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Lei dos três estados - Augusto Comte

"Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos está necessariamente sujeito, em sua marcha, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; enfim, o estado científico ou positivo.

No primeiro, as idéias sobrenaturais servem para ligar o pequeno número de observações isoladas de que então se compõe a ciência. Em outros termos, os fatos observados são explicados, isto é, vistos "a priori", segundo fatos inventados. Este é, necessariamente, o estado de qualquer ciência no seu berço. Por imperfeito que seja, é o único modo de ligação possível para a época. Fornece, por conseqüência, o único instrumento por meio do qual· se pode raciocinar sobre os fatos, mantendo a atividade do espírito, que necessita, acima de tudo, de um ponto qualquer de ligação. Numa palavra, é indispensável para permitir que se vá mais longe.

O segundo estado é unicamente destinado a servir de meio de transição do primeiro para o terceiro. Seu caráter é bastardo; liga os fatos de conformidade com idéias que não são completamente sobrenaturais, mas que não são ainda inteiramente naturais. Numa palavra, essas idéias são abstrações personificadas, nas quais o espírito pode ver à vontade ou o nome místico de uma causa sobrenatural, ou o enunciado abstrato de uma simples série de fenômenos, segundo esteja mais próximo do estado teológico ou do estado científico. Esse estado metafísico supõe que os fatos, à medida que se tornam mais numerosos, ligam-se ao mesmo tempo segundo analogias mais extensas.

O terceiro estado é o modo definitivo de qualquer ciência, sendo os dois primeiros destinados somente a prepará-lo gradualmente. Ligam-se os fatos, neste caso, segundo idéias ou leis gerais de ordem inteiramente positiva, sugeridas ou confirmadas pelos próprios fatos, e que muitas vezes mesmo nada mais são do que simples fatos bastante gerais a ponto de se tornarem princípios. Procura-se reduzi-los sempre ao menor número possível, mas sem instituir nenhuma hipótese que não possa ser verificada um dia pela observação, e considerando-os, em todos os casos, apenas como meio de expressão geral para os fenômenos." (OPS [1822]. p. 77-78.)

"Creio que esta história [da civilização] pode ser dividida em três grandes épocas, ou estados de civilização, cujo caráter é perfeitamente distinto, quer no temporal, quer no espiritual. Abrangem a civilização considerada ao mesmo tempo em seus elementos e no conjunto, o que constitui evidentemente, de acordo com as opiniões indicadas acima, uma condição indispensável.

A primeira é a época teológica e militar. Nesse estado da sociedade, todas as idéias teóricas, tanto gerais como particulares, são de ordem puramente sobrenatural. A imaginação domina franca e completamente a observação, à qual é interdito qualquer direito de exame. Do mesmo modo, todas as relações sociais, quer particulares, quer gerais, são franca e completamente militares. A sociedade tem como objetivo de atividade, única e permanente, a conquista. De indústria há apenas o indispensável para a existência da espécie humana. A escravidão pura e simples dos produtores é a principal instituição.

Tal é o primeiro grande sistema social produzido pela marcha natural da civilização. Existiu, em seus elementos, a partir da primeira formação das sociedades regulares e permanentes. Estabeleceu-se completamente em seu conjunto só depois de uma longa série de gerações.

A segunda época é a época metafísica e legista. Seu caráter geral consiste em não ter nenhum bem acentuado. É intermediária e bastarda, opera uma transição.

Sob o aspecto espiritual, já foi caracterizada no capítulo precedente.

A observação é sempre dominada pela imaginação, mas lhe é permitido modificá-la em certos limites. Estes limites vão sendo sucessivamente recuados, até que a observação conquista enfim o direito de exame sobre todos os pontos. Ela o obtém, de início, sobre todas as idéias teóricas particulares, e, pouco a pouco, pelo uso que dele faz, acaba por adquiri-lo também sobre as idéias teóricas gerais, o que é o termo natural da transição. Esse é o tempo da crítica e da argumentação.

Sob o aspecto temporal, a indústria ganhou maior extensão, sem ser ainda predominante. Por conseguinte, a sociedade não é mais francamente militar, nem é ainda francamente industrial, quer nos seus elementos, quer no conjunto. As relações sociais particulares são modificadas. A escravidão individual não é mais direta; o produtor, ainda escravo, começa a obter alguns direitos da parte do militar. A indústria faz novos progressos, que terminam, enfim, com a abolição total da escravidão individual. Após essa emancipação, os produtores ficam ainda submetidos ao arbítrio coletivo. Entretanto, as relações sociais gerais começam logo a se modificar também. Os dois objetivos da atividade, a conquista e a produção, são conduzidos em pé de igualdade. A indústria é a princípio cuidada e protegida como meio militar. Mais tarde, sua importância aumenta, e a guerra acaba por ser concebida, por sua vez, sistematicamente, como meio de favorecer a indústria, o que constitui o último estado desse regime intermediário.

Enfim, a terceira época é a época científica e industrial. Todas as idéias teóricas particulares tornaram-se positivas, e as idéias gerais tendem a tornar-se. A observação dominou a imaginação, quanto às primeiras, e a destronou, sem haver ainda hoje tomado seu lugar, quanto às segundas.

No temporal, a indústria tornou-se preponderante. Todas as relações particulares estabeleceram-se pouco a pouco em bases industriais. A sociedade, tomada coletivamente, tende a organizar-se do mesmo modo, dando-se-lhe como objetivo de atividade, única e permanente, a produção. Numa palavra, esta última época já se realizou quanto aos elementos, e está prestes a começar quanto ao conjunto. Seu ponto de partida direto data da introdução das ciências positivas na Europa pelos árabes, e da emancipação das comunas, isto é, por volta do século XI" (OPS [1822]. p. 112-13.)

"Estudando o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro surto mais simples até nossos dias, creio haver descoberto uma grande lei fundamental, à qual se encontra submetido por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, seja em provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, seja em verificações históricas resultantes de um exame atento do passado. Consiste essa lei em que cada uma das nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa necessariamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico, ou fictício; o estado metafísico, ou abstrato; o estado científico, ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente em cada unia de suas pesquisas três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: a princípio, o método teológico; em seguida, o método metafísico; enfim, o método positivo. Daí, três espécies de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto dos fenômenos, que se excluem mutuamente; a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda é unicamente destinada a servir de transição.

No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos com os quais entra em contato, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, representa os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.

No estado metafísico, que, no fundo, é apenas uma simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos pelas forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas mesmas todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste então em designar para cada um a entidade correspondente.

Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e a destinação do universo, e a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para se dedicar a descobrir, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, isto é, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, nada mais é, doravante, do que a vinculação estabelecida entre os fenômenos particulares e alguns fatos gerais, dos quais tendem os progressos da ciência a reduzir cada vez mais o número.

O sistema teológico chegou à mais alta perfeição de que era suscetível, quando substituiu pela ação providencial de um ser único o jogo variado de numerosas divindades independentes que haviam sido imaginadas primitivamente. Do mesmo modo, o último termo do sistema metafísico consiste em conceber, no lugar de diferentes entidades particulares, uma única grande entidade geral, a natureza, considerada como a fonte única de todos os fenômenos. Semelhantemente, a perfeição do sistema positivo, para a qual tende incessantemente, embora seja provável que não deva atingi-la jamais, seria poder representar todos os diversos fenômenos observáveis como casos particulares de um só fato geral, tal como o da gravitação, por exemplo." (CPP. v. I, p. 2-3.)

"Meu Sistema de Filosofia Positiva associou sempre, a essa lei de filiação, a lei de classificação das ciências, cuja aplicação dinâmica fornece o segundo elemento indispensável de minha teoria de evolução, determinando-lhe a ordem necessária segundo a qual nossas diversas concepções participam de cada fase sucessiva. Sabe-se que essa ordem é regulada pela generalidade decrescente dos fenômenos correspondentes, ou, o que dá no mesmo, pela sua complicação crescente, resultando daí sua dependência espontânea diante daqueles que são mais simples e menos especiais. A hierarquia fundamental de nossas especulações reais consiste assim na sua classificação natural em seis categorias elementares: matemática, astronômica, física, química, biológica, e, enfim, sociológica, passando cada uma, antes da seguinte, pelos diferentes graus essenciais da evolução total, que somente poderia oferecer um caráter vago e confuso sem o uso contínuo de tal classificação." (SPP. v. I, p. 33-34.)

"Sem dúvida, todas as ciências positivas não puderam formar-se simultaneamente, devendo ter existido períodos mais ou menos longos, durante os quais o espírito humano empregava ao mesmo tempo os três métodos, cada um para certa ordem de idéias. ( ... ) Esta confusão passageira e inevitável é a principal dificuldade que pode sofrer a verificação da lei exposta acima. Mas, observando que os três métodos não foram jamais empregados ao mesmo tempo para a mesma ordem de idéias, a dificuldade desaparecerá, se se tiver em consideração a ordem enciclopédica precedentemente estabelecida. A existência desse estado misto, aliás, é a única objeção séria que foi feita até agora, de meu conhecimento, contra esta lei fundamental. Ademais, essa objeção só foi apresentada por espíritos infelizmente estranhos, por sua educação, às ciências positivas, embora muito superiores em si mesmos." (O PP. [1825]. p. 154.)

"Embora cada classe de especulações passe realmente por esses três estados sucessivos, não procedem todas com igual velocidade. Resulta daí que, até o completo acabamento da iniciação humana, certas teorias já se tornaram positivas, enquanto outras permanecem ainda metafísicas, ou mesmo teológicas. Esta coexistência passageira dos três estados intelectuais constitui hoje o único fundamento plausível das resistências que os pensadores atrasados opõem ainda à minha lei de filiação, que, descoberta, há mais de trinta anos, jamais encontrou outra objeção séria. Ora, esta dificuldade somente pode ser superada, pela regra complementar que subordina necessariamente a desigualdade de velocidades à diversidade dos fenômenos." . (SPP. v. UI, p. 41.) .