A tese que afirma a distinção

entre qualidades primeiras e qualidades segundas funda-se na crença de que existem idéias

comuns a todos os sentidos. A extensão por exemplo, como qualidade primeira, deve ser

uma idéia comum à visão e ao tato. Mas esta idéia só pode ser pensada como sendo comum a dois sentidos ao preço de não poder ser caracterizada por nenhuma qualidade segunda. Ela

deve ser completamente indeterminada. Deve ser, portanto, uma idéia abstrata. Para

Berkeley, ao contrário, a extensão deve necessariamente ser ou tátil ou visual. O que ela não

pode é ser constituída ao mesmo tempo de idéias visuais e táteis, pois para poder sê-lo ela

deveria ser despida de todas suas qualidades segundas e então deixaria de ser uma idéia. As

idéias são ou imediatas ou mediatas. Se imediatas, devem ser absolutamente determinadas,

isto é, devem ser caracterizadas por suas qualidades sensíveis imediatas. Se mediatas e

indiretas, como as idéias táteis antecipadas na percepção da distância ou da magnitude,

devem ser sugerida por outras idéias imediatas. (43)

Quando na matemática fazemos uma adição, podemos somar duas linhas, dois planos ou dois

volumes, mas jamais uma linha com um plano ou com um volume. Para haver adição é

preciso que as quantidades sejam de uma mesma espécie. Da mesma forma, não podemos

reunir em um mesmo gênero idéias de diferentes naturezas como idéias imediatas da visão e

idéias imediatas do tato. (44) Para que possamos afirmar que uma idéia pertence a um gênero

é preciso que identifiquemos qualidades comuns, isto é, semelhanças, em relação aos outros

membros deste gênero. Mas evidentemente não podemos identificar semelhanças entre as

idéias imediatas da visão (a luz e as cores), e as idéias imediatas do tato, pois nem sequer

podemos compará-las. Podemos tentar recorrer a uma semelhança no modo de percepção e

dizer: "tal idéia tátil afeta-me de uma maneira que é semelhante à maneira como sou afetado

por tal idéia visual". Mas para um cego de nascimento que passasse a ver, as idéias da visão

se apresentariam como uma nova espécie de idéias, inteiramente distintas de tudo que ele já

conhecia, e ele não perceberia qualquer semelhança entre a forma de percepção destas idéias

e das idéias do tato com as quais sempre esteve familiarizado. Logo, não as reconheceria como pertencentes a uma mesma classe, não as chamaria com o mesmo nome. (45)

Mas por que, então, utilizamos uma mesma palavra para nomear tanto idéias da visão quanto

idéias do tato? Por que na linguagem comum "maçã" é tanto a maçã visual quanto a maçã

tátil? Porque isto é mais econômico e mais simples. O significante, abstraído de uma relação

de significação, é uma idéia que poderia receber um nome diferente daquele do significado.

O sinal visual "maçã", ou seja, este conjunto de sinais desenhados sobre o papel, poderia

receber um nome diferente do nome do objeto que ele significa. Mas isto, além de não

possuir qualquer utilidade, desencadearia uma regressão ao infinito, pois o segundo sinal,

utilizado como significante para nomear o primeiro, poderia também receber um nome e

assim por diante. Portanto, o fato de chamarmos idéias de diversos sentidos com o mesmo

nome não implica, absolutamente, que haja qualquer comunhão de natureza entre elas.

Temos muitos outros exemplos de uso de uma mesma palavra para coisas diferentes: usamos

por exemplo as palavras "mais", "menos", "menor", "maior" para falar de quantidades tão

heterogêneas quanto o espaço e o tempo. Usamos as palavras "mais alto" ou "mais baixo"

para falar tanto de relações espaciais quanto de notas musicais. Este uso analógico ou

metafórico da linguagem, extremamente comum, não implica que objetos chamados com o

mesmo nome pertençam a uma mesma região ontológica, ainda que contribuam para reforçar

a crença de que as coisas assim se passam. (46)

É por isso que Berkeley responde sem hesitação "não" ao problema de Molileux: a idéia tátil

do cubo e a idéia tátil da esfera não possuem nada em comum com as idéias visuais destes

objetos. O cego operado precisaria dispor do tempo necessário para aprender, pela

experiência, que certas idéias táteis são regularmente sugeridas por determinadas idéias

visuais e só então poderia reconhecer cubo e esfera sem recorrer diretamente ao tato. A

identificação de uma confusão entre signo e coisa significada é crucial para o entendimento

de como nasce a crença dualista. Admitir a possibilidade de um reconhecimento de qualquer

espécie de semelhança entre o cubo visual e o cubo tátil antes da experiência e da

comparação entre estas duas espécies de idéias seria confessar a vulnerabilidade da tese da

heterogeneidade.

No entanto, é o próprio Berkeley quem levanta uma objeção à primeira vista irrecusável:

como negar que o quadrado tátil seja mais parecido com o quadrado visual do que com a

esfera visual, já que estes dois quadrados possuem quatro ângulos, que são percebidos tanto

pela visão quanto pelo tato, enquanto que o círculo, seja ele visual ou tátil, não possui

nenhum ângulo? Se há um critério deste tipo, segundo o qual uma espécie de idéia é mais

apta do que outra para significar, então deve haver entre elas alguma semelhança, elas devem pertencer a uma mesma classe e portanto a relação de significação não é arbitrária e sim necessária. A resposta de Berkeley é que o quadrado visual é mais adequado do que o circulo visual para representar (significar) o quadrado tátil, mas que isto pode ser explicado sem a necessidade de se postular entre eles qualquer semelhança ou pertença à uma mesma espécie.

O quadrado visual possui quatro partes (quatro lados, quatro ângulos) que devem

corresponder a quatro partes do quadrado tátil. Porém uma coisa é o número de partes, outra

coisa é o tipo de partes em questão. Quatro ângulos visuais e quatro ângulos táteis são de

naturezas diversas apesar de serem em mesmo número. O mesmo acontece na linguagem das palavras: a arbitrariedade da relação significante não exclui a necessidade de uma certa

correspondência estrutural entre o significante e o significado em um segundo nível, onde

conjuntos de significantes se relacionam a conjuntos de significados. Por exemplo, na

maneira pela qual as palavras escritas representam sons é arbitrária a relação que se

estabelece convencionalmente entre uma determinada letra e um determinado som. Porém,

uma vez estabelecido um código, não é indiferente o número e a combinação de letras que

deve representar o som de uma palavra. Que a letra "a" represente o som "a" é uma questão

de convenção, mas que na palavra "casa" a letra "a" deve aparecer duas vezes,

correspondendo assim às duas ocorrências do som "a", é uma exigência da regularidade

indispensável ao bom funcionamento de qualquer linguagem. (47)

Deixa de ser espantoso o quão naturalmente confundimos as idéias significantes da visão com

as idéias significadas do tato quando lembramos que desde que começamos a utilizar os

sentidos uma relação regular e constante entre eles se estabelece, relação esta que nos parece

tão natural quanto aquela existente entre as palavras e as coisas que elas significam em nossa

língua natal e que resultou igualmente da experiência. Além disso, quando dirigimos o olhar

para um objeto nossos olhos e nossa cabeça descrevem movimentos que, apesar de serem

inteiramente da ordem do tato, estão tão ligados às idéias visuais que eles determinam e

que naturalmente atribuímos à visão. Em terceiro lugar, a visão e o tato possuem em comum

poder de nos proporcionar a apreensão de um grande número de elementos imultaneamente.

Tanto o tato quanto a visão possuem esta capacidade de nos apresentar os objetos como

sendo constituídos de várias partes distintas e coexistentes em um mesmo instante, o que não

acontece com os outros sentidos: os vários sons, sabores ou odores, quando percebidos

simultaneamente, tendem a se fundir em uma unidade na qual não conseguimos distinguir as

partes constituintes. (48) Daí que a tendência natural do pensamento e a magnitude da

dificuldade a ser superada não são bons argumentos contra a tese da independência das

séries sensíveis. A crença na independência, autosubsistência e unidade dos objetos constituídos

por idéias de vários sentidos é útil antes de tudo para a ação e por isso o senso comum nem sequer

tem consciência da possibilidade de as coisas se darem de outra forma. No entanto, uma filosofia

que pretenda eliminar as falsas questões dualistas e referencialistas não pode prescindir da busca

pela identificação de sua origens mais remotas. (49)

Se não há uma extensão em abstrato, além da extensão visual ou tátil, então qual dessas

extensões constitui o objeto da geometria? Normalmente se pensa, diz Berkeley, que a

geometria tem por objeto a extensão visual. É normal pensar que os diagramas que são

desenhados e manipulados pelo geômetra sejam figuras que representam o objeto sobre o

qual se faz uma demonstração. Consideremos, por exemplo, um geômetra que procura

resolver um problema relacionado à divisão de um determinado terreno. Este terreno é o

objeto propriamente dito. O desenho que o reproduz em escala menor no papel é uma

imagem deste objeto. Acredita-se que a inigualável clareza e evidência que caracterizam a

demonstração geométrica devem-se ao fato de o geômetra trabalhar diretamente com idéias,

evitando assim as ambiguidades e inevitáveis descaminhos aos quais está sujeita a linguagem

das palavras. Assim como as imagens mentais, as representações seriam cópias fiéis das

coisas e o desenho representaria fielmente a forma e as dimensões relativas do objeto

representado. (50) Com isso, o que é válido para a imagem seria igualmente válido para a

coisa cujas formas são por ela reproduzidas. No entanto, faz também parte do discurso

geométrico a afirmação de que a geometria tem valor universal porque suas conclusões

aplicam-se não apenas àquela figura particular e sim a todas as figuras com aquelas

características, pois o objeto da demonstração não é uma figura particular e sim a extensão

enquanto idéia abstrata. Podem estas duas afirmações ser igualmente verdadeiras? Pode o

objeto da geometria ser ao mesmo tempo a extensão visual e a idéia abstrata de extensão?

Berkeley opõe-se, resolutamente, a este modelo geométrico, afirmando sem hesitação que o

objeto da geometria não é a extensão em abstrato e tampouco a extensão visual. É preciso ter

sempre em mente, diz, que as idéias visuais não têm um valor intrínseco, que elas são

importantes sobretudo por serem signos das idéias do tato. O mais importante é o significado

apontado pelo signo e não o sinal significante. A extensão visual de uma figura desenhada no

papel, assim como a imagem visual do próprio objeto que esta figura intenta reproduzir,

muda constantemente de acordo com a distância e com o ponto de vista do sujeito que a

percebe. A única extensão estável é a extensão tátil e a ela é que se referem as demonstrações

geométricas. O desenho é um significante, e como tal desempenha um papel idêntico àquele

das palavras: tanto a palavra "esfera" quanto o desenho da esfera são significantes que sugerem

a idéia tátil de esfera. A única diferença é que o processo pelo qual a figura visual que sugere

à mente uma figura tátil é da ordem daquilo que Berkeley chama de "linguagem da natureza".

Esta é, em certo sentido, mais perfeita do que a linguagem das palavras: o Autor da natureza

fala aos nossos olhos de forma invariável em todos os tempos e lugares e assim ela não está sujeita

às ambiguidades e problemas de interpretação aos quais está sujeita a "linguagem instituída pelo

homem". (51)

Poder-se-ia retorquir que os sólidos são, estes sim, objetos do tato, pois pressupõem a idéia

de espaço, que não pode ser obtida apenas com a visão. (Ao contrário dos planos, que são

simplesmente um conjunto de pontos visuais delimitados por linhas.) Berkeley se defende

com um argumento que lança mão de uma experiência imaginária: um homem com perfeita

visão e nenhum sentido do tato teria acesso às noções de "sólido" ou mesmo de "figura

geométrica"? Certamente este homem não saberia o que são os sólidos, pois não percebendo

a distância - e nem a magnitude - não teria noção de espaço tridimensional. Mas teria ele

idéias de planos? Tampouco, responde Berkeley, pois, em primeiro lugar, é preciso alguma

idéia de distância para entender o que é um plano. Em segundo lugar, os objetos imediatos

da visão são as cores e suas variações de luminosidade. Ora, esta grande instabilidade quanto

à quantidade de luz refletida, acrescida do fato de muitos planos serem vistos ao mesmo

tempo, daria à estas figuras visuais uma fugacidade e impermanência tais que a idéia de

plano tal como o conhecemos lhe seria inacessível. Sem o tato, os objetos da visão não

podem se organizar em figuras geométricas. Grande parte da crença generalizada segundo a

qual figuras planas são objetos imediatos da visão provêm da observação da pintura: acredita-

se que as idéias de profundidade e solidez destas figuras resultam de um ato de julgamento

pelo qual dos planos imediatamente percebidos infere-se as mesmas características da

imagem visual ordinária. Porém estes planos não são, estritamente falando, visuais. O são

apenas as cores que os compõem e estas sugerem um plano sólido. A crença de que uma

pintura é composta de figuras visualmente planas nasce do fato de elas parecerem uniformes

e lisas ao tato. Porém a própria uniformidade não é percebida pela visão. A diversidade de

cores e gradações de luz que constitui os objetos imediatos da visão sugerem e antecipam

estas idéias táteis por terem elas sido reiteradamente percebidas juntas, ou seja, porque a

experiência estabeleceu entre elas uma conexão tão forte quanto aquela que une as palavras

a seus significados. Tanto o plano quanto o sólido são igualmente sugeridos pela visão. Assim

como não precisamos perceber primeiro a distância para depois calcular o tamanho dos

objetos, não precisamos primeiro perceber planos para com eles construir sólidos. As idéias

da visão que sugerem planos táteis (figuras planas) são chamadas de "planos" e as idéias da

visão que sugerem sólidos táteis (figuras de sólidos) são igualmente chamados "sólidos", mas

apesar de receberem o mesmo nome, a idéia que significa e a idéia significada são de

naturezas distintas: como ocorre normalmente na linguagem das palavras, o significante

recebe o mesmo nome que o significado.

Concluindo esta parte, sintetizamos a seguir aquelas que nos parecem ser as principais

características da relação entre idéias de diferentes sentidos que encontramos espalhadas ao

longo do texto da Nova Teoria da Visão, ainda que nem sempre explicitamente indicadas por

Berkeley. Tal enumeração, que não pretende ser exaustiva, se revelará útil quando nos

ocuparmos do modo próprio de significação das palavras, em suas diferenças e semelhanças

em relação ao modo de significação das idéias.

a) As idéias são signos e portanto a relação entre elas não envolve causalidade ou

semelhança. Em outros termos, não há qualquer necessidade envolvida nesta relação, ela é

inteiramente convencional, arbitrária. O fato de ser ela se apresentar como constante e regular

na prática não contradiz seu caráter contingente;

b) A relação entre idéias possui uma propriedade que poderíamos chamar de "distributiva":

uma mesma idéia pode significar várias outras, desde que mediatizadas pela significação

imediata de uma delas; (52)

c) Em muitos casos a relação pode ser invertida, o significante passando a exercer o papel de

significado e o significado desempenhando o papel de significante;

d) O contexto determina a relação significante: uma mesma idéia pode significar idéias

diferentes em situações diversas.

Estas características da relação significante estão estreitamente ligadas à sua função original

de suporte à ação eficaz. Por isso o significado é sempre visado em primeiro lugar, como

fim, enquanto que o significante serve apenas como meio. Não é por acaso, portanto, que

normalmente o segundo mereça menos atenção do que o primeiro.

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