teseberkeley5-conclusao
V - Conclusão
Qual é exatamente o alvo das críticas formuladas por Berkeley na parte mais combativa de
sua obra? Os comentadores se dividem: alguns afirmam que é exclusivamente a filosofia de
Locke; outros, que é toda a tradição metafísica da filosofia; outros ainda que é uma doutrina
que Berkeley atribui indevidamente a Locke. Que este seja um alvo imediato importante não
há dúvida, pois longos trechos do Ensaio são reproduzidos e comentados por Berkeley. (104)
Porém a seção 06 parece deixar claro que a crítica se estende para muito além de Locke
chegando até os antigos, pois as idéias abstratas são ali caracterizadas como "os objetos da
lógica e da metafísica". (105) Mas, poderíamos objetar, Platão ou Aristóteles alguma vez
defenderam tal teoria? Não é por demais ingênuo atribuir a um representante da filosofia
antiga uma tese moderna sobre a linguagem? Em primeiro lugar, sem dúvida Berkeley não é
estranho à filosofia antiga, pois foi professor assistente de língua grega no Trinity College e
revela um conhecimento profundo da filosofia grega na Siris. Em segundo lugar, talvez
Berkeley não atribua aos antigos uma doutrina da abstração tal como esta aparece, por
exemplo, em Locke e sim identifique na tradição lógico-metafísica o que parece ser antes um
procedimento, um certo uso da linguagem que deixa-se guiar por certas crenças, sem
tematizá-las explicitamente como tese. (106) É com o propósito de erradicar as contradições
que surgem deste uso que surge a necessidade, para os modernos, de tomar a linguagem
como objeto. Porém Berkeley acredita que a análise de Locke está ainda impregnada
daqueles mesmos pressupostos.
Se admitirmos que a distinção/diferenciação é ponto de passagem obrigatório no caminho
que leva à multiplicidade, então a dualidade aparecerá como condição prévia à linguagem e o
dualismo como tendência inerente à natureza discursiva da filosofia. (107) O que Berkeley
quer mostrar é que a ilusão metafísica da exterioridade é inevitável e que a distância entre os
dois lados do abismo dualista cresce numa razão que é proporcional ao aumento do poder
instrumental do conhecimento. Berkeley vê a história da filosofia como uma constante
tentativa de reconquista e ao mesmo tempo de progressivo afastamento de uma unidade
primordial perdida. A modernidade surge assim como o momento histórico em que a
filosofia levou a seus extremos os dualismos já subjacentes nos antigos. (108) Com efeito,
entre Aristóteles e Descartes podemos enfatizar tanto a ruptura quanto a continuidade. (109)
Se sob o aspecto revolucionário da filosofia moderna espreitam pressupostos essenciais ao
pensamento antigo, passa a ser menos surpreendente que o campo de diálogo de Berkeley
possa ser estendido para muito além dos cartesianos e de Locke. (110)
Em Aristóteles, para haver conhecimento é preciso que hajam coisas, alma e linguagem.
(111) Os "estados da alma" representam a realidade externa e a linguagem significa os
estados da alma. A relação entre a alma e as coisas é de semelhança; a relação entre a
linguagem e os estados da alma é convencional e arbitrária. Se em Aristóteles o dualismo é
menos radical do que na filosofia moderna é porque a alma possui uma função de
intermediação que restabelece um mínimo de continuidade no interior da dicotomia
identidade/alteridade. No De Interpretatione o discurso assertivo proposicional, ao contrário
do discurso retórico, exige este distanciamento entre linguagem e realidade: para que haja
asserção é preciso que haja algum tipo de correpondência estrutural entre termos relacionados
na proposição e as conexões entre objetos na realidade. A alma é um elemento mediador
necessário para que esta correspondência possa acontecer. (112) Este papel da alma está
refletido no amplo sentido da palavra logos, que perpassa toda a extensão do conhecimento,
rege as relações tanto entre a alma e as coisas quanto entre a alma e a linguagem: no De
Anima e o mesmo logos que atua tanto na apreensão dos objetos sensíveis da percepção
quanto na constituição dos objetos lógicos da razão e da linguagem.
Com a crítica da tradição antiga, a filosofia moderna depara-se com o problema da passagem
de uma "lógica da sensação" (quantidade e proporção), para uma "lógica da predicação"
(nomeação, asserção). (113) A filosofia moderna generaliza o uso da palavra "idéia" para
caracterizar, muito amplamente, aquilo que Aristóteles chamava de "estados da alma". O
grande problema que ocupa Descartes é o da justificação da possibilidade de relação entre a a
alma e as coisas, entre a idéia como representação e o ideado como coisa representada. Locke
desloca o foco de atenção para a relação entre o segundo e o terceiro termos (o pensamento e
a linguagem) e formula uma teoria da significação que se mantém, em suas linhas gerais, fiel
à gramática e à lógica cartesianas de Port-Royal. (114) Por maiores que sejam as diferenças,
é difícil não reconhecer que uma tese fundamental, comum a estas duas tradições,
permanece: as idéias são semelhantes às coisas, as palavras são símbolos convencionais das
idéias. A teoria do conhecimento e as teorias da linguagem continuam ancoradas em uma
crença realista básica, numa distinção clara entre duas espécies de objetos: "coisas reais"
situadas no espaço externo e idéias que reeditam estas coisas num espaço interno. As
palavras, por sua vez, re-apresentam simbolicamente - isto é, convencionalmente - a
representação: nomeando as idéias, tornam possível a comunicação. A alma ganha estatuto
de substância, o logos passa a ser ratio: medida, ordem. (115)
Berkeley é pioneiro no uso de uma estratégia que catalizou os esforços de grande parte da
filosofia contemporânea: a dissolução dos falsos problemas filosóficos que se originam na e
pela linguagem. Berkeley vê uma crença dualista básica na origem dos maiores destes
problemas, que ganham diferentes formulações ao longo da história mas que se mantêm com
toda a força até Locke. O ponto forte da crítica berkeleiana a este dualismo é a tese de que há
uma interdependência necessária entre, por um lado, os mecanismos naturais da percepção e
da linguagem e, por outro, as teses metafísicas sobre a realidade e sobre o funcionamento da
própria linguagem. A origem da miragem "exterioridade independente" está em um uso da
linguagem para falar das coisas - e da própria linguagem - que parece neutro mas que na
verdade está já determinado pelos pressupostos inerentes ao uso da percepção e das palavras
como signos naturais. Entre o dualismo natural da percepção e da linguagem comum e o
dualismo explícito das doutrinas metafísicas existiria assim um feedback tão intrincado que
só seria perceptível de seu exterior. Berkeley sabe que uma crítica a este sistema que se
limite à reformulação de apenas alguns de seus aspectos tem poucas chances de ter sucesso.
Daí seu ambicioso projeto de substituí-lo como um todo.
Para Berkeley o modo de funcionamento da linguagem das palavras é de mesma natureza que
o modo de funcionamento da linguagem da natureza, ainda que certas características
acidentais as distingam. O que caracteriza a relação significante, no primeiro caso, é a
antecipação de uns signos por outros pela mediação da imaginação. Por exemplo, a visão ou
a audição antecipando o tato. Já a linguagem das palavras possui características próprias,
sendo uma das mais importante delas o poder de generalização, que torna possível a
predicação e a demonstração, ou seja, a ciência como ampliação do conhecimento. Assim
como no caso das idéias, é muito sofisticada a forma pela qual palavras e grupos de palavras
ganham significação. Esta relação está longe de ser do tipo "uma palavra - uma idéia", como
acreditava Locke. Quando significam idéias, as palavras as nomeiam em suas relações
complexas. Mas as palavras não precisam nomear toda vez que são utilizadas e
desempenham muitas funções além da comunicação de idéias pois os usos da linguagem
variam enormemente, servindo desde à facilitação da vida comum, até ao discurso científico
e filosófico, moral ou teológico.
Vemos assim que a teoria da significação de Berkeley é tudo menos "sensualista" no sentido
pejorativo que lhe atribuem seus detratores. São tantas e tão ricas as formas de significação e
tão sofisticadas as maneiras pelas quais o sistema das palavras se relaciona com o sistema das
idéias que, afinal de contas, Locke acaba nos parecendo mais sensualista do que Berkeley. A
teoria da linguagem e a teoria do conhecimento de Locke resultam de uma sofisticação dos
mecanismos de significação do senso comum que, teorizados, levam inevitavelmente ao
materialismo e ao referencialismo. Por isso Berkeley não se limita a criticar sua teoria da
linguagem e sua ontologia mas faz também uma análise dos processos que levam
imperceptivelmente das crenças naturais àquelas teses sobre a linguagem e sobre o mundo.
No mecanismo natural de significação, que começa com a abstração "este objeto", "com tal
nome" (ignorando as diferenças entre idéias de diferentes sentidos) está o gérmem seja do
materialismo, seja das teorias referencialistas da linguagem. Nestas teorias o conhecimento se
dá pela representação de um mundo "externo", autosubsistente e independente do sujeito que
o percebe. Berkeley procura mostrar que a consciência crítica dos mecanismos naturais que
tornam possível a linguagem nos levará à conclusão de que apesar de serem eles os mais
úteis para a vida comum e até para a ciência, podem levar a problemas filosóficos
relacionados à natureza do conhecimento e da própria linguagem que são inúteis, já que
insolúveis. (116)
A valorização do senso comum em Berkeley não é, portanto, tão simples quanto parece: o
ideal é que a filosofia adquira a serenidade do senso comum, que não se angustia
simplesmente porque não coloca em questão sua imagem do mundo, a mais adequada
possível para a vida. Porém para atingir este ideal a filosofia deve tomar consciência de que
muitos de seus problemas clássicos são insolúveis justamente porque derivam de mecanismos
primários de significação e de representação comum do mundo. A serenidade do filósofo e
então, como dizia Bachelard, (117) uma serenidade conquistada e portanto qualitativamente
diferente daquela do senso comum. Ela pressupõe uma reflexão do tipo: utilizamos palavras
cujo significado não sabemos explicar pois não nomeiam idéias claras da sensação, tais como
"matéria", "substância", "alma", "força", "gravidade", "cinco", "distância", "espaço",
"desejo", etc. Pois bem, mas como sabemos pela análise crítica da percepção e da linguagem
que as palavras significam não só porque nomeiam idéias, nos contentamos com a explicação
que diz que estas palavras possuem um uso e uma aplicação útil na ciência, na filosofia e
mesmo em nossa vida cotidiana, deixamos de nos atormentar com dúvidas céticas acerca de
"razões profundas" que expliquem sua significação.
No pensamento clássico, como vimos, as idéias representam as coisas por semelhança e as
palavras significam as idéias por convenção. Neste sentido, Berkeley fez uma espécie de
viagem de volta, partindo da relação contingente de significação como elemento primordial e
a partir dali esclarecendo o que há de ilusório na afirmação de uma relação necessária -
porque fundada na semelhança - entre "idéias" e "coisas" pressuposta pelo conceito de
representação. (118) A grande vantagem desta estratégia de privilegiar uma ordem lógica, a
contrapêlo da ordem cronológica ou aparentemente genética, é o ganho em termos de
economia e simplicidade na ontologia e na teoria do conhecimento que dela resultam. A
análise das relações significantes entre idéias de diferentes sentidos permitiu, por exemplo,
explicar como se dá o conhecimento das qualidades do espaço de forma mais eficaz do que o
modelo geométrico. A partir da concepção das idéias como signos e da inesgotável variedade
de relações que entre elas se estabelece, pode-se explicar como a realidade se dá inteira à
percepção, tornando-se assim supérflua a hipótese de um duplo a ela transcendente.
É claro que Berkeley precisa coroar seu projeto apologético resgatando de alguma forma a
necessidade. Esta é agora deixada fora dos limites do dizível, mas por isso mesmo torna-se
irrecusável, totalmente a salvo dos ataques do ceticismo ateísta. Porque este é, em última
análise, filho da decepção: o que parece ser um objetivo viável - a crença na possibilidade de
uma justificação última do conhecimento a partir da crença na causalidade necessária das
relações naturais - revela-se uma miragem a cada vez que a linguagem dele nos aproxima. É
por isso que Berkeley nunca pretendeu demonstrar a existência de Deus. Esta empreitada só
parece possível a partir dos pressupostos dualistas. No interior do novo modelo sugerido por
Berkeley o que pode-se fazer a esse respeito é apenas mostrar, dizendo: "Contemple a
natureza e procure pensar independentemente de seus hábitos, que o fazem crer que as
relações causais são necessárias. Se as relações entre idéias são significantes (e não
associativas), então as leis da natureza trazem em si a marca da contingência e portanto a
melhor forma de entender sua infinita riqueza e variedade é considerá-la como uma
admirável linguagem, mais do que como uma máquina perfeita."
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