teseberkeley2.3-posiçao

II.3 - Posição

A posição é uma terceira qualidade espacial cuja percepção merecia a atenção da óptica.

Distinguimos no campo visual um "alto", um "baixo", uma "direita" e uma "esquerda" e é

com estes termos que nos referimos à posição dos objetos no espaço perceptivo. Para a

óptica geométrica não há distinção entre a posição do objeto tátil e a posição do objeto

visual; os termos "alto" e "baixo" referem-se a qualidades de um objeto único, composto de

idéias da visão e do tato. Ainda aqui trata-se, portanto, de mostrar que inúmeros problemas

podem ser resolvidos ou evitados a partir da compreensão de como conexões habituais entre

objetos heterogêneos levam à crença no caráter necessário destas relações e na identidade de

natureza destes objetos.

Para a óptica geométrica o problema da inversão da imagem retiniana era o obstáculo maior

contra o qual esbarravam as tentativas de explicação da percepção da posição. Como vemos

as coisas em sua posição normal se as imagens projetadas na retina estão invertidas em

relação à posição do objeto que as originam e que elas representam? A clássica solução

geométrica de Descartes, que recorria a uma analogia entre a visão e o manuseio de dois

bastões por um cego, era ainda a única disponível: sabendo que os dois bastões estão

cruzados, o cego saberá que o que ele sente na mão direita está à esquerda e que o que ele

sente "em cima" está "em baixo". Assim, sabendo que o raio que atinge a parte inferior da

retina tem sua origem na parte superior do objeto de onde ele se origina, o entendimento

naturalmente julgaria que a imagem retiniana, apesar de invertida, representaria um objeto

em posição "correta". Porém - pergunta Berkeley - como é que os pouco instruídos ou as

crianças, que não sabem que esta imagem invertida é produzida por raios que percorrem

trajetórias em linha reta, não deixam de ver as coisas em sua posição correta? É esta

"geometria natural" inata dos cartesianos algo mais do que uma solução ad hoc à qual a

óptica clássica precisa recorrer para salvar uma concepção de espaço que melhor corresponde

ao seu modelo teórico? Para evitar o representacionismo dualista - seu preço - Berkeley precisa

de uma solução não-geométrica.

Imaginemos, diz Berkeley, um homem cego de nascimento. Pela experiência tátil de seu

próprio corpo, ele sabe que seus pés tocam o solo. Esta é uma experiência da posição de seu

corpo que é inteiramente distinta da idéia de posição que este homem obterá se um dia

ganhar a visão. Se isto vier a ocorrer, as idéias imediatas da visão não possuirão qualquer

propriedade que possa ser chamada de "posição" antes de serem relacionadas com as idéias

do tato já conhecidas. As palavras "alto" e "baixo" nada lhe significam se aplicadas às idéias

imediatas da visão, pois ele nem sequer reconhecerá o que na imagem visual corresponderá a

"cabeça" ou "pé". Para que a palavra "alto" seja usada significativamente como propriedade

da imagem visual é preciso que ela adquira um sentido analógico, ou seja, é preciso que ela

passe a ser usada para significar uma qualidade própria do tato. Aos poucos nosso ex-cego

aprenderá que a parte da imagem que vê ao abaixar a cabeça e dirigir o olhar para os pés

recebe o mesmo nome daquilo que conhecia como "em baixo" na modalidade do tato. Esta

aptidão que as palavras possuem de nomear mais de uma coisa - a homonímia - é muito útil

na prática mas em alguns casos pode levar à falsa crença na identidade das diferentes

realidades por elas significadas.

O falso problema da inversão da imagem retiniana nasce de uma confusão entre a posição

tátil e a posição visual. Dizer "a cabeça está em cima" ou "os pés estão em baixo" significa

coisas diferentes segundo estejamos nos referimos à visão ou ao tato. Para ambas as

modalidades sensíveis a parte do corpo que está mais distante do solo é a cabeça, mas se

falamos da visão estes termos devem ser entendidos como "cabeça visual" e "solo visual" e

se falamos do tato devemos entendê-los como "cabeça tátil" e "solo tátil". Não podemos

jamais comparar o "solo tátil" com a "cabeça visual" ou vice-versa. O sentido da sentença "a

posição da imagem retininiana é invertida em relação à posição do objeto real" não é tão

evidente quanto parece. Quem faz esta afirmação a respeito da imagem retiniana "homem",

por exemplo, está afirmando que a cabeça em tal imagem está mais próxima de seu próprio

solo tátil - i. é., aquele que ele sente sob seus pés naquele instante - do que os pés daquela

imagem retiniana. Está, portanto, relacionando imagens heterogêneas; está comparando uma

posição visual com uma posição tátil. Considerada apenas em suas qualidades visuais, a

imagem de um homem projetada no fundo do olho nos apresenta pés tocando o solo e uma

cabeça como a parte do corpo que está mais distante do solo e isto não oferece motivo para

qualquer espécie de perplexidade.

Quem afirma que a imagem retiniana está invertida imagina um olho (A) que, à certa

distância, observa o fundo de outro olho (B). Por que se acredita que para o olho (A) a

imagem no fundo do olho (B) pareceria invertida? O sujeito ao qual pertence o olho (A) fará

tal julgamento a partir da imagem retiniana de seu próprio olho que conterá, além da imagem

retiniana no fundo do olho (B) (que chamaremos de "pequena imagem"), também a imagem,

esta maior, do próprio homem ao qual pertencem aquele olho e aquela imagem retiniana (que

chamaremos de "grande imagem"). Ao dizer que a imagem retiniana no fundo do olho do

outro (do olho B) está invertida, o que ele está dizendo é que ela está invertida em relação à

imagem do homem em cujo olho está tal imagem (a grande imagem). Ou seja, está dizendo

que os pés do homem da pequena imagem está distante do solo no qual está pisando o

homem da grande imagem. Mas para o olho (B) não existem estas duas ordens de imagens.

O que ele percebe é uma imagem única de um homem cujos pés tocam o chão e cuja cabeça

está no outro extremo, nada mais. Não há razão, portanto, para que esta imagem seja julgada

invertida.

Além disso, o próprio conceito de imagem retiniana como "imagem visual no fundo do olho"

é um contra-senso. A visão possui objetos imediatos e objetos mediatos. A percepção da

posição depende da conjunção das idéias da visão (imediatas) com as idéias do tato

(mediatas). O que é, então, a assim chamada "imagem retiniana"? Dizer que ela é uma

imagem simplesmente visual de um objeto real externo é limitar a percepção a um único

sentido e sabemos que apenas com a visão não podemos perceber nada além de luz e cores,

não podemos perceber uma qualidade do espaço como a posição, assim como não podemos

perceber a distância e o tamanho. Ao dizer "imagem retiniana" os ópticos estão na verdade

falando de uma imagem tátil e não visual. O olho é percebido pela visão ou pelo tato. Há um

"olho tátil" e um "olho visual". O que chamamos de imagem visual do olho existe apenas

como idéia imediata que sugere idéias táteis. Ao falarmos do olho visual estamos portanto

falando não do "olho significante" e sim do "olho significado", não do olho visual mas do

olho tátil. O que chamamos de "imagem retiniana" é o padrão resultante da forma pela qual o

olho tátil é afetado "tatilmente" por raios de luz considerados em sua natureza igualmente

tátil. (38) A imagem retiniana concebida como idéia de natureza visual é uma representação

da imaginação. (39)

A tese da imagem retiniana pressupõe uma relação de semelhança entre esta imagem e um

arquétipo "externo", o que para Berkeley constitui uma impossibilidade lógica, pois uma

idéia só pode ser comparada e portanto só pode ser dita semelhante em relação a outra idéia.

Retornemos ao olho (A) que olha para o fundo do olho (B). Para (A), a imagem vista no

fundo de (B) é uma cópia daquilo que o próprio olho (A) percebe e considera não como uma

cópia mas como o próprio arquétipo, a coisa "real". Porém consideremos um terceiro olho

(C) que olha para a imagem no fundo de (B): neste caso a pequena imagem de (B) será vista

como cópia da grande imagem de (A), e o arquétipo de ambas estará agora na imagem que se

forma no fundo de (C), abrangendo toda a cena e os dois outros olhos. Não é portanto

unívoca a relação entre o modelo e a imagem que a copia se pensamos a imagem retiniana

como uma representação visual de um objeto externo. (40)

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