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A CIÊNCIA DO FOLCLORE - Rossini Tavares Lima

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UMA PALAVRA

O criador da palavra Folk-lore, aportuguesada para Folclore, foi o arqueólogo inglês William John Thoms. Nasceu em Westminster, a 16 de novembro de 1803. Desde a juventude, 'dedicou-se ao estudo da bibliografia e das "antiguidades populares". Fundou a revista Notas e Perguntas para o intercâmbio de dados de literatura popular, dirigindo-a entre 1849 e 1872. De suas obras, destacamse Canções e lendas da França, Espanha, Tartária e Irlanda e Canções e lendas da Alemanha. Faleceu a 15 de agosto de 1885.

Em 1846, William Thoms endereçou carta à revista The Atheneum, de Londres, sob o pseudônimo de Ambrose Merton, com a finalidade de pedir apoio para um levantamento de dados sobre usos, tradições, lendas e baladas regionais da Inglaterra. Os principais tópicos da carta, divulgada no número 982 da publicação, a 22 de agosto de 1846, em relação aos primeiros registros da palavra "folclore", são os seguintes:

I - "Suas páginas mostraram amiúde tanto interesse pelo que chamamos, na Inglaterra, de 'antiguidades populares' ou 'literatura popular' (embora seja mais precisamente um saber popular do que uma literatura e que poderia ser com mais propriedade designado com uma boa palavra anglo-saxônica, Folk-lore - o saber tradicional do povo), que não perdi a esperança de conseguir sua colaboração, na tarefa de recolher as poucas espigas que ainda restam espalhadas no campo no qual os nossos antepassados poderiam ter obtido uma boa colheita."

II - "Tais dados seriam de grande utilidade, não apenas para o inglês estudioso de antiguidades. As relações entre o folk-lore da Inglaterra (lembre-se de que reclamo a honra de haver introduzido a denominação folk-lore, como Disraeli introduziu 'Father-land', na literatura deste país) e o da Alemanha são tão grandes, que esses dados provavelmente servirão para enriquecer futura edição da Mitologia de Grimm."

TEXTO ORIGINAL DA CARTA DE THOMS

"Suas páginas mostraram amiúde tanto interesse pelo que chamamos, na Inglaterra, de 'antiguidades populares ou 'literatura popular' (embora seja mais precisamente um saber popular do que uma literatura e que poderia ser com mais propriedade designado com uma boa palavra anglo-saxônica, folk-Iore - o saber tradicional do povo), que não perdi a esperança de conseguir sua colaboração na tarefa de recolher as poucas espigas espalhadas no campo no qual os nossos antepassados poderiam ter obtido uma boa colheita.

Quem quer que tenha estudado os usos, costumes, cerimônias, crenças, romances, refrãos, superstições etc. dos tempos antigos deve ter chegado a duas conclusões: a primeira, quanto existe de curioso e de interessante nesses assuntos, agora inteiramente perdidos; a segunda, quanto se poderia ainda salvar, com esforços oportunos. O que Hene procurou com seu every-day book etc., o Atheneum, com sua larga circulação, pode conseguir com eficácia dez vezes maior reunir um número infinito de fatos minuciosos que ilustram a matéria mencionada, que vivem esparsos na memória de seus milhares deleitares, e conservá-los em suas páginas até que surja um Wilhelm Grimm e preste à Mitologia das Ilhas Britânicas o bom serviço que o profundo tradicionalista e filólogo prestou à Mitologia da Alemanha. Este século dificilmente terá produzido livro mais notáve1- imperfeito como seu pr6prio autor confessa ·na segunda edição de Deutsche Mytologie. E que é isso? Uma soma de pequenos fatos, muitos dos quais, tomados separadamente, parecem triviais e insignificantes - mas, quando considerados em conjunto com o sistema no qual os entrelaçou sua grande mentalidade, adquirem um valor que jamais sonhou ou atribuir-lhes o que primeiro os recolheu.

Quantos fatos semelhantes uma s6 palavra sua evocaria, do Norte e do Sul, de John O'Grot à Ponta da Terra! Quantos leitores ficariam contentes em manifestar-lhe seu reconhecimento pelas noticias que lhes transmite todas as semanas, enviando algumas recordações dos tempos antigos, uma lembrança de qualquer uso atualmente esquecido, de alguma lenda em desaparecimento, de alguma tradição regional, de algum fragmento de balada.

Tais dados seriam de grande utilidade, não apenas para o inglês estudioso de antiguidades. As relações ente o folk-lore da Inglaterra (lembre-se de que reclamo a honra de haver introduzido a denominação Folk-lore, como Disraeli introduziu Father-Iand, na literatura deste país) e o da Alemanha são tão grandes, que esses dados provavelmente servirão para enriquecer futura edição da Mitologia de Grimm. Deixe-me dar-lhe um exemplo dessas relações: um dos capítulos de Grimm, que trata largamente do papel do cuco na Mitologia Popular - de caráter profético que lhe deu a voz do povo -, cita muitos casos de derivar predições do número de vezes que seu canto é ouvido. E menciona também uma versão popular "Que o cuco não canta antes de se ter fartado três vezes, de cerejas." Fui recentemente informado de um costume que existia outrora em Yorkshire, que ilustra o fato da conexão entre o cuco e a cereja - e isso. também, em seus atributos proféticos. Um amigo me comunicou que crianças e'm Yorkshire costumavam antigamente Ce talvez ainda costumem) cantar uma roda em torno de cerejeiras com a seguinte invocação:

"Cuco cerejeira,

Venha cá e nos diga

Quantos anos teremos de vida."

Cada criança sacudia a árvore e o número de cerejas derrubadas indicava o número de anos de vida futura. Eu sei que o verso infantil que citei é bem conhecido; a maneira, porém, de aplicá-lo não foi anotada por Hene, Brande ou Ellis - e é um desses fatos que insignificantes em si mesmos, têm grande importância quando formam elos de uma grande cadeia - um desses fatos que uma palavra do Atheneum recolheria em abundancia, para uso de futuros investigadores no interessante ramo das Antiguidades Literárias - nosso Folk-lore. AMBROSE MERTON."

Dessa maneira, surgiu a palavra "folklore" , formada de dois vocábulos do inglês antigo: Folh, com a significação de povo; e lore, traduzindo estudo, ciência ou, mais propriamente, o que faz o povo sentir, pensar, agir e reagir.

Entretanto, só foi confirmada em 1878, com a 'fundação da Sociedade de Folclore, em Londres, da qual foi primeiro presidente William John Thoms, e cujo objetivo era "a conservação e a publicação das tradições populares, baladas lendárias, provérbios locais, ditos vulgares, superstições e antigos costumes e demais matérias concernentes a isso", E daí por diante passou a ser adotada por quase todos os estudiosos do mundo.

Os estudos e investigações da matéria a que Thoms deu o título de "folklore" são, no entanto, anteriores ao aparecimento da palavra, A ciência, disse com acerto Ismael Moya, não nasce de uma palavra como Minerva nasceu da cabeça de Júpiter, "A ciência é como um rio, que começa nos trêmulos fios dos mananciais montanheses e que, à medida que avança, se dilata mercê de seus afluentes grandes ou pequenos até se transformar numa corrente majestosa, profunda e avassaladora."

E tal acontece com o folclore, cujos "trêmulos fios" se encontram na mais alta Antiguidade.

OUTROS TÍTULOS

Apesar da larga aceitação do vocábulo "folclore", que acabou substituindo "antiguidades populares", "literatura popular" ou mesmo "antiguidades literárias", têm sido sugeridos e mesmo usados outros termos para designar a matéria. Ingleses e norte-americanos sugeriram folkways e ultimamente folklife, que procede do sueco folkIiv; franceses, "tradicionismo", "antropopsicologia", "demopsiquia"; espanhóis, "demosofia", "demopedia", "tradições populares"; italianos, "demopsicologia", "ciência dêmica", "etnografia"; alemães, volkskunde, volklehere e volkerkunde; portugueses, "etnografia". No Brasil, sem qualquer receptividade, Joaquim Ribeiro sugeriu a expressão "populário". Entretanto, houve alguma aceitação do vocabulário "demopsicologia", cujo emprego pode se constatar nas obras de Amadeu Amaral e de Luiz da Câmara Cascudo .

Muitos desses títulos, pelas suas próprias características etimológicas, delimitam o campo do folclore no domínio do que se denomina cultura espiritual, imaterial, não-material, chegando a classificá-lo como ciência psicológica, no exemplo de "demopsicologia", "antropopsicologia", "demopsiquia". Outros lhe dão característica de estudo de manifestações de um passado, que está por se extinguir. Alguns são anteriores à palavra "folclore", como "etnografia" e volkskunde.

"Etnografia" apareceu, em 1807, por sugestão de Camper, com a signíficação de "descrição de povos". Depois, passou a ser título de uma ciência descritiva, mais interessada em sociedades exóticas ou pré-letradas, e acabou se confundindo com o folclore. Em 1808, L. A. Von Amime K. Brentano divulgaram, na Alemanha, a expressão volkskunde, com volks traduzindo povo, coletividade e kunde, estudo, conhecimento.

Em 1839, com a Sociedade de Etnologia de Pari,s, surgiu o termo "etnologia" como título de uma ciência cujo objetivo era o estudo dos diversos fatores físicos, intelectuais e morais, as línguas e as tradições históricas, que diferenciam raças. A Etnologia passou, então, a ser considerada a ciência teórica e a Etnografia, a ciência prática, auxiliar, ambas com o objetivo de seu estudo voltado para as sociedades pré-letradas e exóticas.

Posteriormente, houve muita confusão no uso das palavras "folclore","etnologia" e "etnografia". Falou-se em "etnografia dos meios rurais", '''folclore de povos primitivos", "etnografia de povos selvagens" ou apenas "semicivilizados", "folclore dos meios populares das nações civilizadas"; "etnologia de nossos ameríndios". Essa confusão foi estimulada pelos franceses, que Criaram uma Etnologia Francesa para estudar a cultura pré-industrial, considerando-a nas suas manifestações erudita, popularesca e folclórica, e classificando o folclore como uma especialidade de coletor de dados apenas.

Historicamente, a confusão foi desfazendo-se, coma corrente de opinião que situou a Etnologia ou Antropologia Cultural, também chamada Social, como ciência que elabora as leis gerais para o estudo da cultura nos processos de mudança cultural e aculturação, em qualquer sociedade humana, e que tem como ciências descritivas auxiliares a Etnografia, que coleta informações nas sociedades .. pré-letradas ou exóticas, e o Foklore, nas sociedades letradas. O Folclore, portanto, seria uma divisão de Etnologia ou Antropologia Cultural, se bem que alguns antropólogos restrinjam ainda mais o seu campo para o estudo da literatura, em qualquer sociedade.

O etnólogo, em conseqüência, dependeria do etnógrafo e do folclorista. A estes caberia "coletar, elaborar, confrontar o material, a fim de que o etnólogo ou antropologista cultural pudesse "situar e resolver os problemas que esse material lhe apresentasse". Na realidade, porém, diz Herskovits, "nenhum pesquisador inicia o estudo de uma cultura, sem vistas técnicas que lhe sirvam de guia para as notas que registra e lhe forneçam problemas a serem submetidos à prova".

Portanto, o que ocorre é que os etnólogos ou antropólogos culturais estão eles mesmos se desincumbindo da coleta.do seu material para estudo e análise, sempre demonstrando maior interesse, particularmente no Brasil, pelas sociedades indígenas, africanas e achados arqueológicos ou observando o processo de aculturação, dinâmica e estrutura na amplitude da expressão cultura. E os folcloristas, que hoje, escreve Kenneth S. Goldstein, são trabalhadores de campo, pesquisadores de biblioteca e analistas, tudo ao mesmo tempo, estão preocupados com o estudo de uma determinada manifestação dessa cultura, que o autor denomina cultura espontânea, característica de qualquer homem da sociedade letrada, que existe de maneira informal no condicionamento inconsciente e na imitação.

Em conclusão, o vocábulo "etnografia" vai perdendo muito da sua importância e, no geral, é designado para caracterizar estudos descritivos de cultura, se bem que ainda haja quem considere o folclore, um estudo de cultura espiritual e denomine etnografia à cultura material, divisão que cientificamente não tem o menor sentido.

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