CURRÍCULO, FORMAÇÃO, PERTENCIMENTOS E DECOLONIALIDADE
Editorial edição 6
Maria José Firmino da Silva
Larisse Miranda de Brito
Denise Moura de Jesus Guerra
Roberto Sidnei Macedo
FORMACCE/FACED/UFBA
CURRÍCULO, FORMAÇÃO, PERTENCIMENTOS E DECOLONIALIDADE
Editorial edição 6
Maria José Firmino da Silva
Larisse Miranda de Brito
Denise Moura de Jesus Guerra
Roberto Sidnei Macedo
FORMACCE/FACED/UFBA
Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. […] Tinha a sensação de que perdia meu tempo naquela sala quente, ouvindo aquela senhora de mãos finas e sem calos […]. Um dia inventava uma dor de cabeça, outro dia uma dor de barriga, e aos poucos fui fazendo valer minha vontade […]. Deixei caderno e lápis num canto do quarto […], fiz valer meu querer. […]. Poder estar ao lado de meu pai era melhor do que estar na companhia de dona Lourdes, com seu perfume enjoativo e suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz. […] Aprendia [com meu pai, Zeca Chapéu Grande] sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia: “O vento não sopra, ele é a própria viração”, e tudo aquilo fazia sentido (Vieira Junior, 2019, p. 97-99).
A perspectiva da autopoiésis nessa narrativa nos parece necessária para abrirmos as cortinas desta 6ª Edição do Jornal Hermes (Formacce/Faced/UFBA). Belonísia, personagem negra da obra “Torto arado”, cuja família vive em condições análogas à escravidão, apesar de sua mudez, insurge-se, paradoxalmente, como alguém que – contra todas as formas de subalternização – produz-se poeticamente a si mesma, na relação com a Terra e com sua ancestralidade. Desse lugar, nega à professora o direito de falar por ela, através do discurso da democracia racial que estabelece, sub-repticiamente, referenciais eurocentrados de rejeição, negação e inferiorização, sobretudo, dos povos indígenas e afrodescendentes, estereotipados como primitivos e irracionais.
Essa lógica curricular-formacional espelha, de acordo com Quijano (2002), um padrão de poder – a modernidade – consubstanciado na articulação entre a colonialidade do poder, o capitalismo como padrão de exploração, o controle da autoridade coletiva pelo Estado e o eurocentrismo. Essa lógica civilizatória foi imposta aos outros povos, especialmente aos não-europeus; ocultando-se, porém, sua face constitutiva: a colonialidade que cindiu os povos em primitivos/civilizados, irracionais/racionais, mágicos-míticos/científicos, tradicionais/modernos, de maneira que o primeiro elemento de cada par dicotômico representa, numa escala evolutiva, o passado a ser superado (Quijano, 2005), conforme o discurso constitutivo da modernidade e seu ideal etnocêntrico de progresso.
As instituições educacionais, que têm sido pensadas pela modernidade como dispositivos de consolidação desse poder colonial, representam, contudo, espaços de tensão já que também são cenários de luta contra a negação do/a outro/a e de sua inerente humanidade. Nesse confronto, podemos falar de decolonialidade como uma referência inspiradora para se pensarfazer currículo e formação a partir dos pertencimentos dos seus sujeitos, compreendendo a experiência como articuladora dessa relação (Josso, 2004). Dessa forma, a decolonialidade pode ser compreendida através da experiência constitutiva de tantas Belonísias e suas aprendizagens sobre ancestralidade e natureza, como um símbolo contra o esquecimento de si mesmas, de suas cosmovisões e ontologias. Esse movimento se contrapõe, portanto, ao racismo epistêmico e ao racismo ontológico (Mignolo, 2017), enquanto legados dos processos impostos pela colonialidade do poder, do saber e do ser cuja matriz é a classificação do outro, ou seja, do não-europeu segundo a ideia de raça (Quijano, 2005).
Nesse contexto, na seção Em Destaque, Larisse Miranda de Brito e Fernando Pina Tavares abrem as nossas com-versações com o texto Currículo De-s-colonial e Pedagogia Sankofa: perspectivas para formação universitária, em que sinalizam a colonialidade do saber como marca do currículo universitário e a Pedagogia Sankofa como possível horizonte de-s-colonial, com possibilidade de produção de processos formativos que tensionem o colonialismo educacional. Em seguida, temos uma entre-vista em que a professora Rita Dias e o professor Sílvio Humberto produzem um diálogo fecundo sobre Currículo, Formação, Pertencimentos e Decolonialidade, tema desta Edição do Jornal Hermes.
Na seção Opiniões em contraste, Vanda Machado e Camile Viana Vieira dialogam sobre as possibilidades formativas de enfrentamento do racismo epistêmico. A primeira autora nos brinda com o texto Decolonialidade e Educação Antirracista. É possivel? Sua crítica ao racismo e ao discurso de uma suposta democracia racial atravessam o texto de forma implicada e propositiva. Já o segundo texto desse contraponto discute Saberes infantis e descolonização. Aqui, nossa autora traz reflexões importantes para se pensafazer projetos educacionais que mirem a decolonialidade.
Na seção Escritos, Jamile Borges da Silva, com seu texto O LIXO VAI FALAR!, constrói, através de uma metáfora, umaprovocação: as pessoas negras colocadas na lata de lixo vão falar, vão se posicionar num enfrentamento à lógica da dominação, negação e desumanização. Assim, conforme a conclusão do texto, “[…] o LIXO vai falar, e numa boa!”. O segundo texto – Cultura e Formação da Ancestralidade Africana e Afro-Brasileira – deCláudio Orlando Costa do Nascimento, tomando como mote a lei 10.639/03, presenteia-nos com relatos de experiências – outras formas de pensar, agir e sentir – que vão de encontro a currículos escolares ainda forjados pela lógica colonial, logo excludente.
Na mesma seção, Rita de Cássia Dias, no texto Formação (inter)Cultural – mediações identitárias na diáspora negra contemporânea: fluxos em curso, aborda experiências formativas, “[…] enfocando a Diáspora voluntária de estudantes e docentes negros/as brasileiros/as e africanos/as, no trânsito atlântico entre Brasil – Portugal – Continente Africano, em especial, em Moçambique”. Já no texto Corpo, currículo e decolonialidade na formação em ciências da saúde, Deboraci Brito Prates, refletindo sobre a ausência de corpos negros nos livros e materiais didáticos, relaciona essa ausência e invisibilidade ao racismo ainda presente nos processos de formação em ciências da saúde.
Por seu turno, Taise Teles Santana de Macedo, com seu texto Currículo em movimento: um compromisso com a discussão étnico-racial,objetiva evidenciar”[…] como o Núcleo de Currículos e Programas da Pró-reitoria de Ensino de Graduação da Universidade Federal da Bahia -NCP/PROGRAD/UFBA – tem conduzido sua atuação, junto aos cursos de graduação, quanto à adequação de seus currículos à temática obrigatória das relações étnico-raciais […]”. A contribuição seguinte para nossas reflexões sobre Currículo, Formação, Pertencimentos e Decolonialidade vem da autora Juliana Marta Santos de Oliveira com o texto Podemos instituir um currículo decolonial no Brasil?
Além disso, Noemi Pereira de Santana escreve sobre Normas linguísticas e ensino de língua portuguesa, destacando que, no processo de normatização linguística do Brasil, a referência tem sido a do colonizador, num processo de invisibilização de pertencimentos étnico-raciais, principalmente. O escrito de Genário dos Santos – Currículo e decolonialidade: reflexões e práticas no contexto da educação básica – fecha essa seção. Diante da emergência de se interpelar a lógica da colonialidade, o autor narra um acontecimento vivenciado numa escola e seus encaminhamentos inspirados na Teoria Etnoconstitutiva de Currículo (TEEC).
Por fim, mas não menos importante, temos a seção Cotidianos da/na Educação com dois textos versando sobre experiências na Educação Básica. Do autor Alexsandro Conceição, o texto Por uma educação libertadora: uma experiência coordenativa em uma escola pública da cidade de Salvador nos apresenta a relatos de atuação na formação de professores/as a partir da inspiração decolonial, enquanto Renata Paiva, com seu texto Comida, Cultura e Escola em uma perspectiva Decolonial, convida-nos a saborearmisturas de cores, cheiros e sabores da culinária baiana na produção de pertencimentos étnico-raciais.
Todos esses textos nos fazem perspectivar, ao fim e ao cabo, espaços da sala de aula da Educação Básica principalmente, onde estudantes – na sua autopoiésis – precisam construir desobediências epistêmicas (Mignolo, 2017) num contraponto a currículos e processos formacionais e formativos que invisibilizam e silenciam pertencimentos étnico-raciais, subjetividades e cosmovisões. É assim, pois, que Belonísia se produz poeticamente na relação consigo mesma, com as outras pessoas e com a Terra, já que – parafraseando nossa epígrafe – Belonísia é a própria viração e isso faz todo sentido! Axé às nossas autoras e a nossos autores!!
Referências
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
MIGNOLO, Walter. Desafios decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu/PR, 2017.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos, v. 17, n. 37, 2002.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires/Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005.
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.